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De operários, patrões e caminhoneiros


30 de maio de 2018

Este texto é uma contribuição individual que não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.

Sergio Lessa

A greve dos caminhoneiros e o locaute das empresas de transporte devem ou não ser apoiados pelos revolucionários? Se sim, qual o critério desse apoio? Há várias questões e aspectos a serem considerados, tanto táticos quanto estratégicos, e o que se segue não é mais do que uma contribuição na análise de um desses aspectos: o caráter de classe dos caminhoneiros. Não que esse seja um aspecto secundário da questão, longe disso. Mas ele apenas não basta para uma “análise concreta da situação concreta”, como dizia Lenin.

Lá nos anos de 1980, com a crise estrutural do capital passando por sua primeira década, o capital passou a implementar uma nova modalidade de extração da mais-valia. Seu polo pioneiro tinha lugar, desde a década anterior, na “Terceira Itália”. Não se tratava de uma nova relação de produção, portanto de um novo tipo de capitalismo ou mesmo de uma superação do capitalismo. Muito pelo contrário, era apenas de um aprofundamento da velha e surrada relação de produção que produz o capital pela expropriação da mais-valia produzida pelos operários. Típico dessa nova modalidade foi a Benetton, fabricante de roupas.

Operários proprietários dos meios de produção?

Conta a história que a Benetton, pressionada pela crise, decidiu reestruturar sua produção. A finalidade era não apenas aumentar a extração da mais-valia pela redução dos custos, como também ganhar vantagem no mercado oferecendo mercadorias mais de acordo com os desejos dos consumidores e mais rapidamente que seus concorrentes. Para isso montou uma rede informatizada pela qual a produção recebia informações “ao vivo” das vendas e, então, se ajustava mais rapidamente que seus concorrentes à mudança de humores dos consumidores.

A flexibilidade era a marca da nova forma de organização da produção: não apenas as máquinas deveriam ser adequadas à produção de peças de roupas as mais variadas sem demoradas e custosas adaptações, como ainda a força de trabalho deveria estar disposta a produzir no ritmo que fosse necessário a atender o mercado. Isto é, trabalhar pouco e receber correspondentemente pouco quando não houvesse demanda – e trabalhar até a exaustão, quando o inverso fosse o caso. De preferência, sem uma cadeia de controle e supervisão da produção que fosse onerosa ao capital.

Em poucas palavras, alguma adaptação e desenvolvimento técnico eram necessários, mas imprescindível mesmo era quebrar as relações trabalhistas regulamentadas pelo Estado de tal modo a que o operário (no caso da Benetton) não mais fosse juridicamente caracterizado como um empregado da fábrica.

A solução implementada pela Benetton não era completamente original. Sergio Mallet, em um texto do início da década de 1960, já citava o exemplo da refinaria da Texaco em Bordeaux (França) na qual já estavam presentes vários aspectos importantes da nova modalidade de expropriação da mais-valia. A novidade é que, ao contrário da década de 1960, a crise estrutural tornava viável uma generalização antes impossível da nova modalidade para outros setores econômicos. O que era antes um caso isolado, tornou-se um exemplo.

Em poucas palavras, a Benetton fechou as suas fábricas e demitiu seus operários e trabalhadores. Propôs, então, uma nova “parceria”. Aqueles que assim quisessem (pois o capitalismo é sinônimo de liberdade, sabemos!) poderiam comprar, com a indenização da demissão, as máquinas da Benetton e passar a trabalhar em casa para a mesma Benetton. Então, uma residência passou a produzir a manga de uma camiseta, outra a parte frontal, uma terceira a parte dorsal, uma quarta residência passou a costurar as três peças que compõem a camiseta e assim por diante.

O decisivo é que há, no mercado, apenas um comprador para essas peças: a própria Benetton. Ela, assim, impõe aos novos proprietários dos meios de produção uma condição: teriam que comprar o tecido, a linha etc. da própria Benetton, o que garantiria a homogeneidade necessária das partes componentes do produto final. Mas não apenas isso – e nem sequer isso era o mais importante. O decisivo era que, como a Benetton era a única fornecedora da matéria-prima e a única compradora do que se produzia nas residências de seus antigos operários, ela podia impor o preço tanto da matéria-prima quanto do produto final. Ao final das contas, a Benetton, com a produção sendo nas casas, passou a ter um maior poder de extração da mais-valia do que em suas fábricas anteriores.

Isso tem, para o capital, três vantagens: 1) o operário passa, agora, a fornecer ao menos uma parte importante do capital fixo, isto é, aquele capital investido nos meios de produção; 2) o operário não é mais um empregado da Benetton, portanto a legislação trabalhista não se aplica mais; 3) como o operário passa a receber por peça (a forma mais dura de salário ), ele tem interesse em produzir o máximo possível e, com isso, a cadeia de controle e supervisão sobre o trabalhador pode ser diminuída e simplificada. Mas, por outro lado, tem uma desvantagem que não é pequena e que terminaria inviabilizando que o modelo se generalizasse para todos os setores produtivos: a produção em larga escala na fábrica é substituída por uma produção doméstica, com o que se perde a vantagem da escala na produção e o controle de qualidade se torna mais problemático — com o que se perde uma segunda importante vantagem da produção fabril: a extrema igualdade entre os exemplares produzidos.

Do ponto de vista do operário, esta transformação possui ao menos duas consequências imediatas. Como ele se torna proprietário da máquina em que trabalha, como ele produz em sua própria residência e como está em concorrência imediata com todos os outros operários que adentraram à nova relação de exploração, o fato de receber por peça o faz produzir insanamente. Cada um quer tirar do outro operário uma “fatia do mercado” que é integralmente composto pela demanda da Benetton. Esta tira vantagem dessa situação, joga um operário contra o outro, uma residência contra a outra, e maximiza a extração da mais-valia. A jornada de trabalho passa a ter por limite a capacidade física da pessoa, os membros da família entram também no processo produtivo e a vida vai se tornando ainda mais exaustiva que na antiga fábrica. A tendência é essa situação se agravar ainda mais na medida em que a Benetton tende a vender a matéria-prima cada vez mais cara e a comprar o produzido a um preço cada vez mais baixo: a única resposta possível ao operário é aumentar a intensidade do seu trabalho, aumentando diretamente a mais-valia absoluta expropriada pela Benetton.

Essa a primeira consequência para o operário. A segunda consequência diz respeito à consciência. Com a nova modalidade de produção, os operários que realizam a mesma atividade produtiva deixam de se relacionar como companheiros de classe e se assumem como concorrentes. Se na fábrica o velho sindicato e as velhas formas de organização ainda tinham uma razão de ser, agora elas se tornaram não apenas desnecessárias mas, pior ainda, impossíveis. O próprio operário as rejeita e se recusa a se organizar coletivamente. Ele não tem nem mais tempo, nem energias, para se dedicar à luta coletiva.

Esta alteração na consciência do operário é o resultado da alteração de sua vida cotidiana. Convertido em um “pequeno empresário”, como agora ele é proprietário de parte dos meios de produção, em sua imaginação ele se converteu em seu próprio patrão quando, na verdade, não deixou a sua condição objetiva de ser um operário que, agora, é também seu próprio supervisor. Sua atividade produtiva continua sendo a do operário antigo, não raramente trabalha na mesma máquina e produz o mesmo produto que fazia antes, no interior da fábrica. Agora, contudo, deixa de ser juridicamente um assalariado para se converter em um pequeno empresário. Pode, se prosperar, contratar um outro operário para trabalhar para ele em uma segunda máquina; mas mesmo quando não tem a sorte da minoria que conhece essa mísera prosperidade, coloca seus filhos e esposa para comporem a força de trabalho a ser explorada pela Benetton. Se, antes, a fábrica o explorava diretamente, agora ele obriga (tal como antes a cadeia de controle do trabalho na fábrica o obrigava) não apenas filhos e esposa, mas também a si próprio, a produzir a mais-valia da Benetton.

Seu lugar na estrutura produtiva continua a mesma: transforma a natureza em bens de subsistência (no caso da Benetton); contudo, do ponto de vista jurídico, deixa de ser um assalariado para ser um pequeno proprietário; do ponto de vista social, a antiga solidariedade de classe que nascia do chão da fábrica é substituída pela concorrência de todos contra todos do mercado, do ponto de vista de sua consciência, o individualismo do espírito do empreendedorismo passa a predominar.

Quando a Terceira Itália se converteu em exemplo, alguns defenderam a nova modalidade de exploração do trabalhador como se fosse o fim do capitalismo, pois agora os operários, sendo proprietários dos meios de produção, passariam a controlar a produção e, com isso, estaríamos “transitando para o comunismo nos interstícios do capital” (lembremos de Antonio Negri, Lazzarato e Hardt, por exemplo). Outros defenderam que a nova modalidade de exploração seria, na verdade, o fim das classes sociais e o surgimento da sociedade sem classes (Adam Schaff, _____, para ficarmos só com autores “da esquerda”). Outros, ainda, defenderam a novidade divisando nela o fim do capitalismo monopolista e o início de um capitalismo democrático, com uma produção dominada por pequenos produtores e não mais pelas gigantescas corporações, o que ampliaria a igualdade social (Piore e Sabel, p. ex.).

Poucos anos de história demonstraram que estavam todos errados: fazer o operário entrar na produção financiando uma parte do capital constante (aquele investido nos meios de produção) não é mais que uma forma ainda mais brutal de exploração do operário; uma alienação ainda mais profunda não apenas porque intensifica a jornada de trabalho a limites antes impensáveis, não apenas porque subordina a pessoa do operário ainda mais intensamente à sanha do mercado, não apenas porque subordina agora diretamente as relações do operário com seus filhos e esposa ao processo produtivo que ocorre em sua residência – mas, ainda mais, porque faz desaparecer a antiga solidariedade de classe fabril que é substituída por uma intensa concorrência entre operários que agora produzem não um com o outro, mas um contra o outro.

Essa intensificação da alienação desse setor do operariado tem, até agora (já se vão lá várias décadas), tido um profundo impacto em sua consciência, mais especificamente, na perda de sua consciência de classe. Passa a se comportar como um pequeno-burguês: seu desejo é acumular capital para poder “crescer” e passar a subempregar outros trabalhadores (imediatamente, seus filhos e esposa, aos quais não pagará qualquer salário!). O individualismo típico do “homem burguês” ganha nesta sua nova vida cotidiana um solo social todo propício para seu desdobramento. Na Terceira Itália, bem como nos diversos clusters produtivos que essa tendência deu origem, até o momento – até o momento, sublinhe-se – não se noticia nenhuma forma de resistência coletiva que se assemelhe a uma consciência de classe, mesmo que no patamar estritamente economicista (Lenin).

Repetimos: essa forma de produção doméstica não pode ser estendida a todos os setores econômicos (produção de vidro, papel e celulose, siderurgia, petroquímica, automobilística etc.) mas, sempre e onde foi possível, se tornou uma das opções mais vantajosas ao capital no período de crise estrutural. Com modificações e com adaptações, foi sendo adotada em vários setores produtivos. Um deles o do transporte no Brasil.

Caminhoneiros: operários ou empresários?

O caráter de classe dos caminhoneiros hoje no Brasil é um belo exemplo para compreendermos e nos aprofundarmos em como Marx tratou as classes sociais. O fato de elas serem determinadas pelo local que ocupam no processo produtivo tem por consequência que nem sempre os limites entre elas sejam cristalinamente claros. O limite existe e é real, atua não apenas na objetividade da reprodução econômica, mas também na subjetividade, na consciência dos envolvidos. Contudo, dependendo da maneira como se organiza a produção, a existência imediata torna-se confusa do ponto de vista do pertencimento de classe e a consciência tende a ser determinada por esta situação.

É muito conhecido o caso da aristocracia operária. Sem deixar de ser operária, se converteu no século 20 e nos dias de hoje em um importante fator de manutenção da ordem do capital, tendo inclusive seus representantes assumido por vezes a chefia de governos liberais ou neo-liberais (caso Lula no Brasil etc.). A situação social imediata de um setor de uma classe pode fazer com que ele se volte contra os interesses históricos de sua própria classe. O caso clássico é o da aristocracia operária, mas está longe de ser o único. E também não ocorre apenas entre os operários: não raramente, como no caso agora das empresas de transporte, um setor da burguesia se volta contra os interesses globais e gerais do capital.

No caso brasileiro, não tivemos uma fábrica como a Benetton tomando a iniciativa de reestruturar as relações de emprego no setor de transporte. Foi o próprio crescimento da produção e do consumo, o próprio aumento da necessidade de transporte, que gerou a racionalização capitalista do setor. Não era mais viável econômica e administrativamente que as próprias empresas contratassem seus próprios fretes de acordo com a oferta diária do mercado. A adoção das práticas do just-in-time, da lean production etc. implicou que as fábricas passassem a necessitar de um fluxo constante de matérias-primas e componentes e, correspondentemente, de uma saída constante dos seus produtos para os mercados consumidores. Os centros de abastecimento necessitam de um fluxo constante de entrada e saída de mercadorias. Nada disso pode ser “racionalmente” ordenado se se mantém a dependência de caminhoneiros individuais que fluem de um ponto a outro do mercado em busca de melhores fretes.

A racionalização foi obtida pelo surgimento de empresas de transporte que contratam os fretes em larga escala e os sublocam aos caminhoneiros proprietários de seus próprios veículos. Os dados que eu tenho à mão não são seguros, indicam que algo próximo à metade do transporte terrestre é realizado sob essa modalidade, a outra parte sendo realizada por operários das próprias empresas de transporte. Os caminhoneiros, para entrarem no processo produtivo, precisam oferecer uma parte do capital fixo necessário: na Terceira Itália, entram com as máquinas de confecção de roupas; nos transportes, com seus próprios veículos.

Ainda que por mecanismos e processos muito distintos aos da Terceira Itália, a essência é similar: para se empregarem, precisam entrar com a propriedade de seus caminhões, isto é, com uma parcela importante do capital fixo. Os impactos nas condições de vida e trabalho são também análogos: aumenta a intensidade do trabalho, diminui o tempo de repouso e lazer, as doenças profissionais se intensificam e se multiplicam etc.

Os impactos na consciência não são menores. Ainda que por mecanismos muito diversos, por processos muito distintos daqueles que deram origem à aristocracia operária, algo similar ocorre com os caminhoneiros. São um elo da cadeia produtiva que opera o intercâmbio material com a natureza (Marx), contudo sua inserção imediata na sociedade faz com que sua luta por melhores condições de vida e salário se confunda com a sua luta pela sua propriedade privada, pelo seu direito de acumulação capitalista: comportam-se como empresários embora não passem de operários. Com um agravante: como sua origem, no passado, não está em uma fábrica (como a Benetton no caso italiano) mas em um enorme conjunto de pequenos proprietários de veículos, herdam do passado o individualismo do empreendedorismo de seus “ancestrais” nas estradas.

Seu futuro não poderia ser menos promissor: os caminhoneiros tendem a se aliar com seu inimigo de classe na defesa da propriedade privada na esperança, absolutamente vã, de se tornar um dia burgueses. Sem compreender seu real papel na sociedade, não apenas se comportam como burgueses que não são, como ainda deixam de se comportar como os operários que, de fato, são. Seu futuro não poderia ser menos promissor, dizíamos: a tendência é sua exploração se tornar cada vez mais intensa, no futuro sua vida e condições de trabalho tenderão sempre a piorar. Não possuem condições de defender seus interesses históricos até às últimas consequências; curto e grosso: têm sido sempre joguetes nas mãos dos capitalistas.

Portanto, enquanto classe social, os caminhoneiros são operários, sem lugar a nenhuma dúvida. Tal como os operários da Benetton que se convenceram terem se tornado empresários ao adquirirem a propriedade da máquina em que produzem a mais-valia, os caminhoneiros proprietários de seus caminhões imaginam terem deixado sua condição proletária e se convertido em capitalistas. Ledo engano: o lugar que ocupam na estrutura produtiva (transporte) faz parte do metabolismo da sociedade com a natureza que é o trabalho. Marx, no Volume I de O Capital, o expõe com clareza e nada indica que, neste particular, a evolução do mundo tenha revogado a validade de suas considerações a esse respeito: são operários. Quando são proprietários de seus caminhões não passam de assalariados disfarçados ao subcontratarem um frete de uma empresa de transporte; quando são assalariados de uma empresa de transporte, são operários imediata e diretamente.

Por essa razão, sua participação na luta de classe tem sido, até o presente momento, marcada pela defesa da propriedade privada, mais especificamente, pela defesa do seu direito de acumulação do capital, a defesa do sonho de se converter, de sublocatário de fretes de uma empresa, em empresário com vários sublocatários de frete sendo por ele explorados. Não passa do sonho pequeno-burguês de se tornar, finalmente, um burguês no futuro. A contradição esgarçante de suas vidas é que esse sonho se passa na cabeça de um proletário, não na de um pequeno-burguês.

É por isso que, ao longo do tempo, tem sido esse setor da classe operária tão facilmente manipulável pelo capital. Mas é também por isso que a atual greve dos caminhoneiros é politicamente ainda mais expressiva da crise em que se encontra a dominação burguesa em nosso país.

Caminhoneiros versus Temer

As informações de que disponho indicam que está havendo alguma mudança significativa no setor de transporte em duas direções principais. A primeira é a concentração dos fretes mais lucrativos, os de longo percursos e feitos com carretas, na maiores empresas do setor. Para os caminhoneiros tendem a caber os fretes menos lucrativos, de menor percurso e que podem ser realizados com caminhões mais baratos. A evolução dessa tendência, pela simples concorrência, resulta em que os caminhoneiros precisam trabalhar com uma margem de lucro cada vez menor. A segunda direção é a generalização da prática de sublocação e sub-sublocação de fretes por empresas que, muitas vezes, atuam apenas como intermediárias entre os caminhoneiros e as empresas que necessitam de transporte. À tendência à queda da margem de lucro dos caminhoneiros, associada à tendência das empresas que atuam como intermediárias se apoderarem de uma fatia crescente desse lucro, faz com que os caminhoneiros tenham que trabalhar cada vez mais intensamente, com todas as consequências negativas deste fato.

A tendência a piora das condições de vida e trabalho dos caminhoneiros que resulta dessas duas direções principais não é algo que atinge apenas os caminhoneiros. Para não falar dos trabalhadores em geral, mesmo a aristocracia operária vem sendo atingida por ela. É crescente e cada vez mais frequente os casos de aristocratas operários que perdem seus empregos entre os 35 e 40 anos de idade para operários mais jovens, que aceitam condições de trabalho e de assalariamento significativamente piores.

Em poucas palavras, com o aprofundamento da crise estrutural do sistema do capital, as condições de vida e trabalho mesmo dos aristocratas operários e – no nosso caso – dos caminhoneiros tendem a piorar. O que, em tese ao menos, deve intensificar a contradição deles com o capital no seu todo – ainda que como isso virá a se refletir nas suas consciências é algo que não possa ser conhecido de antemão.

É importante assinalar o acima, porque, até o momento, não se nota na greve uma disposição dos caminhoneiros de se voltarem contra os capitalistas do transporte. Entre as empresas de transporte e os caminhoneiros há uma confluência de objetivos e finalidades: alterar a política de preços da Petrobrás. De fato, na greve dos caminhoneiros, há uma homogeneirdade entre os empresários do setor e os caminhoneiros: a política de aumento de preços dos combustíveis tornou inviável a produção da mais-valia nesse setor da economia. Os caminhoneiros estacionam nas rodovias e as empresas de transporte os apoiam. A opinião pública sabe que suas reivindicações são capitalisticamente justas: não é possível transportar as mercadorias com esse preço do diesel.

Nenhum conflito entre as empresas de transporte que sublocam os fretes e os caminhoneiros que sublocam esses fretes: não há, ainda, um conflito pelo aumento do valor dos fretes. Essa luta dividiria os caminhoneiros dos burgueses do setor de transporte; o foco da luta é contra a política de preços da Petrobras, uma bandeira de luta que unifica patrões e operários, burgueses e caminhoneiros! O inimigo passa a ser o governo Temer, e inimigo de burgueses e operários unidos! O que de fato poderia melhorar as condições de vida e trabalho dos caminhoneiros, uma luta coletiva contra o capital que os explora, está a anos luz de distância de sua consciência e de sua prática. Quando se unificam, é em defesa do que imaginam serem seus verdadeiros interesses mas que, de fato, não passam dos interesses do capital. Nisso, de algum modo, lembram os camponeses franceses do século 19: eram uma classe incapaz de ser algo mais do que massa de manobra da burguesia.

Não é mero acaso que, quando há algum sinal de politização, ocorra pelo seu viés mais à direita, mais conservadora: pedidos de intervenção militar ou apoio à candidatura Bolsonaro. Quase nenhuma palavra de retorno ao período petista, parcos sinais de apoio ao PT ou ao PSOL-PCB-PCdoB.

Fora Temer!

A greve nos transportes, contudo, não se limita a esse aspecto. Ocorre em um momento em que parece poder servir de catalisadora das insatisfações generalizadas com o governo Temer e com o Estado burguês no seu todo. A exaustão da sociedade para com o estamento político-burocrático, para com a corrupção e a bandalheira generalizada, para com a dissolução dos centros urbanos em campos de batalha, para o descalabro dos serviços públicos etc. parece ter encontrado na manifestação do setor de transporte um canal para sua expressão que há tempos carecia. Apesar do desconforto que provoca, a greve conta com a simpatia e apoio generalizados da população a ponto de o sindicado nacional dos policiais federais manifestar seu apoio ao movimento. A greve dos petroleiros deve agravar a situação e intensificar a pressão sobre o estamento político-burocrático, com consequências difíceis de serem previstas no momento. Não falta muito para assistirmos manifestações de massa… e o cenário atual pode se alterar rapidamente.

A greve dos transportes, além disso, é o primeiro momento em que uma parte da burguesia, os empresários do transporte, tomam uma ação prática e contundente contra as políticas ultra-neo-liberais (se é que há um “ultra” possível ao neoliberalismo) de Temer e Meirelles. Isso é uma novidade no cenário político: as divergências no interior da burguesia e desta com o estamento político-burocrático, até agora, não haviam levado a essa forma de confronto de uma parte do capital com o governo.

É impossível, no momento em que escrevo, divisar a evolução da crise. O governo aposta na divisão do movimento (daí a proposta de aprovação de uma tabela de preço mínimo do frete, que contempla os caminhoneiros, mas contraria os capitalistas do setor, daí a negociação com os sindicatos pelegos e não com os caminhoneiros, daí a pressão sobre os capitalistas do setor pela abertura de investigação sobre a prática de locaute por eles…) e numa repressão que parece não contar com o apoio nem da polícia nem do exército. Uma parte da burguesia prejudicada pela paralisação pressiona o governo para resolver “já” o problema e tenta virar a opinião pública contra a greve através dos órgãos de imprensa. Por outro lado, a pulverização do movimento e a condição a que foram levados os caminhoneiros pela política dos preços dos derivados do petróleo parece indicar que o movimento tem fôlego para chegar à quarta-feira e passar a contar com o apoio da greve dos petroleiros… também contra a política de Temer para os combustíveis. Portanto, com uma vasta plataforma comum.

Como dizíamos no início: o caráter de classe dos caminhoneiros, sua aliança com o patronato do setor de transportes, são limites claros e objetivos do movimento. Contudo, sua importância na atual conjuntura e o papel catalisador que pode desempenhar na desestabilização do governo são fatores que precisam ser considerados em uma “análise concreta da situação concreta”. Na situação em que pessoalmente me encontro, sem nenhuma vinculação direta com o movimento, careço das informações básicas necessárias para propor uma direção política de atuação: essa é miséria de se ser professor universitário!