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Carnaval é folia e “Resistência”


4 de fevereiro de 2019

Alex Brasil*

O propalado retorno do carnaval de rua do Rio de Janeiro, após mais de duas décadas em que andou esquecido e que ficou à sombra dos desfiles das escolas de samba, é um dos temas que constantemente tem sido abordado pelos grandes meios de comunicação nos últimos anos.

O interessante, entretanto, é observar que diferentemente da retomada do carnaval de rua, o que tem acontecido no Rio de Janeiro é muito diferente da tradição do velho carnaval carioca: além da continuidade dos blocos de carnaval financiados por políticos clientelistas locais (processo que se tornou crescente nos anos oitenta e noventa do século passado), o novo fenômeno tem sido os blocos que reúnem dezenas, centenas de milhares de pessoas. Blocos esses que começaram como uma divertida e despretensiosa forma de reunir os amigos para somente brincar a folia, agora viraram uma fonte de ganhar dinheiro com profissionais da folia e tornaram-se um lucrativo negócio para as cervejarias (AMBEV à frente), financiadoras da grande maioria dessas entidades de foliões.

Dentro do contexto da mercantilização, o “novo carnaval de rua do Rio de Janeiro” para se tornar mais fácil de ser comercializado, procurou descaracterizar a música de carnaval – marchinha, marcha-rancho, frevo, samba de embalo, samba enredo – substituindo o canto tradicional dos foliões (que tornou o Rio de Janeiro a capital do samba e do carnaval) por blocos temáticos.

Nessa miscelânea pós-moderna tem-se de tudo, até bons compositores, menos a música tradicional de carnaval. Então vemos blocos como o Toca, Raul! (somente com músicas do roqueiro Raul Seixas); Amigos do Rei (só com composições de Roberto Carlos); Fogo e Paixão (músicas de Wando e outros artistas enquadrados como “bregas”), Sargento Pimenta (somente os Beatles), Bloco Lua Vai e Bloco do Pagode dos Anos 90 (neopagode) etc. Alguns blocos mais concorridos como o Bloco da Preta e Monobloco misturam tudo e vão do Axé, Tim Maia, Jorge Benjor até funk, descambando para Xuxa, Michel Teló, Anita, Ludmila e outras vertentes do extremo mau gosto.

O lamentável não foi somente ver a descaracterização de blocos que começaram como resistência e que se transformaram em lucrativos negócios para as cervejarias e para os “foliões profissionais”. Foi também acompanhar a perda de um referencial histórico como o Cordão do Bola Preta (que completou 100 anos em 2018). Considerado o “Quartel General do Samba”, o Bola Preta sobreviveu nos mais duros tempos de esvaziamento do carnaval de rua do Rio de Janeiro se tornando o maior reduto de resistência e bom gosto nas “vacas magras” dos anos oitenta e noventa. Era ali que sobrevivia o verdadeiro carnaval de rua do Rio de Janeiro, sem juntar mais do que dez mil foliões. Porém, infelizmente, a partir dos anos dois mil o Bola Preta se tornou um negócio lucrativo para cervejarias, fornecedoras de camisas (os chamados “abadás”) etc. na busca desenfreada em superar em tamanho o Galo da Madrugada, de Pernambuco. Enfim, o Bola perdeu-se no gigantismo e jogou fora o que tinha de melhor: o compromisso com a tradição do velho carnaval de rua do Rio de Janeiro.

A partir desse processo de pasteurização produzido pelo Capital no qual passa o carnaval de rua no Rio de Janeiro (com certeza um fenômeno extensivo aos mais expressivos carnavais do país, como Pernambuco e Bahia) e entendendo o carnaval de rua como uma forma histórica de resistência popular, fica a pergunta: na atual conjuntura é possível fazer “a resistência na Resistência” e lutar contra os ardis mercantis que se apropriaram dessa festa popular?

Historicizando o porquê de o carnaval sempre ter sido um espaço de resistência popular

A substituição dos bárbaros folguedos coloniais, no governo do Imperador Pedro II (segunda metade do século XIX), por um modelo de carnaval de inspiração veneziano buscava uma missão de domesticação da cultura popular. Tentava-se construir um carnaval da oligarquia, com padrões europeus, na antiga capital do Império e futura capital da República. Dessa forma, se camuflava a repressão à cultura do povo, notadamente de origem africana, dentre as manifestações o samba. Esse modelo perdurou até o fim da República Velha (1930), mas com contradições: a chamada “missão civilizadora” das elites se misturou com os pleitos do povo e das chamadas camadas médias e deu um caráter cada vez mais popular ao carnaval, com o passar dos anos.

A partir da “República Nova”, o Estado Brasileiro em ação coadunada com instituições da sociedade civil passaram a ter, ao invés de uma política de repressão das manifestações populares, uma política de cooptação das mesmas, incluindo nessa política o samba. Com o advento do rádio como principal meio de comunicações de massas do país, a realização de concursos de escolas de samba e os concursos de marchinha a chamada música de carnaval se consagrou no Distrito Federal. Surgiu através dela a primeira geração de ouro da Música Popular Brasileira (a segunda surgiria com os festivais da canção dos anos sessenta e setenta) com expoentes como: Cartola, Noel Rosa, Lamartine Babo, João de Barro (o Braguinha), Ataulfo Alves, Herivelto Martins, Ari Barroso, se revelaram nesse período.

Mesmo duramente reprimido pela ditadura do Estado Novo varguista, o Partido Comunista do Brasil (PCB), pela sua forte penetração nas camadas mais desfavorecidas do povo, construiu um sólido trabalho nas manifestações culturais como as escolas de samba e junto aos artistas populares: Jararaca, um dos autores de “Mamãe, eu Quero!” era ligado ao PCB; Paulo da Portela, “cidadão samba” nos anos trinta e fundador da famosa escola de Oswaldo Cruz, era comunista; o famoso ator Mário Lago, coautor de três estrondosos sucessos de carnaval (“Aurora”, “Amélia”, “Atire a Primeira Pedra”) nos anos trinta e quarenta, era militante do “partidão”. E a dupla e casal Nora Ney e Jorge Goulart, dois dos mais famosos intérpretes do carnaval carioca, também era ligada aos comunistas.

Tanto que com o fim do Estado Novo e a chamada redemocratização, o PCB rapidamente alavancou sua penetração nas escolas de samba chegando a dirigir a União Geral das Escolas de Samba (UGES) e a ter um desfile de 21 agremiações em homenagem ao então senador da República Luiz Carlos Prestes, em 1946. Foi preciso o acirramento da Guerra Fria e a nova ilegalidade do PCB, em 1947, para que esta agremiação política perdesse a hegemonia que começava a construir nas escolas de samba. Substituída pelos trabalhistas que, a partir de uma escola com grande peso do Sindicato dos Estivadores (Império Serrano), seria sensação no final dos anos quarenta e início dos anos cinquenta.

Enquanto nos anos cinquenta as escolas de samba ainda estavam longe de ser um produto comercializável, o carnaval de rua e a marchinha de carnaval ganhavam grande projeção, associada ao cinema brasileiro e às chanchadas. As marchinhas se tornaram uma forte oportunidade para crítica de costumes e moral da sociedade vigente, assim como também da política presente. Assumia o carnaval de rua cada vez mais o seu verdadeiro sentido de ser: anárquico (no melhor sentido da palavra), sem tutelas, sem Estado, sem controles.

Porém, dois processos foram matando a marchinha de carnaval. Primeiro, a entrada das grandes gravadoras, nos anos cinquenta, que passaram a considerar a produção de discos somente para uma fase do ano (o carnaval) um gasto desnecessário. O segundo processo foi a ida de um grupo de intelectuais e artistas da Escola de Belas Artes (Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Maria Augusta, Joãosinho Trinta, entre outros) para a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. Com o mérito de ter tornado temática nos seus enredos o negro brasileiro e a sua luta constante, o Salgueiro, entretanto, produziu alterações estéticas no desfile das escolas de samba e buscou absorver as chamadas classes médias, o que mexeu dessa forma na tradição comunitária das agremiações e o que é pior: alterou o canto das escolas. Dessa forma, o samba tradicional foi substituído por um samba “marcheado”, uma marchinha disfarçada. Dava-se assim um tiro no samba tradicional assim como na velha marchinha, que passou a entrar, definitivamente, em decadência, nos anos sessenta.

Já vigendo a ditadura militar esta, diferentemente da ditadura varguista, não procurava cooptar as manifestações populares e sim intimidá-las e/ou reprimi-las, assim foi com sambas de Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira (Império Serrano, 1969) e de Martinho da Vila (samba derrotado na Unidos de Vila Isabel, 1974). Também estimulou o fortalecimento de uma pequena escola que, com enredos patrióticos se alçou a maior força do carnaval do Rio de Janeiro, a Beija-Flor que teve um remanescente da Escola de Belas Artes à frente, Joãosinho Trinta, criador de uma concepção de carnaval espetáculo, apoiado na televisão (já o principal meio de comunicações de massas) para ser comercializado no exterior. Para isso usou uma frase que defendia a sua concepção de carnaval: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”.

Como resistência a esse processo de mercantilização, de destruição das tradições comunitárias das escolas de samba e da adulteração de seu canto um dos maiores sambistas de todos os tempos o Antonio Candeia Filho (campeoníssimo na Portela), claramente influenciado pelo então comunista Paulinho da Viola e pelo jornalista esquerdista Juarez Barroso, fundou a escola de samba alternativa Quilombo e cunhou uma expressão para se contrapor a Joãosinho Trinta: “Samba dentro da realidade brasileira”. A Quilombo, escola que não participava da disputa de carnavais e trazia os desfiles das agremiações como eram na sua origem, foi um grande acontecimento cultural na segunda metade da década de setenta, que trouxe grandes sambistas e intelectuais, mas, não foi mais a mesma após a morte de Candeia, em 1978.

Mesmo assim, como mérito de Candeia e da Quilombo se trouxe para a realidade das escolas de samba o chamado samba enredo político, que se confundiu com a luta pela redemocratização do país, no final dos anos setenta e oitenta. Escolas como Unidos da Tijuca, Caprichosos dos Pilares, Vila Isabel, Unidos da Ponte, Em Cima da Hora, São Clemente se destacaram nesse contexto. E, no carnaval de 1988 (no centenário da abolição), Vila Isabel (presidida pela futura vereadora comunista Lícia Maria Caniné, Russa, esposa de Martinho da Vila) e a Estação Primeira de Mangueira foram, respectivamente, campeã e vice-campeã com a produção de dois sambas enredos considerados obras primas: “Kizomba, a Festa da Raça” de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila, este último discípulo de Candeia e “Cem Anos, Liberdade, Realidade ou Ilusão?” de Jurandir, Hélio Turco e Alvinho. Foi o estertor do samba enredo político.

Com as mudanças produzidas no mundo, após a Queda do Mundo de Berlim, o carnaval do Rio de Janeiro, comandado pelos contraventores da Liga das Escolas de Samba (LIESA), ficou definitivamente reduzido às escolas de samba e a sua visão empresarial e mercantilista, própria do modelo neoliberal que se implantou no país nos anos dos governos Collor e FHC. Paralelamente, as marchinhas de carnaval sumiram, o carnaval de rua se reduziu a poucas iniciativas como o Bola Preta e os próprios blocos de embalo (Cacique de Ramos, Bafo da Onça e Bohêmios de Irajá) foram esquecidos.

Somente no final dos anos noventa e início da década passada é que começaram a se ampliar as formas de resistência a essa visão neoliberalizante não somente da política e da economia do nosso país, mas expressas também nas manifestações e expressões culturais. Paralelos à resistência popular ao projeto privatizante e neoliberal, no samba e no carnaval carioca, surgiram os chamados “pagodes de mesa” em contraposição ao “neopagode” e voltou o carnaval de rua, no Rio de Janeiro.

Infelizmente, entretanto, todo esse processo foi cooptado, posteriormente, pelo Capital e o grande empresariado. Assim milhares de ativistas foram cooptados pelos governos petistas que se propuseram governar para o Capital e os novos blocos entraram na lógica mercantilista do carnaval. Assim também novos compositores de samba que surgiram nos pagodes de mesa entraram nos esquemas das escolas (corrompidas por patronos, contraventores, vendas de enredos) há ainda o fato de participar de “escritórios” (diz de compositores que fazem composição para várias agremiações e bota “laranjas” para assinar as obras) e contratar torcidas etc.

É possível resistir sem se vender!

O Bloco do Rabugento surgiu em 2000, na Vila da Penha, em homenagem a um vira-lata da população canina de rua, já falecido. Como um dos fundadores tem Luiz Carlos da Vila, autor de “Kizomba, a Festa da Raça”, compositor do Quilombo, parceiro e discípulo de Candeia, já falecido. Ao longo desses 19 anos nunca teve financiamento privado para os seus desfiles (empresários, ONGS, políticos) e nem de governos.

Tanto foi assim que quando o prefeito Marcello Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, em uma atitude canalha, cortou a verba de carnaval em 2018 muitos blocos grandes deixaram de sair (como, por exemplo, o “Timoneiros da Viola”, feito em homenagem a Paulinho da Viola). O Rabugento não sentiu o “tranco”: sempre fez o seu carnaval vendendo a camisa do bloco, mas sem tolher aquele que queira participar sem a camisa, pois é contra “cordinha no bloco”. Enfim, é um bloco caracterizado como de esquerda com participantes que são ligados ao Movimento de Organização Socialista, ao PSTU, ao PCB, ao PSOL e anarquistas. E nele só se toca a música tradicional de carnaval. Nesse ano, o Rabugento virá com o enredo “Levanta a Bola, Rabugento”, de Marcelo Bizar e Marco Trindade, que ironiza o momento presente do país, o fato de um fascista ocupar a presidência do país.

A partir de 2013, o Bloco do Rabugento passou a apadrinhar o Bloco da Ceguinha, organizado por trabalhadores do Judiciário, independentes do sindicato da categoria, que seguem a mesma concepção do Rabugento. Esse ano, o Bloco da Ceguinha virá com enredo “No Circo do Bozo, a Ceguinha chuta o pau da barraca!”, de Vílson Siqueira e do autor desse artigo. Essas iniciativas e outras como Comuna que Pariu, ligado ao PCB, Agbara Dudu e Embaixadores da Folia mostram que é possível resistir sem se vender. Para isso é necessário manter a independência financeira do bloco, sua autossustentação, preservar a tradição cultural e qualidade. E, fundamentalmente, desprezar o gigantismo que tem pautado hoje os principais blocos e que fizeram sucumbir muitas propostas interessantes como o “Cordão do Prata Preta”, iniciativa do PCB em homenagem ao capoeirista negro que liderou a Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro.

*Militante do Movimento de Organização Socialista, resiste no Bola Preta há 34 anos e é um dos fundadores do Bloco do Rabugento.

Bibliografia:

“O PCB cai no Samba – os comunistas e a cultura popular 1945-1950” de Valéria Lima Guimarães. Edição: Arquivo Público, 2009.

“Os cronistas de Momo – Imprensa e Carnaval na Primeira República” de Eduardo Granja Coutinho. Editora: UFRJ, 2006.

“Yes, nós temos Braguinha” de Jairo Severiano. Editora: FUNARTE, 1987.