A Ilha: “Nunca perca a esperança”
13 de dezembro de 2008
A ILHA: “NUNCA PERCA A ESPERANÇA”
(Comentário sobre o filme “A Ilha”)
Nome original: The island
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês
Diretor: Michael Bay
Roteiro: Caspian Tredwell-Owen, Alex Kurtzman
Elenco: Ewan McGregor, Scarlett Johansson, Djimon Hounsou, Sean Bean, Steve Buscemi, Michael Clarke Duncan, Ethan Phillips, Brian Stepanek, Noa Tishby, Siobhan Flynn, Troy Blendell, Jamie McBride, Kevin McCorkle, Gery Nickens, Kathleen Rose Perkins
Gênero: ação, ficção científica, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
O diretor Michael Bay representa tudo que há de errado com o cinema de Hollywood. Tiroteios, explosões, perseguições de carros, etc. Personagens rasos, histórias superficiais e sem sentido. Mas o diretor ganhou na loteria, sem trocadilho, quando lhe entregaram o roteiro d’ “A Ilha”. O filme é um curioso amálgama de diversos temas tradicionais da ficção científica. O mundo aqui foi assolado por uma “contaminação” avassaladora e inexplicável que obriga os sobreviventes a viver num complexo isolado. Uma espécie de arca de Noé contendo o que sobrou da humanidade. A ilha do título é um local paradisíaco, o único restante no planeta livre da contaminação, para onde são mandados os vencedores de uma loteria, cujos sorteios periódicos mobilizam as expectativas de todos os habitantes do complexo.
Acontece que a ilha não existe, a loteria é uma farsa, o complexo não passa de um criatório onde são cultivados clones de pessoas ricas do mundo real que não querem morrer e pagam por um banco de órgãos vivos para reposição (possibilidade de empreendimento comercial nada realista, que o filme tenta fazer passar como plausível). Claro que essas pessoas não sabem que seus clones estão ativos e conscientes, pois as leis da época proíbem clones conscientes. O que torna tudo isso mais um caso de irresponsabilidade e ganância corporativa de proporções criminosas. Toda a idéia do complexo se baseia na suposição (do ponto de vista científico, arbitrária e gratuita) de que os clones precisam ter atividade consciente, vida social e algumas emoções não muito desenvolvidas para que os órgãos a ser aproveitados funcionem devidamente no receptor.
Não há problemas em contar o segredo da história logo no começo da resenha, pois muito antes da narrativa chegar à metade tudo isso já é revelado. Sendo um filme de Michael Bay, toda a sofisticação eventualmente esboçada terá que ser fatalmente enterrada por cenas de ação espetaculares. O diretor não nega suas origens de realizador egresso da publicidade. O estilo de direção e principalmente a música-tema principal, com seu tom vago e evocativo, tem tudo de um comercial de TV. Para além de uma simples questão de estilo comercial de estética e de narrativa, chega-se até à exibição direta de marcas e logotipos de empresas do nosso mundo real: Puma, Nokia, MSN, Cisco, Reebok, etc.
Nada mais apropriado pois do que designar os milionários que encomendaram clones como “patrocinadores”. O patrocinador do personagem principal, o clone Lincoln six Echo, é um sujeitinho aventureiro, conquistador, sem escrúpulos e sem moral, que não se preocupa nem um pouco com o lado humano dos “produtos”. Já o seu clone é um idealista que quer salvar sua “raça”. Ewan McGregor presta-se bem aos dois papéis com seu sorriso ambíguo, que tanto pode expressar simpatia como cafajestice.
Scarlet Johansen acaba eclipsada no papel de interesse romântico de Lincoln, o que, diga-se de passagem, é um desperdício. O mercenário Djimon Hounsou sempre faz questão de lembrar suas origens, reencarnando em papéis que trazem algo de sua própria vida. Steve Buscemi faz sempre o mesmo papel, o do sujeito que tem um pouco de canalha, mas ao mesmo tempo é um excelente amigo. O shakespereano Sean Bean (o popular chambinho) é o “Big Brother” que toma conta do complexo.
É com esta competente equipe que Michael Bay arma sua fábula. A construção que se faz da vida artificial no complexo dos clones funciona como um breve inventário de idéias tradicionais da ficção científica, revisitadas com relativa competência e surpreendentemente capazes de despertar interesse.
Na sociedade do complexo há muito de “1984”: assepsia, padronização, vigilância, controle sobre os sentimentos, proibição do sexo. Todas as pequenas instabilidades do indivíduo(produto) são monitoradas, desde os pesadelos até os sinais metabólicos detectados no exame automático das excreções. Todas as demandas vitais são devidamente administradas. Há inclusive atividades físicas nas quais os instintos sexuais e a agressividade podem ser sublimados ou dissipados. Como em toda sociedade totalitária retratada nas distopias da ficção, os clones experimentam também a alienação no trabalho. Em determinado momento, surge-lhes a inevitável pergunta: “de onde vêm esses tubos? E para onde vão?”
Quando um indivíduo precisa ser descartado numa emergência, como será o caso do “Winston” em questão, o personagem Lincoln six Echo, é emitido um “alerta de contaminação” sobre ele, ou seja, tal indivíduo é declarado uma “impessoa”. O amigo tonto de Lincoln tem algo de Parsons, amigo tonto de Winston no “1984”. Assim como o clone inteligente tem algo de Syme, a respeito de quem Winston tinha certeza de que seria vaporizado.
Também há algo de “Admirável mundo novo”: os clones são educados por meio das gravações com as quais suas mentes “infantis” são bombardeadas durante estágio de pré-consciência. Temos ainda um pouco de “Balde Runner”: criaturas não humanas que tentam parecer humanas a despeito da pouca experiência social. “A Ilha” menciona implantes de memória, como os que eram aplicados nos andróides do clássico de Ridley Scott, mas não explica como seriam feitos. E finalmente, Michael Bay nos brinda até com um pouco de “Matrix”, pelo menos no que se refere ao visual, como no caso das cápsulas em que os clones são gestados.
Além da reciclagem da ficção científica tradicional, claro que também há algumas tiradas cômicas com o nosso mundo real. O presidente dos Estados Unidos é um idiota que só fala bobagens. E o seu clone, congenitamente, é um idiota do qual ninguém gosta.
Desenvolve-se no roteiro a limitada tentativa de passar a lição moralista de que o homem não pode brincar de Deus e não pode fabricar clones. Para isso, os clones do filme começam a desenvolver memórias que pertencem a seus donos, o que constitui uma fantasia mística totalmente sem base concreta. Esse é o ponto de partida para que o personagem principal possa se libertar. Mas não ficamos sabendo como se pode explicar, cientificamente, a presença física de memórias de um ser humano no cérebro de outro.
Esse fenômeno só acontece porque é necessário para que o filme possa defender, à sua maneira canhestra a tese peculiar à mentalidade religiosa estadunidense difusa de que tudo aquilo que é humano (até mesmo um clone) é sagrado e deve ter sua dignidade resguardada. É claro que as teses e antíteses a respeito são apenas embrionariamente esboçadas, num nível em que não é possível concordar nem discordar completamente, por falta de precisão. Todas as questões científicas, éticas, históricas, sociológicas relevantes e pertinentes são soterradas por toneladas das inevitáveis cenas de ação espetaculares.
A dificuldade de abordar tais temas não é gratuita. Os filmes de ficção científica estão se aproximando da época em que o “futuro” deveria estar acontecendo. A promessa da emancipação humana exclusivamente por meio da tecnologia não está se verificando no mundo real, e não se pode crer que possa sê-lo na ficção. A data fixada para o “futuro” em “A Ilha” é o ano de 2019, que não está assim tão distante de nós no tempo. De modo que é acessível à fantasia de qualquer um especular sobre quais inovações tecnológicas estarão disponíveis ou não e em que medida a humanidade estará emancipada ou não. O cientificismo tecnocrático da ficção científica não mais convence com facilidade dos seus anos dourados. Está “perdendo a graça”.
Mas prossigamos na exploração das possibilidades do complexo. A tentativa fascista de manipular a sociedade ali confinada somente funciona porque os seus prisioneiros clones não têm contato com os dois extremos naturais da vida humana, o nascimento e a morte, e não tem tempo para refletir sobre eles. Não há crianças e não há idosos no complexo. Não há casais. As mulheres que engravidam (barrigas de aluguel) vão para “a ilha”, sendo retiradas do convívio. Os novos clones são trazidos com a desculpa de que mais gente está sendo resgatada do mundo exterior. Quando chega a hora dos órgãos serem aproveitados, o clone é devidamente sorteado pela loteria e retirado do complexo.
Não há pois nascimento e morte, há chegada e saída do complexo. Os clones não tem que se preocupar com questionamentos metafísicos sobre o sentido da vida. Cabe-lhe levar uma vida parcial de alguns anos de duração entre a chegada e a partida. Hábitos simples, poucas emoções, baixa densidade, complexidade limitada.
Lincoln six Echo é um dos poucos que começam a questionar tudo: por que as roupas tem que ser brancas? Quem arruma tudo nas gavetas? Sua curiosidade só faz crescer à medida em que se tornam rotineiros seus encontros com o técnico do subterrâneo, personagem de Steve Buscemi, que lhe traz bebidas, entre outras raridades “remanescentes” do mundo exterior. Em breve, por conta de seu exemplo, descobre-se que toda uma geração de clones terá que ser descartada porque pode apresentar o “defeito” da curiosidade.
A curiosidade levará Lincoln a fugir e levar Jordan two Delta consigo. Os dois descobrem no mundo exterior a desconcertante verdade sobre sua existência, enquanto tentam escapar dos mercenários contratados por seus criadores. Desenrolam-se algumas cenas cômicas baseadas na inadaptação do casal principal ao cenário urbano do mundo real. E logo tudo se dilui na vala comum dos filmes de ação. Um roteiro que parte de premissas criativas, ainda que implausíveis, perde a chance de aprofundar as sugestivas questões que apresenta, amarrando-as na superficialidade filosófica. Uma espécie de ditado circula como verdade universal em vários momentos do filme: “uma pessoa faz qualquer coisa para sobreviver”. Isso significa inclusive matar. Isso se aplica tanto a um cientista-empresário como Merrick quanto ao clone fugitivo e seu patrocinador sem caráter.
De maneira bastante improvável, Lincoln resolve as coisas com seu antagonista pelas vias de fato (tente imaginar Winston saindo na porrada com o Grande Irmão). Claro que não se pode ir longe demais ao comparar uma obra radicalmente pessimista como o “1984” com um filme de final aberto como o d’ “A Ilha”. O que pensar de uma revoada de alguns milhares de clones de ricos e famosos vagando pelo mundo, expondo a vaidade e a falta de escrúpulos daqueles que querem viver para sempre?
Daniel M. Delfino
14/08/2005