Jornal 89: Fascismo e Estado de Bem-Estar
14 de maio de 2016
Tudo começou com a Alemanha da segunda metade do século 19.
Em 1850-70, a Alemanha, fora a Rússia czarista, era um dos países mais atrasados da Europa. Ainda sobreviviam, como parte das suas classes dominantes, os junkers, grandes proprietários pré-capitalistas de terra, produtores de cereais e que mantinham seus camponeses em uma miséria extrema. Eles controlavam o exército e a alta burocracia do Estado. A burguesia era muito débil se comparada, por exemplo, com a francesa e a inglesa e sofrera sucessivas derrotas para os junkers. O resultado foi que, em 1870, a Alemanha ainda não havia se unificado e os pequenos Estados germânicos serviam de campo de batalha para as disputas entre o Império Francês e o Império Austríaco (e, depois, Austro-húngaro).
Na segunda metade do século 19, tanto a burguesia quanto os junkers se deram conta de que suas sobrevivências em uma Europa crescentemente industrializada e capitalista dependiam da unificação do país; não seria possível manter seus privilégios de classes expostos, como estavam, à sanha dos impérios francês e austríaco. A unificação, contudo, somente seria possível mediante a um acordo entre a burguesia e os junkers − e o principal obstáculo estava na política agrícola. A burguesia, para derrubar o valor da força de trabalho, precisava importar o trigo francês e russo, muito mais barato do que o alemão. Abrir o mercado alemão aos cereais estrangeiros, contudo, destruiria o poder dos junkers que, até então, tinham conseguido reservar o mercado interno para seus produtos. Entre as duas classes parecia não haver espaço para negociações, muito menos para uma aliança duradoura.
É aí que entra Bismarck, o “chanceler de ferro”. Bismarck articulou uma política econômica capaz de contentar tanto a burguesia quanto os junkers – e também os trabalhadores! Aos junkers, garantiu que o Estado compraria os cereais a um preço superior ao do mercado internacional; à burguesia, assegurou que o Estado venderia esses cereais no mercado interno a preços subsidiados equivalentes ao do mercado internacional, derrubando assim o valor da força de trabalho. Além disso, para enfrentar a França e a Áustria, montou um gigantesco exército e os industriais passaram a contar com grandes encomendas bélicas estatais. A burguesia e os junkers passaram a ter em Bismarck um ponto de convergência de seus distintos interesses.
O apoio crescente dos operários e trabalhadores ao governo alemão tem suas raízes, não apenas na queda do preço dos alimentos graças aos subsídios aos cereais, não apenas nos empregos gerados pela indústria bélica, mas também na política externa imperialista levada a cabo pelo Estado germânico. O acesso a fontes de matérias-primas e energias mais baratas das colônias possibilitou a produção de bens de primeira necessidade com menores custos, ampliando assim o poder de compra de parte dos trabalhadores alemães, que passam a tirar vantagens da brutal exploração dos trabalhadores das colônias. Quanto mais baratos os produtos coloniais, melhor para eles! Um importante e majoritário setor dos operários e dos trabalhadores alemães se integrou ao bloco formado pelos junkers e pela burguesia na defesa dos interesses expansionistas e belicosos do império germânico. No interior do Partido Social-Democrata da Alemanha (aquele de Marx, Engels, Rosa Luxemburgo etc.) é impressionante como, desde 1870, há uma resistência cada vez maior dos sindicatos, controlados pelo partido, às posições de esquerda que se opunham às políticas imperialistas e belicistas.
Os trabalhadores ficaram felizes com um Estado que lhes vendia pão mais barato e gerava empregos, a burguesia ficou satisfeita por ter um trabalhador mais em conta e pelas enormes encomendas estatais e os junkers tiveram sua principal demanda atendida. Bismarck passou a ser uma unanimidade nacional e unificou o país depois de derrotar a Áustria e a França em duas guerras consecutivas. Por fim, consolidou o apoio de amplos setores dos trabalhadores ao permitir a legalização dos sindicatos e a participação eleitoral do Partido Social-Democrata.
Ao lado disso, a expansão industrial, com a concentração de capitais e o crescimento dos centros urbanos, também gerou espontaneamente a aristocracia operária que, como vimos, atua como uma aliada do capital contra o conjunto do proletariado (Jornal Espaço Socialista no. 82).
Enquanto na França e na Inglaterra a burguesia destruiu as classes pré-capitalistas, na Alemanha a passagem a uma economia capitalista moderna de se deu em aliança com os junkers. O desenvolvimento do capitalismo na Alemanha ocorreu, portanto, com uma enorme dependência para com o Estado e em aliança com o latifúndio pré-capitalista. A intervenção estatal na economia teve um papel muito mais decisivo que nos casos do capitalismo francês e inglês, para pegar dois casos típicos. E os resultados, do ponto de vista do capital, são tão bons, que, logo, a burguesia francesa e inglesa olhariam com interesse o exemplo germânico.
O período entre-guerras
O “entre-guerras” é como se denomina período entre o final da Primeira Grande Guerra (1914-1918) e o início da Segunda (1939-45). Ele se inicia com a derrota da Alemanha e, em seguida, com a crise que conduziu à Revolução Alemã (1918-1922, também derrotada). Na França, na Inglaterra e também nos Estados Unidos, a situação econômica não era tão grave quanto na Alemanha, mas também não era tranquila. Por um lado, a economia europeia sofria a concorrência da economia estadunidense, que caminhava para se tornar a primeira potência mundial. Por outro lado, tanto a França e a Inglaterra quanto os Estados Unidos, com o fim da guerra, conheciam uma superprodução que ameaçava o início de uma nova crise cíclica.
Nesse contexto, principalmente na França, começam a crescer os partidários, entre a burguesia e a aristocracia operária, da tese segundo a qual era preciso que o Estado interviesse na economia para ampliar o consumo, gerar empregos e alavancar a lucratividade dos grandes capitalistas. O exemplo alemão era o mais citado: as políticas de Bismarck não haviam possibilitado um crescimento impressionante da Alemanha, convertendo-a em potência mundial em poucas décadas? Além disso, as encomendas por armas, fardamentos, etc. durante a I Grande Guerra não serviram para desenvolver a economia, gerar empregos e aumentar a lucratividade do capital francês? No início mais lentamente, mas ganhando impulso depois de 1930, tem-se o desenvolvimento, na França, de um Estado que vai intervir cada vez mais intensamente na economia.
Esta intervenção assume diversas formas, não apenas fazendo encomendas ao setor privado, regulamentando o mercado de trabalho e estimulando o crescimento populacional, mas também fomentando políticas públicas que reduzem o valor da força de trabalho ao fazer do Estado responsável por uma porção importante do custo da sua reprodução. Um Estado que gera empregos e põe em prática políticas públicas passa a ter um apoio crescente da aristocracia operária e de sua burocracia. Segundo esta, o Estado estaria se democratizando e deixando de ser burguês, pois estava também atendendo aos interesses dos assalariados!
Na Inglaterra, onde a burguesia era mais forte e tinha um maior controle tanto sobre o Estado quanto sobre a economia, apenas depois da crise de 1929 passaram a ganhar espaço as ideias favoráveis a um Estado que interviesse na economia por meio de políticas públicas e de incentivo ao complexo industrial-militar.
No início de 1920, além disso, ocorreu uma importante inovação no padrão capitalista de produção, com fortes impactos sobre o fenômeno que analisamos: o surgimento da linha de produção fordista. A concentração de capitais e o desenvolvimento do mercado consumidor dos Estados Unidos possibilitaram o surgimento da indústria fordista, isto é, uma produção em linhas de montagens de milhares de produtos idênticos. Com isso, não apenas cai o preço unitário da mercadoria, como ainda a padroniza, tornando eficaz a manutenção de carros, motores, etc. A importância do fordismo pode ser avaliada muito simplesmente: os carros mudaram a face do planeta Terra em menos de meio século! O mercado de consumo de massas, com produtos fabricados em vastas quantidades, passa a ser a ordem do dia do capitalismo internacional.
Para o nosso tema, o importante é que o fordismo aumentou a produção de tal forma e com tal intensidade que a superprodução conduziu à maior crise cíclica da história: a crise de 1929. Notem a sequência no tempo: a crise tem início em 1929 e, em 1930, atinge a Europa e o restante do mundo. Em 1931 Hitler chega ao poder. Em 1933-4 a crise está no seu momento mais agudo. Em 1936 tem início a Guerra Civil Espanhola, que se estenderia até 1939. Alguns meses depois, em setembro de 1939, tem início a Segunda Grande Guerra. Só então a crise de 1929 é, de fato, superada.
Quando a crise se anuncia, em 1929-30, há um forte deslocamento no interior da burguesia mundo afora (Brasil incluso) para posições que defendem a intervenção econômica do Estado. Que o Estado deveria intervir com políticas públicas que aumentassem o lucro dos empresários, com encomendas que ampliassem a produção e gerassem empregos (infraestrutura e armas), com estímulos ao consumo pela criação de créditos, etc. – isto estava se tornando consenso entre os grandes burgueses. J. M. Keynes, o economista inglês, foi o principal teórico e defensor desta intervenção. A divergência entre os burgueses não estava na necessidade de uma gigantesca, antes nunca vista, intervenção do Estado na economia. Nisso todos concordavam. As divergências estavam em como se enfrentar as consequências políticas e sociais dessa intervenção.
Parte importante dos burgueses avaliava, com algum exagero, mas, não, sem alguma razão, que uma maior intervenção do Estado na economia reduziria o poder e o espaço dos empresários, na medida em que uma parcela cada vez maior das atividades econômicas ficariam diretamente sob controle do Estado ou, ao menos, seriam indiretamente dele dependentes. E, dada à tendência ao desenvolvimento da aliança de setores da burguesia com a aristocracia operária, o perigo de um “socialismo” não deveria, aos olhos desses setores empresariais, ser descartado. Nesse contexto, uma parte da burguesia francesa, estadunidense e inglesa olhava com simpatia o que ocorria naqueles dias na Alemanha.
A Alemanha, já mencionamos, saiu da Primeira Guerra (1914-18) derrotada e com uma classe operária em ebulição. Entre os anos de 1918 e 1922 a Revolução Alemã foi uma ameaça real. Abatida pela derrota, dividida ao meio pelo corredor de Danzig, com a economia em frangalhos, a Alemanha não tinha como concorrer com o fordismo que se desenvolvia nos países mais avançados, e sua crise só se aprofundava. Com a chegada dos anos de 1929-30, a economia alemã naufragou: uma hiperinflação aliada à recessão econômica gerou um desemprego estratosférico. Derrotada em 1918-22, a classe operária não tinha como reagir mas, ainda assim, contava com o maior Partido Comunista da Europa e um importante Partido Socialista. E, somando impropérios ao insulto, os representantes da burguesia no parlamento e no governo não conseguiam um acordo ao redor de uma estratégia de enfrentamento da crise.
Foi então que a burguesia alemã, hesitantemente no início, transferiu o poder a um político até então secundário, mas que prometia acabar com os “vermelhos” e “bolcheviques” e possuía um programa econômico que poderia dar certo: nas novas condições, repetir Bismarck! Promover a militarização da economia pelo desenvolvimento do complexo industrial-militar, preparar o país para uma expansão militar de modo a fornecer à Alemanha matérias primas e fontes de energias baratas para que a indústria germânica pudesse concorrer com a da Inglaterra, França e Estados Unidos e, ainda, com isso criar empregos, ganhar o apoio dos trabalhadores e massacrar os partidos de esquerda, de coloração socialista ou comunista. Pela repressão da esquerda estaria excluída a possibilidade de o crescimento do peso do Estado na economia ameaçar o poder do empresariado, bem como impediria o movimento dos trabalhadores de se aproveitar da economia em expansão, com a queda do desemprego, para exigir melhores condições de vida e trabalho.
Esse político secundário era Hitler, seu projeto político-econômico, o fascismo e seu partido, o Partido Nacional-Socialista. Logo ele se tornaria uma unanimidade nacional: das classes mais conservadoras (junkers), passando pela burguesia e chegando ao proletariado, o fascismo era tido como a salvação da Alemanha.
Nos Estados Unidos a situação era diferente. A crise econômica era violenta, mas o movimento operário mais à esquerda, os Wobblies (1), havia sido esmagado e a repressão (com o apoio da máfia seguidas vezes) se encarregava de conter qualquer líder sindical mais combativo. O “estoque” (era assim que diziam) de trabalhadores negros miseráveis cumpria a função de desmobilizar as lutas ao substituir os trabalhadores “recalcitrantes”. O New Deal (uma forte intervenção pelo Estado na economia, principalmente na infraestrutura e agricultura) de Roosevelt começou a dar certo. Sem a ameaça de um levante operário ou de um “socialismo” pela estatização de uma parte da economia, nos EUA os partidários da “via alemã” eram minoritários.
Na França, ao contrário dos EUA, uma parcela muito grande da burguesia, da pequena burguesia e dos pequenos proprietários agrícolas, adotou a alternativa fascista. E há duas fortes razões para isso: em 1936, uma gigantesca greve operária sacudiu a França impulsionada por uma frente antifascista, a Frente Popular. A derrota da greve, em parte devido à atuação do Partido Comunista Francês e da aristocracia operária, e a tragédia administrativa que foi o governo da Frente Popular (Leo Blum), enfraqueceram a esquerda e, correlativamente, fortaleceram os setores que enxergavam uma solução de força como imprescindível para se sair da crise. Em segundo lugar, a massa de pequenos camponeses fornecia importante base social aos conservadores e fascistas.
Na Inglaterra, a situação era mais desfavorável ao fascismo. Em larga medida, porque a aliança da aristocracia operária com o grande capital estava mais avançada que nos outros países e o medo de uma revolta de trabalhadores era bem menor. Por outro lado, o enorme império colonial inglês e seu poderio militar-naval conferiam à sua burguesia uma situação hegemônica mais confortável.
Exceto na França, portanto, as perspectivas de expansão do fascismo eram débeis.
A eclosão da Segunda Grande Guerra (1939-45), com a invasão da Polônia pelos nazistas, decidiu a questão. Nos meses anteriores à invasão, houve uma intensa dança diplomática. A Inglaterra e a França instavam Hitler a invadir a União Soviética e, Stalin acabou fazendo um acordo com Hitler com a esperança de evitar a invasão (esperança vã pois, em 1941, Hitler invadiu a URSS).
Com a guerra, uma parte da burguesia francesa se aliou com os nazistas (que ocuparam o norte do país) e montou um governo fantoche e fascista em Vichy (uma cidade no centro da França). Outra porção da burguesia francesa, minoritária, se voltou contra os fascistas e seu principal representante, Charles de Gaulle, se exilou na Inglaterra. Na Inglaterra e nos EUA, a luta contra a Alemanha nazista tornava impossível adotar o fascismo: as posições favoráveis a uma pesada intervenção do Estado na economia sem o fascismo se tornaram predominantes. Essa alternativa foi o Estado de Bem-Estar.
Nos países europeus, com a derrota da Alemanha e da Itália, o fascismo despareceu com o fim da Guerra (1945). O governo de Vichy, fascista, foi prontamente substituído pelo Estado de Bem-estar montado por de Gaulle com o apoio do PC e dos grandes sindicatos dominados pelos burocratas da aristocracia operária. O Estado de Bem-estar passou a predominar em todos os 8 ou 9 países imperialistas.
Desde pelos menos 1935, quando a III Internacional lançou a política de Frente Popular para enfrentar o fascismo, em especial os Partidos Comunistas mas, em geral, a esquerda como um todo, alardeavam que o fascismo seria o oposto da democracia, que a conquista da democracia seria a derrota do fascismo. Ao final da Guerra, os países vitoriosos comemoraram “a vitória da democracia contra o fascismo”. E, assim, surgiu um mito: o de que democracia e fascismo são de tal modo antagônicos, que a democracia seria o oposto do fascismo; contra este último, a panaceia universal seria a democracia.
As coisas não são bem assim. Pois entre a democracia do Estado de Bem-estar e o fascismo há muitos pontos importantes em comum.
Estado de bem-estar versus fascismo?
As diferenças existem, mas não são entre duas formações sociais antagônicas.
Em ambos os casos, temos a mesma formação básica da sociedade, que já tratamos no Jornal Espaço Socialista n. 88: a sociedade é ordenada pelo capital, o Estado é o Estado burguês (aquele que corresponde às necessidades de uma vida social em que a exploração dos trabalhadores se dá por meio do mercado). A sociedade é burguesa tanto no fascismo quanto no Estado de Bem-estar, a propriedade privada é a mesma, o capital. O patriarcalismo está presente tanto no fascismo quanto no Estado de Bem-estar e, assim, sucessivamente.
Do ponto de vista econômico, o projeto fascista e o do Estado de Bem-estar são bastante semelhantes: ampliar a exploração dos trabalhadores através de políticas públicas que desvalorizassem a força de trabalho, investimentos estatais em infraestrutura e no complexo industrial militar e, no plano internacional, uma política imperialista de expansão. A diferença importante é que a Alemanha não tinha um império colonial e os outros países possuíam impérios consideráveis. Por isso a Alemanha tomou a iniciativa militar e passou para a história como a nação belicosa.
Do ponto de vista político, há uma forte coincidência: manter o poder do capital e evitar toda possibilidade de uma revolta operária por meio de toda a repressão que fosse necessária. Além disso, manter a aliança do grande capital com a aristocracia operária. A diferença gritante, nesta área, é a estratégia de controle: através das liberdades democráticas ou pela negação das mesmas.
Contudo, também aqui há que se ter cuidado: pois os Estados democráticos foram os que mais desenvolveram e empregaram os modernos métodos de tortura, tanto hoje quanto no período logo depois da Segunda Guerra Mundial. A França é quem criou o “moderno método de tortura”, com afogamento e choques elétricos. No governo democrático francês torturava-se em Paris no mesmo prédio que a Gestapo nazista torturava os patriotas franceses. Os horrores perpetrados pela França no Vietnam e na Argélia apenas serão equivalentes aos horrores nazistas e, depois, aos que os EUA fizeram na Coréia e no Vietnam. A democracia dos Estados de Bem-estar torturava também, reprimia também e também perseguia os trabalhadores combativos – nisso não era tão diferente do fascismo. Mesmo a perseguição aos judeus – a “solução final” – tem seu paralelo no massacre dos palestinos quando da criação do Estado de Israel (1948), dos argelinos pelo imperialismo francês (A Guerra da Argélia) e no massacre de 3 milhões de vietnamitas pelos EUA menos de uma década depois.
Se a perseguição política e a censura é uma característica da Alemanha e da Itália fascistas, também o é na França democrática de de Gaulle, dos EUA com seu macartismo, também o são a tortura e o massacre do grupo Baader-Meinhof, pela democracia alemã, etc. Os muitos relatos nesse sentido são indicativos do quanto a democracia burguesa é compatível com a repressão e a tortura. Que Guantánamo, o maior e mais terrível centro de tortura já conhecido pela humanidade, obra da democracia estadunidense de nossos dias, não nos deixe mentir.
Se Hitler invadiu os países vizinhos, os Estados de Bem-estar já haviam invadido os países que colonizaram e, durante o pós-guerra, intensificaram a exploração de suas colônias por meio das multinacionais. Imperialistas eram, de fato, todos.
Do ponto de vista da permanência na história, temos a primeira grande diferença: o fascismo é derrotado e desapareceu do mundo em 1945, o Estado do Bem-estar seria muito melhor sucedido e sobreviveria pelo menos até a década de 1970. A segunda grande diferença é que o fascismo apenas existiu em países em que uma burguesia débil se aliou à latifundiários pré-capitalistas para realizar a industrialização do país.
Vejam: o fascismo e o Estado de Bem-estar são distintos, mas não são tão diferentes quanto clamam os partidários de um ou de outro. Ambos são respostas do capital à mesma situação histórica. Surgem, ambos, no mesmo contexto de crescente instabilidade do capital no período entre guerras. O que os difere é a situação histórico-concreta da Alemanha em comparação com a França, Inglaterra e EUA.
Fascismo, hoje?
Tornou-se muito frequente denominar todo Estado ditatorial, ou toda medida com caráter repressivo, de fascista. Isto pode ter algum valor como propaganda, mas é um erro do ponto de vista científico. E, mais comum do que raro, sugere uma tática também incorreta: a defesa dos direitos e da democracia seria a forma de se enfrentar o fascismo. Tanto a Alemanha quanto a Itália chegaram democraticamente ao fascismo, a tática da Frente Popular, centrada na defesa da democracia, não foi capaz de derrotar o fascismo sequer uma vez.
A democracia burguesa pode ser mais autoritária ou menos autoritária, pode ter eleições ou não, pode ter um poder mais concentrado ou mais descentralizado; pode ter eleições diretas ou indiretas (como ocorre ainda hoje nos EUA); pode ser monarquista ou republicana, pode ser mais tolerante com as minorias ou mais conservadora, pode reconhecer o direito ao aborto ou não, etc., pode possibilitar maior ou menor liberdade sindical, política, etc. Como vimos no Jornal Espaço Socialista passado, de n. 88, a democracia é essencialmente a formação social em que o capital se emancipou politicamente do Estado e sua forma pode variar enormemente.
O fascismo, por outro lado, é um fenômeno que apenas ocorreu na Alemanha e na Itália. Correspondeu a uma forma peculiar de desenvolvimento de potências imperialistas com um capitalismo muito tardio e com uma burguesia fraca incapaz de derrotar os junkers (2). Sua principal característica é o desenvolvimento industrial sob a tutela do Estado, com uma forte orientação bélica atrelada a uma política externa imperialista e em aliança com latifundiários pré-capitalistas. O terror político conta com amplo apoio, não apenas das classes dominantes, mas também entre os trabalhadores e operários. Depois das misérias do período posterior à Primeira Grande Guerra e da crise de 1929, os empregos e as melhorias de vida – e as promessas de uma Alemanha imperialista que duraria mil anos – foram suficientes para atrair o apoio de amplos setores dos trabalhadores.
Em poucas palavras, tal como a crise estrutural impede um Estado de Bem-estar hoje, também inviabiliza o fascismo em nossos dias. O crescente autoritarismo dos Estados, a crescente autonomia dos aparelhos repressivos, a intensificação das torturas e dos aparelhos de controle – principalmente nos países que, como a França, a Inglaterra e os EUA, são reconhecidos como democráticos – nada têm de fascistas, nem pode ser combatidos com eficácia a partir desse equívoco. Seu fundamento de classe e os problemas que o atual autoritarismo pretende resolver, são inteiramente distintos.
Um Estado que intensifica a repressão é apenas um Estado que intensifica a repressão. Isto não é fascismo. Identificar a “direita” como fascista, em nosso país hoje, é um equívoco. Pois, o PT e seus partidários são tão de direita quanto o PSDB e seus partidários. E o Bolsonaro e catervas podem ser tudo, menos fascistas – assim como ditadura militar não foi fascista.
Mas isso já é matéria para outro artigo.
Leitura recomendada:
Para se conhecer o fascismo, não há melhor livro de história que Ascensão e Queda do III Reich, de W. Shirer. O estudo mais importante sobre a relação da democracia com a tortura não possui tradução para o português: Torture and democracy, de Rejali, D. (2007). Jose Chasin, em O integralismo de Plínio Salgado, forma de regressivida no capítalismo hipertardio (1978) faz uma bela discussão sobre o fascismo e sua impossibilidade em um país como o Brasil. Infelizmente a obra está mais do que esgotada.
Notas:
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Industrial Workers of the World (Trabalhadores industriais do mundo), o Wobblies era uma organização sindical de caráter revolucionário que teve importância principalmente nos EUA e Canadá, nas primeiras décadas do século 20.
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Mudando o que deve ser mudado, o mesmo vale para a Itália.