Chavez e o Socialismo
3 de janeiro de 2009
Ao iniciar seu segundo mandato como presidente da Venezuela, em janeiro de 2007, o coronel Hugo Chávez anunciou um pacote de medidas que segundo ele estariam lançando seu país no rumo do “socialismo do século XXI”.
Entre essas medidas, estariam a nacionalização de empresas de setores estratégicos, como os de telefonia e energia elétrica (inclusive algumas de propriedade da estadunidense AES, dona da Eletropaulo no Brasil), o fim de algumas parcerias da estatal venezuelana de petróleo PDVSA com grupos estrangeiros, a revogação da autonomia do Banco Central, a cassação da concessão de uma das emissoras de TV que apoiaram ativamente o golpe de 2002, a mudança da estrutura administrativa, com a substituição das prefeituras por conselhos locais, e a troca do próprio nome oficial do país para “República Socialista da Venezuela”. Esse pacote “socialista” de Chávez foi lançado por iniciativa presidencial, por fora do Congresso Nacional venezuelano.
Imediatamente, desencadeou-se a reação da imprensa burguesa em todo o mundo, inclusive no Brasil. O caso foi tratado como escândalo nas manchetes de jornal e nos editoriais raivosos dos bem-pensantes guardiões da ordem. O líder venezuelano foi acusado de dinossauro, retrógrado, tirano, ditador, inimigo da democracia, etc., além de ser lembrado como amigo do “louco” e “terrorista” presidente do Irã Ahmadinejad, amigo de Fidel Castro, etc.
Os jornalistas da grande imprensa, como bons mercenários a serviço do capital, estão sempre atentos e vigilantes, prontos para condenar ao fogo do inferno qualquer ato que desagrade minimamente o mercado. Os lacaios letrados da burguesia exercem uma marcação cerrada sobre quaisquer iniciativas de soberania dos povos, por mais insignificantes que sejam, condenando-as de saída e impedindo que sejam entendidas e debatidas. Por meio da interdição do debate, estabelece-se um monopólio da opinião, através do qual a discussão sobre qualquer questão se transforma em um monólogo no qual apenas os detentores do poder podem se expressar. Uma vez que o pensamento único neoliberal não pode jamais ser contestado, segue-se automaticamente a ladainha de que o consenso de Washington deve ser obedecido à risca, o capitalismo é o único horizonte possível de liberdade e felicidade humana, etc. Toda e qualquer possibilidade de alternativa deve ser descartada em nome da obediência aos interesses do capital.
Idéias como socialismo, nacionalismo, soberania, latino-americanismo, precisam ser banidas do discurso, como se se tratasse de horrendos palavrões, blasfêmias e sacrilégios. A denúncia do imperialismo, da dominação estrangeira, da espoliação dos países, do massacre sobre os povos, é tratada com desdém, como se fosse uma “questão superada”, agora que todos supostamente usufruem as “benesses” da “globalização”. Nenhum país pode jamais ousar buscar um caminho próprio para tentar resolver os problemas de sua população.
Evidentemente, existe um grande exagero de ambas as partes, que impede a compreensão exata do que está se passando. Nem o pacote de Chávez é de fato socialista, e nem a mídia burguesa tem o direito de condená-lo. A campanha da mídia contra Chávez busca isolá-lo como fonte de uma espécie de ameaça “populista” e “antidemocrática” que estaria contaminando a América Latina, colocando em cheque a “estabilidade” da economia de mercado, cujo funcionamento “harmonioso” é a única garantia de “paz e prosperidade”.
O exemplo de Chávez está sendo seguido por Evo Morales na Bolívia, e já foram anunciados passos semelhantes por parte de Rafael Correa no Equador (entre esses passos o não pagamento dos juros da dívida externa) e Daniel Ortega na Nicarágua. Além disso, as parcerias do governo venezuelano com Cuba têm servido para revitalizar o regime de Fidel. Como se tudo isso não bastasse, o líder venezuelano estaria exercendo uma discreta pressão sobre o restante dos governos ditos “de esquerda” no continente, como o de Lula no Brasil, Kirchner na Argentina (que acaba de admitir a falência do modelo de previdência privada), Tabaré Vasquez no Uruguai e Michele Bachelet no Chile. Esses governantes de perfil mais “moderado”, que na verdade são alunos aplicados do modelo neoliberal, sofrem algum constrangimento na comparação com o “radical” Chavez. O exemplo venezuelano mostra que há outros caminhos para os países latino-americanos, e essa demonstração é perigosa porque invalida na prática a tese de que “não há alternativa” à política econômica ortodoxa aplicada em tais países.
Desenvolve-se uma espécie de disputa subterrânea entre essas duas vertentes da “esquerda” governante latino-americana. Do ponto de vista do capital, é absolutamente crucial que os governantes amigáveis ao mercado, como Lula e os demais, sejam os vencedores da disputa. Lula deve aparecer como a única versão de “esquerda” possível. Para isso, Chávez deve ser devidamente demonizado, suas idéias devem aparecer como absurdas, seus planos inviáveis, sua revolução bolivariana uma aventura irresponsável.
O fato de que o conjunto de medidas tenha sido anunciado diretamente pelo Presidente e não pelo Congresso é apresentado como evidência de um suposto pendor ditatorial de Chávez. Convenientemente, a hipocrisia burguesa esquece que, desde sua primeira eleição em 1998, Chávez já venceu de maneira esmagadora mais de meia dúzia de votações, entre eleições, plebiscitos e referendos. Além disso, foi vítima de um golpe de Estado em 2002, tendo sido reconduzido ao poder pela mobilização maciça das massas populares. Mais de um milhão de venezuelanos cercou o palácio presidencial, exigindo o retorno do presidente democraticamente eleito. Depois de reempossado, Chavez não reprimiu os golpistas, e somente agora em 2007 cassou a concessão de uma única das várias emissoras de TV que construíram o golpe. Ainda assim, acusam-no de antidemocrático.
A quase unanimidade que Chávez conseguiu em seu país está entalada na garganta da burguesia latino-americana, que não se cansa de buscar pretextos os mais absurdos para deslegitimá-lo. No que se refere ao caso do pacote “socialista” em questão, o Congresso venezuelano é composto exclusivamente por parlamentares de partidos chavistas. E foram os próprios partidos rivais que desistiram de participar das últimas eleições legislativas. Nesse caso, o fato de o conjunto de medidas “socialistas” de 2007 ter sido apresentado diretamente pelo presidente não faz a menor diferença. A votação no Congresso não passa de uma simples formalidade, uma espécie de debate interno ao conjunto dos partidos chavistas.
Entretanto, apesar de toda a popularidade de Chávez em seu país e da repercussão internacional de suas ações, o seu movimento está longe de merecer ser chamado de socialista. As medidas anunciadas no início deste ano não são sequer anticapitalistas. Permanecem nos limites do velho nacionalismo burguês. No mesmo dia em que as medidas “revolucionárias” foram anunciadas, as bolsas de valores se recuperaram do susto: haverá indenização para os acionistas das empresas nacionalizadas. Ou seja, Chávez não está desapropriando o imperialismo. Nacionalização com indenização é uma medida que não foge à estrita legalidade capitalista, já que respeita a instituição fundamental da propriedade privada.
O nacionalismo burguês ultra-tardio de Chávez constitui um fenômeno peculiar do capitalismo periférico no contexto histórico da crise estrutural do sistema. Na atual situação de crise, determinada pela queda das taxas de lucro, aumenta a voracidade do capital e diminui a sua capacidade de oferecer melhorias às condições de vida das massas. As melhorias precisam ser arrancadas com muita luta e ao custo de medidas nacionalistas como as de Chávez. E para além das simples melhorias, qualquer solução definitiva exige procedimentos realmente revolucionários, mudanças muito mais profundas do que aquelas anunciadas na retórica chavista. Entretanto, os agentes políticos do capital, na forma dos governos imperialistas, reprimem tais atitudes como atos de banditismo.
O caso se torna especialmente mais grave quando se trata de um país que, como a Venezuela, possui reservas de petróleo que a colocam como uma das maiores produtoras mundiais dessa preciosa mercadoria. A economia atual ainda é maciçamente dependente de petróleo. Nada está sendo feito, nem mesmo a médio ou longo prazo, para substituir a matriz energética em vigor por fontes de tipo renovável. Isso faz com que se desenhe um cenário de disputa feroz entre as potências imperialistas pelas reservas restantes. Mantido o atual ritmo de consumo (o qual está em constante expansão devido à recente colonização capitalista da China e da Índia), as reservas atualmente existentes devem durar por mais uma ou duas décadas. A inevitável aproximação do esgotamento das reservas naturalmente finitas e a expansão desenfreada do consumo fazem com que os preços do petróleo experimentem uma tendência irreversível de alta.
A alta do preço do petróleo permite a Chávez melhorar a assistência social ao povo venezuelano. O centro da luta nacionalista contra a burguesia venezuelana consiste justamente na disputa pelo controle da PDVSA. A estatal era tratada como patrimônio privado pelas famílias aristocráticas do país. Chávez retomou o controle governamental sobre a empresa e passou a usar parte da renda para financiar os programas sociais. É essa inversão de prioridades do Estado que a burguesia venezuelana não perdoa. Programas de alfabetização e de assistência médica são oferecidos a uma população pauperizada que jamais tivera um tratamento minimamente humano da parte do Estado burguês oligárquico, tanto na Venezuela como no restante da América Latina. Os programas sociais sustentados com a renda petroleira tornam Chávez eleitoralmente imbatível, especialmente entre os pobres.
Entretanto, isso não é suficiente para romper o círculo de miséria da população. A Venezuela não possui outros tipos de indústrias importantes além do petróleo. A burguesia venezuelana não possui iniciativa econômica própria e sobrevive como uma camada parasitária que se alimenta da corrupção da PDVSA e do Estado para sustentar circuitos de consumo de luxo. Está mais voltada para Miami do que para o próprio país. A população pobre vive na informalidade econômica. No interior do país, camponeses são mortos por jagunços a mando dos grileiros em disputas pela terra. Ao mesmo tempo, a capital Caracas, cercada por um cinturão de favelas, continua sendo uma das cidades mais violentas do continente.
Parte da população já percebeu que as medidas assistenciais são insuficientes para romper com a situação histórica de dominação e miséria. Em muitos setores os trabalhadores venezuelanos já se mobilizam de forma independente do chavismo. Na greve patronal de 2003, os operários da PDVSA assumiram diretamente o controle da produção em várias instalações. Entretanto, cessada a greve, Chávez devolveu o poder aos mesmos gerentes sabotadores e corruptos expulsos pelos trabalhadores. Essa busca de atitudes conciliadoras revela a limitação de Chávez, a qual se funda em sua origem social. Como militar de origem, o dirigente venezuelano é incapaz de romper com os limites de sua classe. O tipo de liderança chavista é incapaz de desenvolver as tarefas de uma transformação realmente socialista, porque não rompe com o respeito burguês pela propriedade.
Os líderes históricos do nacionalismo burguês latino-americano, como Perón na Argentina, João Goulart no Brasil e Allende no Chile, no momento dos enfrentamentos decisivos, em que foram confrontados com a reação burguesa conservadora na forma de golpes militares e intervenções imperialistas, recusaram-se a cruzar a fronteira de classe e a desenvolver formas de poder socialistas capazes de resistir aos golpes. Recusaram-se a armar as massas, dissolver os órgãos repressivos do Estado (Forças armadas, polícia, judiciário, etc.) e reconhecer os organismos de poder popular em gestação. Dada a conduta conciliadora de Chávez diante do golpe e de outros enfrentamentos, nada leva a crer que sua postura vá ser diferente.
Não existe via nacionalista burguesa para o socialismo; o nacionalismo burguês, conforme ensina a História, conduz à reação burguesa e ao golpe fascista. A sua fraqueza congênita o impede de enfrentar a burguesia de modo conseqüente. A única via para o socialismo é a organização política independente do proletariado e a elevação de sua consciência de classe.
A questão fundamental é que não se alterou a estrutura de classes da sociedade venezuelana. Alteraram-se tão somente alguns aspectos da condução do Estado. Falar em socialismo nesse caso não passa de uma grosseira mistificação. Essa mistificação interessa à burguesia, que assim pode atacar Chávez pelo que ele não é e impedir que os trabalhadores se diferenciem dele pelo que de fato é. E a mistificação interessa também ao próprio Chávez, que pode assim neutralizar a esquerda socialista venezuelana e imunizar-se de críticas da esquerda internacional.
Ao anunciar suas medidas nacionalistas-burguesas como se fossem “socialistas”, Chávez coloca a esquerda venezuelana e latino-americana numa espécie de “armadilha”. Todos os socialistas ficam “obrigados” a lhe dar apoio contra a reação conservadora, e nesse ato de apoio correm o risco de perder a perspectiva da necessidade da ação e da organização política independente da classe trabalhadora.
É preciso sair dessa armadilha e dizer as coisas claramente: Chávez é inimigo dos trabalhadores, na medida em que mantém o Estado como instrumento do poder de classe da burguesia, de garantia da propriedade privada, da exploração capitalista, da extração de mais-valia, e de todas as formas de opressão. Ainda que a burguesia odeie ferozmente Chavez, a única coisa que este lhe tirou foi parte da renda da PDVSA. O “revolucionário” bolivariano nem sequer reconheceu o controle dos operários sobre a produção, devolvendo a empresa aos sabotadores, como vimos.
Os socialistas devem sim marchar lado a lado com os bolivarianos e chavistas, ajudando a organizar o povo venezuelano contra a reação burguesa e imperialista, mas sem jamais abrir mão da independência político-organizativa e de um programa socialista e revolucionário.
A independência de classe dos trabalhadores se expressa pela construção de organizações políticas e organismos de luta autônomos. Essas são as únicas condições em que se pode realmente construir o socialismo. Os trabalhadores devem lutar por seu próprio programa e sustentar essa luta com suas próprias forças. Jamais se pode acreditar que algum dirigente burguês irá realizar as tarefas da transformação socialista. A capitulação da esquerda a governos burgueses, sejam eles “radicais” como Chávez ou “moderados” como Lula só pode resultar em derrotas e tragédias, como já demonstrou a História.
Não há outra saída para os trabalhadores, tanto na Venezuela como no restante da América Latina e no mundo, a não ser desenvolver suas ações e sua organização de forma independente dos governos de plantão, mesmo em se tratando de governos de perfil aparentemente nacionalista e popular. O socialismo somente pode ser construído por meio da organização dos próprios trabalhadores. As formas de organização desenvolvidas para a luta, como os comandos de greve, conselhos por local de trabalho, círculos operários, organizações de bairro, conselhos populares, etc., são a base para as formas de gestão da futura sociedade socialista. O socialismo somente pode ser construído de maneira sustentável por meio de organizações materialmente enraizadas, ideologicamente coesas e politicamente independentes. Jamais será concedido por decreto de uma liderança esclarecida, por mais aparentemente determinada e bem-intencionada que seja.
Daniel M. Delfino