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Jornal 87: Crise estrutural e ofensiva socialista


13 de março de 2016

3Ao menos desde as linhas iniciais do Manifesto Comunista, de 1848, escrito por Marx e Engels, na qual lemos “Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”, até os nossos dias, não é raro ser encontrada entre os revolucionários uma concepção segundo a qual o capitalismo estaria fadado a um inevitável desaparecimento. Do fato de que o capitalismo gera contradições que ele não pode superar, de que cria o “seu próprio coveiro”, o proletariado, por vias muito variadas chega-se, não raramente, à conclusão de que o fim do capitalismo seria não apenas inevitável mas, ainda, apenas uma questão de tempo.

Nos períodos de crise revolucionária, como nos anos finais e posteriores à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ou, ainda, de crises econômicas mais agudas, como quando da crise de 1929, os fatos fortalecem a aparência de que, de fato, o capital e o modo de produção que ele estrutura terminariam por colapsar, dando origem ao comunismo. A cada aumento da intensidade da luta de classes ou, mesmo, de aprofundamento da crise econômica – pelas vias as mais diversas – muitas vezes chega-se à conclusão de que bastariam as contradições geradas pelo próprio capitalismo para que o capital desapareça da história.

Essa concepção, ingênua, está distante da concepção de revolução de revolucionários como Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, para não mencionar a de Marx e Engels. Além disso, ela foi poucas vezes sistematizada em uma teoria acabada, consistente. A mais famosa delas é o texto de Henryk Grossmann, A lei da acumulação e do colapso do sistema capitalista, de 1929. Sua tese fundamental é que as contradições econômicas inerentes ao modo de produção capitalista conduziria ao colapso geral do sistema, independente do que os humanos fizessem. E pretendia haver demonstrado matematicamente essa inevitabilidade .

Politicamente, essa concepção faz um enorme estrago ao movimento revolucionário. Por duas razões, fundamentais. Primeiro, porque não corresponde à realidade do capital, nem do seu sistema. Em segundo lugar, porque abre amplas portas ao reformismo.

O colapso automático do capital

As propriedades privadas dos modos de produção pré-capitalistas, a saber, os modos de produção escravista, asiático e feudal, tinham como característica central uma rígida conexão à terra. Nesses três modos de produção, a acumulação da riqueza da classe dominante se fazia pelo aumento da propriedade da terra e pelo aumento de trabalhadores nela fixados. Ainda que sejam relações de produção muito diferentes e, portanto, que suas evoluções, suas histórias, sejam bastante distintas, nesses três modos de produção a acumulação da riqueza pela classe dominante tinha um limite físico: a partir de um determinado ponto da expansão, não havia mais forças econômicas e\ou militares para se conquistar mais terra e subjugar mais trabalhadores.

Ao atingir-se esse ponto, abrem-se as crises que conduziram os modos de produção feudal e escravista aos seus desaparecimentos. É o que Marx e, depois, Lukács, denominaram de “beco sem saída”: o escravismo e o feudalismo desapareceriam por suas próprias contradições (novamente: por mais diferentes que fossem as contradições e o modo desse desaparecimento). Ainda que no modo de produção asiático as coisas não tenham se passado exatamente assim, também nele o processo de acumulação encontrou seu limite na impossibilidade de se conquistar mais terras e\ou de fixar nela mais camponeses.

Para o nosso tema, o mais interessante para uma comparação é a transição do escravismo ao feudalismo. As contradições que dissolveram o escravismo foram geradas por ele próprio. A dissolução das relações escravistas de produção foi lenta, demorou cerca de 7 séculos para se completar (para alguns historiadores, mesmo 9 séculos)! Não havia uma classe revolucionária e a transição ocorreu sem qualquer direção política ou social. O escravismo foi desaparecendo e, lentamente, de modo muito desigual e contraditório, de seus vestígios foi surgindo o feudalismo.

Com o sistema do capital, nada disso irá acontecer. E o motivo fundamental dessa diferença está no próprio capital. Este é uma propriedade privada cuja acumulação se faz, de modo fundante, pela extração da mais-valia do proletariado e se expressa sob a forma de dinheiro. Um capital pode, assim, passar de 10 para 10 mil, de 10 mil para 10 milhões, bilhões, trilhões… indefinidamente – indefinidamente, claro, desde que nos limitemos apenas e tão somente no seu processo de acumulação.

É essa capacidade ilimitada de acumulação do capital que faz com que o desenvolvimento do seu sistema pode até conduzir ao fim da humanidade – com o que, evidentemente, terminaria o capital –, mas não conduzirá, jamais, direta ou automaticamente ao fim do capital através de sua superação pelo modo de produção comunista. Em tudo diferente do escravismo, o capitalismo não conhece um “beco sem saída”: sem a revolução, uma ação consciente dos trabalhadores e proletários contra o capital, nenhuma transição para além do capital será possível.

Novamente: não por uma questão de crença ou de opinião! Mas porque o capital não conhece, em si próprio, nenhum “beco sem saída” em sua acumulação.

Marx, Lukács e Mészáros

As três obras decisivas da teoria revolucionária, O Capital, de K. Marx, a Ontologia de Lukács e o Para além do capital, de Mészáros, compartilham de algo comum em seus destinos. Foram as três, em larga medida, ignoradas pelos debates e pelas teorias a elas contemporâneas. O desespero de Marx e Engels chegou ao ponto de este último escrever resenhas, sob pseudônimo, em órgãos de imprensa tentando chamar a atenção para o texto de Marx. Não conheço nenhum caso semelhante em se tratando da Ontologia e do Para além do capital – mas, cá entre nós, até que não seria uma má ideia!

As três obras, também, quando receberam algum comentário de contemporâneos, na enorme maioria das vezes foram falsificadores ou expressavam profunda incompreensão do texto em apreço. Em se tratando da obra-prima de Mészáros, a situação pode parecer um pouco distinta porque vivemos no país em que ela recebeu, de longe, a maior atenção em todo o mundo. Mas, mesmo em nosso país, pouco conhece e muito pouco se publicou sobre Para além do capital.

Um dos equívocos mais correntes sobre o texto de Mészáros é a intepretação que fazem de sua categoria de crise estrutural. Primeiro, esta apenas pode ser corretamente compreendida se for articulada tanto com sua concepção do capital (uma acumulação da propriedade privada que apenas pode existir intensificando-se ininterruptamente) quanto com sua concepção do sistema do capital. Segundo, ela não pode ser compreendida se desarticulada da necessidade de uma ofensiva socialista.

Vejamos essas duas articulações.

Crise estrutural

O fato de o capital ordenar um modo de produção que tende a um aumento constante da produção e da capacidade produtiva, já no século 19 conduziu às crises cíclicas. A surpresa de David Ricardo, o maior economista burguês, ao eclodir a primeira crise cíclica, é sintomática de que a esfera da economia estava conhecendo uma situação histórica qualitativamente nova. Após a Revolução Industrial (1776-1830), o aumento da produção leva – no passado e ainda hoje – ao aumento da oferta a tal ponto que ultrapassa a capacidade de consumo: atingimos a superprodução. A produção de mercadorias se inviabiliza e é interrompida, aumentando o desemprego e dando início ao círculo vicioso das crises cíclicas: cai a produção, aumenta o desemprego, despenca o consumo e, a produção, é novamente derrubada. Os bancos para compensarem as perdas, elevam os juros. A agricultura, vendendo menos para as indústrias, não conseguem pagar os juros elevados. Tudo, então, colapsa e a crise atinge seu ponto mais agudo.

Sem a produção, mais cedo ou mais tarde, a crise esgotava a superprodução, os produtos voltavam a faltar e a economia voltava a crescer. Com uma importante diferença: como na crise os pequenos são engolidos pelos grandes, a cada novo crescimento econômico o capital se concentra, as empresas e suas produções se tornam ainda maiores, conduzindo a crises cíclicas cada vez mais agudas.

No jornal Espaço Socialista passado, o de número 86, comentamos essa dinâmica das crises e, por isso, podemos economizar espaço. Basta relembrar que esse processo de concentração do capital recebe um enorme reforço com o fordismo e o Estado de Bem-estar nos países imperialista (”bem-estar”, lembremos, que é apenas a expressão do imperialismo e da exploração predatória da força de trabalho e das riquezas naturais da periferia do sistema). E que esse reforço conduziu à crise de 1929 e, já depois, na década de 1970, à crise estrutural.

A crise estrutural é a expressão, na teoria, da mudança de qualidade no, sempre, problemático processo de acumulação do capital.

Antes da crise estrutural, que se inicia ao redor dos meados de 1970, havia ainda novos territórios para o capital se expandir e novas esferas econômicas para ele ocupar ou desenvolver. Como vimos no Jornal Espaço Socialista n. 79, quando tratamos das causas históricas mais profundas de as revoluções não terem aberto à transição ao socialismo, antes de década de 1970 havia ainda a possibilidade do desenvolvimento nacional das forças produtivas. Foi assim que a antiga URSS e a atual China puderam transitar, em poucas décadas, de países dos mais atrasados do mundo a potências econômicas de primeira linha.

Ao lado disso, a superprodução ainda não era de tal ordem que as crises não a pudessem superar momentaneamente. Assim, após cada crise, abria-se um período de expansão da economia, empregos eram gerados, novos investimentos eram realizados, ocorria uma nova rodada de concentração do capital etc. Por ser de menor volume, a superprodução também podia ser contrabalançada, ainda que momentaneamente, pelo complexo industrial-militar, pelas guerras localizadas (Coréia, Vietnam etc.) e algumas políticas públicas.

Com a crise estrutural, essa qualidade da reprodução do capital desapareceu e é substituída por outra. A superprodução é de tal monta que a crise não é capaz de consumi-la. A superprodução se torna permanente e, correspondentemente, a crise se tornar permanente. Agora, nenhuma medida conjuntural ou política localizada pode reverter a crise: apenas um mudança estrutural pode reverter uma crise estrutural.

A nova qualidade da crise, de cíclica a estrutural, se expressa imediatamente em que a sobrevivência das empresas requer que se aumente a produção com cada vez menos força de trabalho. A contradição do sistema se agudiza: com maior desemprego, o consumo cai, a superprodução se mantém e a crise não é superada. A produção e o consumo tornam-se frenéticos: é preciso fazer quem ainda consome, consumir cada vez mais e, para isso, deve-se produzir cada vez mais e mais barato com cada vez menos trabalhadores.

Cada vez uma parte menor da humanidade pode fazer parte do sistema do capital, quer como produtor quer como consumidor. As cidades se convertem em gigantescas favelas, o campo em enormes vazios preenchidos por gado, cerais e muitos poucos trabalhadores. A sociedade vai se dissolvendo em uma crise permanente, em uma violência e um desespero que só são socialmente equiparáveis à desesperança por dias melhores. O capital, gerado pela produção crescente, não consegue retornar à produção e tem que se refugiar no sistema financeiro e nos serviços – o desmensurado crescimento de ambos é apenas uma das manifestações da crise estrutural. O número de suicídios supera os dos mortos em conflitos armados: o capital, uma criação humana, está destruindo os humanos.

Sendo breve: porque a acumulação do capital não conhece um “beco sem saída”, este processo não terá fim sem uma ofensiva socialista.

Ofensiva socialista

A nova qualidade que a crise estrutural trouxe para a reprodução do sistema do capital como um todo tem um profundo reflexo na luta de classes.

Antes da crise estrutural, principalmente nos períodos de crescimento econômico entre duas crises ou na expansão do capital a enormes territórios com o da antiga URSS e da atual China, era possível a melhoria da qualidade de vida e do aumento do consumo de parte importante dos assalariados. Não todos, evidentemente, mas de uma parte muito importante. Nos países imperialistas centrais, por vezes mesmo da maioria dos assalariados. Na URSS, a vida dos trabalhadores, se comparada à vida dos mesmos sob o czarismo, conheceu uma melhoria brutal em poucos anos. Na China, algo semelhante.

Essa situação de fato fez com que a participação dos trabalhadores, com seus sindicatos e partidos, no Estado, no parlamento, — no “jogo democrático”, para sermos breves –, tivesse alguns resultados : conseguia-se um melhor salário, um ou outro direito trabalhista, uma ou outra melhoria nas condições de trabalho, de moradia, de assistência médica, etc. O preço, elevadíssimo, era o de apoiar as “regras do jogo democrático”, o que terminou conduzindo à uma idolatria da democracia dos países imperialistas que, mais tarde, se expressaria na tese da democracia como valor universal dos eurocomunistas.

Não seria mais necessária qualquer revolução: a luta democrática nas instituições burguesas conduziria a um capitalismo cada vez mais humano e mais justo. De reformas e reformas… conhecemos todos essa ladainha.

À direita do movimento dos trabalhadores, o reformismo afirmava que a revolução não seria mais necessária. Mas, em setores à esquerda do movimento, a revolução também era descartada por outro argumento, aparentemente esquerdista: o de que o próprio capital produziria as contradições que levariam automaticamente ao seu colapso e ao socialismo — sem que uma revolução fosse necessária. Henryk Grossmann, nesse contexto, frequentemente é mencionado.

É contra o reformismo e contra o “automatismo” da transição ao socialismo que Mészáros assinala a necessidade de uma “ofensiva socialista”. Uma ofensiva que descarte a via reformista e que descarte todo automatismo: a revolução proletária apenas poderá ter lugar por uma ação coordenada e em larga medida consciente dos trabalhadores organizados ao redor do proletariado. A ação revolucionária é imprescindível para a revolução — e a revolução se tornou, além de necessária, possível: a crise estrutural não deixa a humanidade senão duas alternativas. Ou, para repetir Mészáros, “três, se tivermos sorte”: a destruição da humanidade, o comunismo ou a barbárie. Caso não transitemos ao socialismo, chegaremos à barbárie, diz Mészáros, apenas se tivermos a sorte de não sermos destruídos pelo capital.

A concepção de Mészáros que se expressa na sua teoria da crise estrutural nada tem em comum com as concepções e teorias, como a de Grossmann, acerca de um inevitável colapso do capital e um igualmente inevitável futuro socialista. Pelo contrário, afirma a necessidade da ação revolucionária para que a crise estrutural possa se converter em uma sociedade sem Estado, propriedade privada, família monogâmica ou exploração do homem pelo homem. Sem uma ofensiva socialista, nada de revolução!

Não são poucos os que enxergam em Mészáros um moderno Grossmann: estão tão equivocados quando se afirmassem que o sol nasce a oeste.

Indicações de leitura: há pouca literatura disponível sobre Mészáros, a crise estrutural e a ofensiva socialista. Mészáros e a incontrolabilidade do capital, de Cristina Paniago, é uma referência obrigatória. Em seu site (www.cristinapaniago.com) há artigos e textos que devem ser úteis. Sobre a revolução e a ação revolucionária nos clássicos do marxismo, vale salientar O que fazer?, de Lenin (as traduções disponíveis são equivalentes), O Manifesto Comunista, de Marx e Engels e, desde último, Do socialismo utópico ao científico.