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54 anos do Golpe Militar de 1964


14 de abril de 2018

por Alex Brasil (militante do Movimento de Organização Socialista)

O Golpe Militar de 1964 foi a coroação de um processo orquestrado, principalmente, pelo Departamento de Estado norte-americano, com o apoio das principais frações da classe dominante brasileira e das suas Forças Armadas, durante mais de uma década.

Em um mundo herdado do pós-Segunda Guerra Mundial, dividido pelos Pactos de Yalta e Potsdam em áreas de influência política e econômica entre norte-americanos e soviéticos, o imperialismo ianque procurou fazer prevalecer a “posição” da América Latina de quintal dos EUA (de acordo com os preceitos da Doutrina Monroe, “A América para os americanos”), o que conseguiu com sucesso.

Antessala do Golpe (1954-62):

Antes do Golpe de 1964, desenvolveram-se a partir do Pós-Guerra na América Latina saídas nacionalistas burguesas e populistas da região (Juan Domingo Perón na Argentina, Víctor Paz Estenssoro na Bolívia e Getúlio Vargas no Brasil) que ao mesmo tempo procuravam resguardar o capitalismo, combater ideologicamente e organicamente as alternativas socialistas, mas também mantinham uma participação controlada das massas “acaudilhadas” pelas lideranças populistas.

Mesmo assim, o chamado “Pacto Populista” nesses países trouxe grandes contradições em um mundo impactado pela gigantesca e multitudinária Revolução Chinesa (1949) como também a Revolução Coreana (1953).

No caso do Brasil, sempre é importante lembrar que tentativas anteriores ao Golpe de 1964 já tinham sido esboçadas em um curto espaço de tempo, como a foi chamada “República do Galeão”, em que os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) realizados contra o governo Vargas – em função da tentativa de assassinato ao jornalista direitista Carlos Lacerda – eram somente para evitar a implantação de uma “República Sindicalista” ao estilo argentino. Os IPMs quase depuseram Getúlio e só foram abortados com a comoção popular provocada pelo suicídio de Vargas, em 1954.

Mesmo em “tempos mais tranquilos” e nas vésperas do governo eleito de JK – “desenvolvimentista, mas entreguista ao capital estrangeiro” – ocorreu o golpe preventivo do Marechal Henrique Lott em final de 1955, para que a posse de Juscelino não fosse ameaçada.

A resposta conservadora se deu três meses depois, com a Revolta de Jacareacanga no Sul do Pará, liderada por oficiais da Aeronáutica (entre os quais o futuro torturador João Paulo Burnier) e que chegou a dominar, com respaldo popular, as cidades de Santarém, Aragarças, Itaituba e Belterra. Movimento foi derrotado e os revoltosos anistiados.

Findo o governo de JK (que passou por duas grandes revoltas populares: das Barcas, em Niterói e Massacre da Pacheco na construção da nova capital, Brasília) foi eleito o populista de direita Jânio Quadros. Entretanto, o vice, em chapa apartada, era o “populista de esquerda” e estancieiro João Goulart.

Enfim, o imperialismo norte-americano parecia ter tomado as rédeas do processo brasileiro. Porém, a política independente desenvolvida por Jânio ao restabelecer relações diplomáticas com a URSS e a China e a posterior condecoração com a Ordem do Cruzeiro do Sul ao Comandante da Revolução Cubana de 1959, o argentino Ernesto Che Guevara, fizeram com que as bases conservadoras de apoio a Jânio ruíssem.

Jânio deu uma última cartada quando mandou o seu vice Jango cumprir missão diplomática na China e entregou uma carta de renúncia ao Congresso. Seu objetivo era atemorizar as forças conservadoras com a possibilidade de posse de Goulart (que não poderia fazer isso, pois estava distante) e dessa forma voltar revestido de poderes para governar acima do Congresso Nacional.

Porém, Jânio não “combinou com os russos”: Carlos Lacerda, outras lideranças civis e empresariais e a alta oficialidade das Forças Armadas articularam para que o Congresso aceitasse a renúncia e, ao mesmo tempo, mantiveram Jango afastado do país para que não tomasse posse.

Foi necessária a “Campanha da Legalidade” liderada pelo também nacionalista-burguês Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, para que João Goulart assumisse a presidência, mas com poderes limitados pelo parlamentarismo. Esse regime que durou menos de um ano e meio teve como principal primeiro-ministro Tancredo Neves, foi encerrado no plebiscito popular de 06 de janeiro de 1963 que entre “presidencialismo” e “parlamentarismo” optou-se pelo primeiro.

O Golpe entra em ação (1963-64)

A restituição dos poderes presidencialistas a João Goulart aumentou a polarização política no Brasil em 1963.

O movimento sindical já passava por um ascenso de greves e mobilizações com destaque para a Greve Geral de 1962 e a formação do Comando Geral dos Trabalhadores para dirigir o movimento sindical, em que o Partido Comunista ia superando a antiga direção trabalhista. O processo de luta por uma Reforma Agrária ganhava cada vez mais corpo com a formação das Ligas Camponesas, dirigidas pelo advogado Francisco Julião. A União Nacional dos Estudantes se tornou uma entidade estudantil de massas, como nunca na sua história com a criação de seus Centros Populares de Cultura (CPC-UNE), envolvendo artistas e intelectuais como Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirszman, entre outros. E no meio da baixa oficialidade das Forças Armadas entre marinheiros e sargentos, reivindicações salariais e democráticas passaram a ganhar peso.

Dentro desse quadro polarizado, o imperialismo norte-americano, em aliança com os principais setores das elites brasileiras e das Forças Armadas, preparou pacientemente o Golpe, ainda sob o governo de John Kennedy. Essa articulação contou com a mediação do embaixador ianque no Brasil, Lincoln Gordon.

Kennedy – com medo do Brasil se tornar uma “nova Cuba” ou, pior, uma nova “China” – apoiou a criação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que bancava a campanha de políticos contrários a Jango.

Já o IPES (presidido nesse período pelo general da reserva Golbery do Couto Silva, um dos professores da Escola Superior de Guerra, ESG, claramente inspirada no National War College norte-americano) tinha como objetivo coordenar a campanha para derrubar Goulart, acusado de querer a “bolchevização” do Brasil. O financiamento do IPES era feito por empresas multinacionais e nacionais. O IPES atuava entre proprietários de jornais, jornalistas, publicitários, estudantes, além de cooptar intelectuais e fazer campanhas de massas entre os trabalhadores, donas de casa e camponeses.

A temperatura subiu em 1963 com a onda de greves, desembocando na Campanha pelas Reformas de Base puxadas pelo próprio Goulart, que culminou no famoso Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 196 e contou com dezenas de milhares de pessoas. Foi o sinal para os golpistas prepararem o movimento que deporia Jango com as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” que juntou de 300 a 500 mil pessoas, em São Paulo.

Acontecimentos como a sublevação dos marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro (motim dirigido pelo agente infiltrado José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que contou com a adesão dos fuzileiros navais, tropa que foi convocada para reprimir os marinheiros) se somaram à Assembleia dos Sargentos no Automóvel Clube do Brasil, também na antiga capital federal, com a presença de Jango. As Forças Armadas começaram a rachar pela base, abrindo-se uma situação pré-revolucionária de fato. O Golpe era questão de horas.

Contudo, enquanto a direita conspirava e preparava o bote, o PCB, direção esquerdista com maior influência na classe trabalhadora, seguiu acreditando no seu dispositivo militar que trazia como informações do interior das Forças Armadas que: o grosso dos militares era nacionalistas e que não haveria golpe. A direção de Luís Carlos Prestes no PCB não cogitou em nenhuma hipótese uma possibilidade remota de se ter um quadro diferente, acreditando e fazendo os seus militantes e seguidores confiarem no legalismo da maioria dos militares.

No fundo, era a visão etapista da burguesia progressista e de seus correlatos, que cumpririam, na 1ª etapa um papel de aliança com o proletariado. Enfim, uma visão reacionária e pacifista da Revolução que permitiu, como sempre, a Contrarrevolução.

Primeiro de Abril de 1964 até o AI-5 (1964-68)

Tropas vindas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, comandadas pelo general Olympio Mourão Filho e orquestradas pelo governador de estado e banqueiro Magalhães Pinto, ganharam a adesão dos governadores de São Paulo (o corrupto Ademar de Barros Filho) e de Guanabara (Carlos Lacerda) e depuseram João Goulart, que não opôs resistência. Jango sabia que podia contar com o Exército do Rio Grande do Sul, mas preferiu não fazê-lo. Talvez tenha sido a decisão consciente de um membro da classe dominante brasileira, que procurou preservar intacto o Estado burguês brasileiro: sabia que na costa brasileira a Marinha norte-americana estava tutelando o Golpe (“Operação Brother Sun”) e que se fosse necessário o imperialismo ianque intervir e rachar o Estado burguês brasileiro – como feito antes nas Coreias e até então nos Vietnãs – não titubearia para garantir os seus interesses.

No dia 02 de abril, no Rio de Janeiro, 2 milhões de pessoas marcham novamente em nome da “Família com Deus pela Liberdade” respaldando o Golpe.

Na primeira semana do Golpe mais de sete mil pessoas foram presas. Nos três primeiros meses esses números foram elevados para 50 mil. Ao final de 1964, 19 opositores do regime (oito de organizações de esquerda) já tinham sido assassinados, 2.985 já tinham mandatos cassados e/ou com os direitos políticos suspensos, “aposentados”, reformados, demitidos ou destituídos. As Ligas Camponesas, a CGT e a UNE foram decretadas como ilegais, sendo que a UNE sofreu um incêndio criminoso por parte dos membros do Comando de Caças aos Comunistas (CCC).

O Ato Institucional nº 1, dias depois, decretou suspenso por dez anos os direitos políticos de opositores do regime militar como Luís Carlos Prestes, João Goulart, Miguel Arraes, Leonel Brizola, almirante Cândido Aragão e de intelectuais como Celso Furtado, Josué de Castro e Nélson Werneck Sodré, mas também de figuras públicas que apoiaram o golpe como JK e Jânio Quadros. Dentro desta lista de cassados, 116 parlamentares.

Após a posse do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi criado o Serviço Nacional de Informação (SNI), em meados de 1964. Ao mesmo tempo, a ditadura que recém se instaurava atacou conquistas históricas dos trabalhadores brasileiros, como o fim da estabilidade dos assalariados que tinham dez anos no emprego. Fundiu os Institutos de Previdência por categoria (IAPC, IAPETEC, IAPI, etc.) criando o INPS e golpeando a previdência pública. A equipe econômica do governo militar era composta por dois personagens completamente integrados aos interesses do imperialismo norte-americano, Roberto Campos (ironicamente apelidado de “Bob Field”) e Octávio Gouveia de Bulhões

Com os sindicatos sob intervenção, os trabalhadores assistiram um arrocho sem precedentes, em que os salários não conseguiam acompanhar nem de perto a elevação do custo de vida.

Porém, a resistência ao Golpe Militar começou a se esboçar no setor cultural. Em outubro de 1965, o governo decretou o AI-2 e transferiu para a Justiça Militar o julgamento dos crimes contra a Segurança Nacional e extinguindo o pluripartidarismo, impondo somente dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) com a “situação” e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de “oposição”.

Paralelamente, a ditadura negociava secretamente o acordo com Agência dos Estados para o Desenvolvimento Internacional (USAID), acordo MEC-USAID, que impunha uma reforma no ensino brasileiro, de acordo com os padrões norte-americanos. A panela de pressão foi aumentando no setor estudantil com a revelação dos termos do acordo MEC-USAID.

Os militares responderam, em 1966, com 167 punições no aparelho de Estado e no sistema político. O Congresso Nacional, por protestar, foi fechado. Fato fundamental para que a ditadura promulgasse, com tranquilidade, uma nova Constituição Federal em 1967 (em substituição à Carta de 1946) e editasse a primeira Lei de Segurança Nacional. Em seguida, o Marechal Artur da Costa e Silva, considerado como da “linha dura”, foi feito sucessor.

O caldeirão entornou em 1967/68 com a retomada do ascenso estudantil contra o Acordo MEC-USAID e por mais verbas públicas. Na esteira do que acontecia ou viria a ocorrer no planeta (maio de 1968 na França; Primavera de Praga; massacre dos estudantes mexicanos em 1968; “Córdobazo” na Argentina, em 1969; manifestações contra o racismo, pelos direitos da mulheres e gays e contra a guerra, acompanhadas da explosão da contracultura nos EUA) ocorreu o maior processo de lutas da história do movimento estudantil brasileiro. Entretanto, os quadros e lideranças estudantis impactados com a Revolução Chinesa de 1949, a Revolução Cubana de 1959 e a resistência heroica aos ianques no Vietnã começaram a abraçar o projeto da Guerra Popular Prolongada, de inspiração maoísta ou a concepção do “foco guerrilheiro” de Che Guevara e do francês Régis Debray.

O PC do B, racha do PCB de 1962, começou a manter militantes, muitos de origem estudantil, na região do entorno do Rio Araguaia, em 1966. Já na Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), na cidade de Havana/Cuba em 1967, o destacado dirigente do PCB e ex-deputado constituinte, Carlos Marighela, participou da mesma (com forte apoio do setor estudantil paulista do partido) contrariando a orientação da direção comunista, prenúncio da sua posterior ruptura e da constituição da Ação Libertadora Nacional (ALN).

O primeiro foco guerrilheiro, na Serra de Caparaó, foi desbaratado em 1967. Mesmo com esse episódio e o posterior assassinato de Che Guevara nas selvas bolivianas (quando tentava implantar um foco guerrilheiro) amplos segmentos da esquerda brasileira continuaram a acreditar na ofensiva com as lutas estudantis daquele período.

A ditadura seguiu contra-atacando com mais 138 punições no aparelho de Estado e no sistema político como tentativa de obstruir a oposição burguesa que se formava em torno de lideranças antes inimigas entre si sendo a Frente Ampla com JK, Jango e Carlos Lacerda. Em 28 de março de 1968, a temperatura chegou ao máximo: um protesto de estudantes cariocas reivindicando mais verbas para o restaurante popular Calabouço acabou em tragédia, com o assassinato do estudante Édson Luís, de 17 anos.

O cortejo fúnebre de Édson Luís juntou mais de 50 mil pessoas. Já a missa na Igreja Candelária do Rio de Janeiro com 30 mil presentes foi duramente reprimida. A ditadura reagiu e em abril tornou ilegal a Frente Ampla.

Mas, a classe operária ia voltar à cena: 15 mil operários de Contagem/MG realizaram uma greve parcialmente vitoriosa. No 1º de maio, o palanque do governador paulista da ARENA, Abreu Sodré, foi apedrejado por militantes ligados ao agrupamento de Carlos Marighela em manifestação de massas no centro de São Paulo.

No mês seguinte, a ditadura fez aprovar a Lei que estabelecia responsabilidades criminais para menores de 18 anos envolvidos em ações contra a Segurança Nacional.

As ações armadas da esquerda já se davam paralelamente às ações de massas. Mas, a extrema-direita respondia com maior ímpeto: no dia 12 de junho, o capitão da Aeronáutica Sérgio “Macaco” denunciou um plano do brigadeiro psicopata João Paulo Burnier, em explodir o Gasômetro no Rio de Janeiro (entre outros alvos) e na confusão assassinar lideranças como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, JK, Dom Hélder Câmara e mesmo o general que puxou o golpe, Olympio Mourão Filho, para, depois, responsabilizar a esquerda.

No dia 21 de junho, a polarização se agudizou e 28 pessoas morreram (27 civis) em confrontos de ruas motivados por protestos contra a prisão do líder estudantil Jean Marc von der Weid. A resposta do movimento de massas a essa barbárie chegou ao seu ápice com a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro. Cinco dias depois, sendo a comissão da passeata recebida por Costa e Silva, mas sem nenhum resultado prático.

O ministro da Justiça, Gama e Silva, duas semanas depois, proibiu a realização de passeatas. Ao mesmo tempo, a ditadura não mediu esforços para derrotar a greve dos operários de Osasco/SP, cujo presidente do sindicato era o operário-estudante José Ibrahim, de 20 anos, ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo que tinha como figura de destaque nas fábricas de Osasco, José Carlos Barreto, o Zequinha, e, ainda oculto nos quartéis, o capitão do Exército Carlos Lamarca.

O regime militar e seus aliados tomaram a ofensiva. Paramilitares de direita lançaram bombas contra a Associação Brasileira de Imprensa, em julho, e a os artistas da peça de teatro “Roda Viva” de Chico Buarque de Holanda foram agredidos em São Paulo e no Rio Grande do Sul por militantes do CCC.

O discurso do deputado do MDB, Márcio Moreira Alves, chamando o boicote às festividades de 07 de setembro, foi considerado provocativo e o regime acabou por pedir licença ao Congresso para processar o deputado, licença não concedida.

Dias depois, militantes do CCC, com base na Universidade Mackenzie/SP, atacaram os estudantes do prédio da Maria Antônia da USP, com um morto. E, no dia 12 de outubro, 739 dirigentes estudantis foram presos no Congresso da UNE, em Ibiúna/SP. Entre eles, os principais quadros do ME, José Dirceu, Luís Travassos e Vladimir Palmeira.

No dia 10 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal concedeu o habeas-corpus e ordenou a libertação de 81 presos em Ibiúna. A resposta foi imediata de Costa e Silva e o seu corpo de ministros: três dias depois o AI-5 foi editado, suspendendo o habeas-corpus para os chamados crimes políticos. Era a licença oficial para que o Estado Brasileiro, sob a égide do AI-5, pudesse prender, matar e torturar, sem pedir licenças ao Congresso e ao Judiciário.

Do AI-5 ao fim da luta armada e do “Milagre Econômico” (1968-73)

O fim de 1968, um ano que tanto prometia ao mundo, foi melancólico no Brasil: artistas presos (Caetano Veloso e Gilberto Gil), exilados (Geraldo Vandré, Edu Lobo e Chico Buarque) e mais uma lista extensa de cassações políticas com quase uma centena de deputados, sendo 37 da própria ARENA. Cerca de mil punições no aparelho de Estado e no sistema político, incluindo o antigo aliado do regime militar, Carlos Lacerda. Setenta docentes da USP foram aposentados. As eleições indiretas para governador foram estabelecidas.

Em 1969, com a ditadura aprimorando o aparelho jurídico e repressivo foi, em fevereiro, decretado o AI-6, que reduziu o número de ministros do STF para mantê-lo mais ainda sob controle. Também em fevereiro de 1969 foi editado o Decreto nº 477, que permitia os expurgos nas universidades de professores, estudantes e servidores acusados de atividades subversivas.

No mês seguinte, promulgou uma nova Lei de Segurança Nacional. E, em meados de 1969, foi criada a Operação Bandeirantes (OBAN), embrião dos DOI-CODIS por iniciativa do II Exército de São Paulo, captando recursos privados (Amador Aguiar do Bradesco, o empresário dinamarquês Henning Boilensen da Ultragaz, com o corrupto Paulo Maluf gerente da “caixinha”) para combater os grupos de ações armadas, estes cada vez mais convencidos de que com o regime militar, essa era a única forma de combatê-lo.

Em final de agosto de 1969, o ditador Costa e Silva sofreu um Acidente Vascular Cerebral. Seu vice, Pedro Aleixo (que tinha sido contra o AI-5) foi declarado impedido. Formou-se uma Junta Militar com o general Aurélio de Lira Tavares, o brigadeiro Márcio de Souza e Melo e o almirante Augusto Rademaker. Alguns dias depois, era sequestrado pelo comando guerrilheiro da ALN-MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) o embaixador norte-americano Charles Elbrick.

A ditadura cumpriu todas as exigências dos guerrilheiros, inclusive libertando 15 presos. Mas, logo depois através dos AIs-13 e 14 estabeleceu a pena de banimento do território nacional, a pena de morte e de prisão perpétua em caso de guerra revolucionária. Em seguida, uma nova Lei de Segurança Nacional foi baixada e a foi promulgada a Emenda Constitucional I, que modificou a Constituição de 1967 com mais restrições às liberdades individuais.

A resposta ao sequestro de Charles Elbrick foi em uma moeda pior: a ditadura assassinou o principal líder guerrilheiro brasileiro, Carlos Marighela, numa ação comandada pelo sanguinário delegado Sérgio Paranhos Fleury e provocou uma caça feroz à organização de Marighela, a maior da guerrilha urbana, a ALN e suas ramificações entre os padres dominicanos da Igreja católica.

Ao mesmo tempo, o regime militar impulsionava o chamado “Milagre Econômico”, em base a um pesado endividamento externo do Estado Brasileiro e um brutal arrocho da classe operária. Com taxas de crescimento de 10 a 13% ao ano, o “Milagre”, por tabela, cooptou a classe média, tirou a base social antirregime, que ancorava a esquerda e os grupos guerrilheiros no final dos anos sessenta.

O General Emílio Garrastazu Médici, antigo integralista e que seria o ditador mais sanguinário do regime militar, já tinha sido “eleito” e tomado posse, antes mesmo da morte de Costa e Silva, no final de 1969. A contabilidade, nesse período, já apontava mais 16 militantes das organizações de esquerda assassinados.

No início de 1970, entraram em funcionamento o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e o Destacamento de Operações de Informações (DOI), que centralizaram a repressão política, aumentando a eficácia e a crueldade da mesma e que vitimaram, entre outros, o ex-deputado constituinte, o jornalista e intelectual Mário Alves, da organização guerrilheira Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Também no início de 1970 foi estabelecida a censura prévia a livros e revistas. Mesmo assim, a luta armada continuou fustigando: em março de 1970 foi sequestrado o cônsul japonês Nobuo Okuchi pela VPR, conseguindo a libertação de cinco presos políticos. Em contrapartida, o foco guerrilheiro da VPR no Vale do Ribeira/SP foi desbaratado.

Mais ajustes no aparelho repressivo do regime militar: entrou em funcionamento o Centro de Informações do Exército (CIE) e foi reformulado o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA). A esquerda buscou sair da defensiva: um comando da VPR e da ALN sequestrou o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben em meio à euforia criada pela Copa do Mundo de futebol no México. O regime conseguiu capitalizar, posteriormente, com a conquista do tricampeonato mundial pela seleção brasileira. A ditadura cedeu novamente a todas as exigências e soltou 40 presos políticos.

Porém, meses depois, Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe assassinaram Joaquim Câmara Ferreira, dirigente da ALN, o substituto de Marighella e Eduardo Collen Leite, o Bacuri.

Nas eleições gerais de 1970, visando garantir a tranquilidade da vitória da ARENA e impedir a campanha do “voto nulo” propagada pela esquerda armada, mais de 10 mil pessoas foram presas em uma blitz nacional, inclusive alguns candidatos do MDB.

Como tentativa final de sobrevivência da luta armada, um comando da VPR com o MR-8 (ação comandada pelo capitão Carlos Lamarca) sequestrou o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Dessa vez, a ditadura se negou a cumprir todas as exigências dos guerrilheiros, que conseguiram, a muito custo, a libertação de 70 presos políticos. No final de 1970 mais 27 militantes das organizações de esquerda foram assassinados (inclusive militantes não envolvidos com a luta armada, como o operário trotskista Olavo Hanssen) e outras 300 punições no aparelho de Estado e no sistema político foram efetuadas.

De 1971 a 1973 ocorreram os estertores da guerrilha urbana e o início do combate pelas Forças Armadas à Guerrilha do Araguaia contra as bases guerrilheiras montadas pelo PC do B. Estabeleceu-se uma verdadeira briga de “cão e gato”: a ditadura militar se aproveitando do isolamento social da luta armada foi infiltrando agentes no interior dos grupos guerrilheiros (o mais famoso de deles, o Cabo Anselmo). Os grupos guerrilheiros responderam à incursão do regime com ações de justiçamento aos colaboradores do regime militar (a mais famosa foi a de Henning Boilensen, em 1971), mas cada vez mais se envolvia com ações que buscassem a coletas de fundo para sua sobrevivência.

O governo Médici tinha apoio popular não somente com expansão do crédito e do consumo com o “Milagre Econômico”, mas com a propaganda do “Brasil Grande”, da execução das obras faraônicas (Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, entre outras, onde a corrupção grassava entre agentes do governo e as empreiteiras).

Mas, para essa propaganda, a ditadura precisava da pesada censura prévia à imprensa, as mortes de operários nessas obras e o genocídio de povos indígenas, cujos números podem multiplicar em quase dez vezes as vítimas fatais provocadas pela ditadura militar. Na área cultural, diferentemente da ditadura varguista que cooptava artistas e intelectuais, a política do regime militar, através da Associação Especial de Relações Públicas (AERP) e da censura, era enquadrar a produção artística e perseguir aqueles que não se enquadrassem.

Ao final do governo Médici, como números finais, ocorreram 233 punições no aparelho de Estado e no sistema político e cento e setenta e quatro militantes vinculados às organizações de esquerda foram assassinados (inclusive o Capitão Lamarca e José Carlos Barreto, em setembro de 1971), alguns já com os corpos “desaparecidos” como o ex-deputado Rubem Paiva e o ex-presidente do Sindicato dos Bancários do Rio e líder da antiga CGT, Aluísio Palhano. Foi na morte de Alexandre Vanucchi Leme, estudante da USP e militante da ALN, que, após cinco anos, houve a primeira manifestação de milhares (5.000 pessoas ao todo) na missa em memória do estudante morto, em março de 1973.

No segundo semestre de 1973 iniciou-se a terceira empreitada militar final contra a Guerrilha do Araguaia, a maior campanha militar do Exército Brasileiro, depois da Guerra dos Canudos, no século XIX. As duas empreitadas anteriores na região do Araguaia tinham fracassado, quando dez mil soldados foram rechaçados por 70 guerrilheiros, com poucas baixas nestes últimos. Na 3ª campanha, o maior comandante da Guerrilha do Araguaia, o ex-deputado federal constituinte de 1946, Maurício Grabois, acabou executado no Natal de 1973. Das diversas organizações de esquerda (VPR, VAR-Palmares, MR-8, PCBR, MOLIPO, PC do B e ALN, as mais famosas) sobraram resquícios de algumas delas como a VPR, a ALN e o PC do B. Era questão de mais um ano para que as mesmas fossem dizimadas como organizações guerrilheiras.

O ocaso da luta armada no Brasil coincidiu com o fim do “Milagre Econômico” propagandeado pela ditadura militar. Ao sabor da chamada crise do “petróleo” (1973), o “Milagre” mostrou ter pés de barro e os índices de crescimento, inigualáveis no mundo naquele período, encolheram. Paralelamente, a escalada militar norte-americana no Vietnã, promovida pelo presidente ianque Richard Nixon, dava sinais de esgotamento, frente à resistência interna à guerra e a heroica luta desenvolvida pelos vietcongs.

Contraditoriamente a esse quadro internacional que se mostrava desfavorável ao regime militar, o Golpe no Chile se concretizou, em setembro de 1973, massacrando a esquerda chilena.

Da “Distensão, Lenta, Gradual e Segura de Geisel” ao Fim do AI-5 (1974-78)

A eleição indireta do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral foi a primeira vez que o MDB apresentou um anticandidato, Ulysses Guimarães (outrora apoiador do Golpe em 1964). Geisel ganhou com facilidade, mas a crise econômica aberta ao final do governo Médici fez com que o novo ditador-presidente, mais vinculado à ESG e ao general Golbery do Couto e Silva, procurasse “desestrangular” os canais de diálogo com a sociedade civil. Foi aquilo que se convencionou como “Distensão, Lenta, Gradual e Segura”. Essa política gerou enfrentamentos no seio do regime militar entre os “distensionistas” e os “linhas-duras”, estes últimos contrários a qualquer afrouxamento na repressão.

A censura prévia foi abrandada em meados dos anos setenta, mas esse dado não significou que o aparelho de Estado brasileiro não continuasse agindo de forma violenta contra os oposicionistas: em outubro de 1974, o STF condenou a seis meses de prisão o deputado Francisco Pinto, da ala dos “autênticos” do MDB, por ter feito um discurso contrário à ditadura chilena. Registre-se: o Chile, junto com as ditaduras do Paraguai e do Uruguai, já era parte da “Operação Condor”, em que o Estado brasileiro cumpria um papel fundamental de coordenação para a repressão continental aos esquerdistas.

Somente no ano de 1974, 41 militantes ligados às organizações de esquerda foram assassinados ou “desaparecidos”, fato que deu um ponto final às organizações guerrilheiras como VPR, PC do B, que ainda tentavam esboçar uma reação. Mas as ações ligadas ao grupo da “linha dura” do regime se voltaram na “Operação Radar” contra o PCB, que não se somou à luta armada e sempre foi crítico à mesma, mas foi responsabilizado pela retumbante vitória que o MDB obteve no pleito de 1974. Muitos dos “desaparecidos” como o ex-deputado comunista David Capistrano da Costa (ex-participante do Levante Comunista de 1935 e da Guerra Civil Espanhola) tiveram os corpos ocultados nos centros de tortura clandestinos.

Somente em 1975, de acordo com a Anistia Internacional, mais de 2 mil pessoas foram detidas no Brasil, sendo que cerca de 700 foram mantidas presas. No período de 1975/76, 19 militantes foram assassinados nos porões da ditadura. A maioria era de quadros do PCB, sendo os mais famosos o jornalista Wladimir Herzog – para quem foi realizado um ato ecumênico com quase 10 mil pessoas – e o operário Manoel Fiel Filho). Existiram também nesta lista pessoas que não eram militantes como a estilista Zuzu Angel, que denunciava a morte do seu filho, o guerrilheiro do MR-8, Stuart Angel, assassinado na tortura em 1971.

Registre-se que nesse mesmo ano de 1976 morreram as lideranças da oposição burguesa da Frente Ampla, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart.

Voltando às ações dos porões do regime militar, uma das mais contundentes foi a chamada “Chacina da Lapa”, em dezembro de 1976, em uma reunião que visava rearticular o PC do B, ocorreu a invasão dos agentes da repressão e o assassinato de três militantes, os históricos Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Batista Drummond.

Essas ações muitas vezes provocavam crises no interior do regime militar, pressionado pela nova política adotada pelos EUA de “direitos humanos”, oriunda da acachapante derrota do imperialismo ianque no Vietnã e o impeachment do presidente republicano Richard Nixon: o general comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila, foi afastado por Geisel, em 1976, após o assassinato de Fiel Filho.

Eram tempos conturbados no mundo. De um lado, a Revolução dos Cravos, em 1974, em Portugal, que derrubou o salazarismo e abriu o processo de desmonte do Império português com as guerras de libertação nacional em Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde. O Peru passava por um governo militar, dirigido por Velasco Alvarado, com cunho nacionalista e impressionava Geisel, que anos depois tentaria construir um programa nuclear para o Brasil, independente dos EUA. De outro lado, o Golpe na Argentina, em 1976.

Os grupos paramilitares abrigados no interior do governo seguiram atuando com atentados a bombas à OAB, à ABI e ao CEBRAP.

No dia 22 de setembro de 1976, o bispo Dom Adriano Hipólito foi sequestrado e surrado. E visando cercear o crescimento da oposição burguesa do MDB, o ministro da Justiça, Armando Falcão, nas eleições para as cidades, em 1976, baixou a chamada “Lei Falcão” que inibia a propaganda eleitoral na televisão. O governo militar seguiu tentando controlar a própria “distensão”: no primeiro semestre de 1977 cassou o mandato de vários parlamentares oposicionistas, decretou o Pacote de Abril (em que criava a figura do senador “biônico”, indicado pelo próprio regime) fechando o Congresso.

Em maio daquele ano, militantes da organização trotskista Liga Operária foram presos e barbaramente torturados por panfletarem a convocação do 1º de Maio. Em julho, 25 militantes do Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) foram presos e bastante seviciados. A campanha pela libertação dos presos políticos chegou a PUC-SP, que teve uma assembleia de estudantes invadida pelo coronel Erasmo Dias, em 22 de setembro de 1977, com estudantes espancados e presos.

A temperatura novamente se elevou não somente no movimento estudantil, mas dentro do regime militar: Geisel acabou por demitir o Ministro do Exército, Sílvio Frota, ligado à “linha dura”, por conspirar e se impor como o sucessor de Geisel. O ditador militar já tinha escolhido o seu sucessor: o general João Batista de Oliveira Figueiredo, ex-chefe do SNI. A divulgação da escolha de Figueiredo, em janeiro de 1978, fez explodir nova crise no governo militar: o general Hugo Abreu, que tinha sido um dos comandantes da ação militar contra a Guerrilha do Araguaia e fundamental na exoneração de Sílvio Frota passou a atacar Geisel, após a escolha de Figueiredo.

Por detrás da crise militar, a elevação do custo de vida, a carestia, toda a conta que o “milagre econômico” veio cobrar dos trabalhadores e dos mais pobres que nunca se beneficiaram do mesmo. Em maio de 1978, explodiu a greve metalúrgica da Scania, São Bernardo do Campo, a primeira greve depois da derrota dos metalúrgicos de Osasco, em 1968. Na sequência, dezenas de fábricas metalúrgicas da região do ABC paulista pararam, numa onda que se estenderia para São Paulo nos meses de junho e julho.

Foi nesse confronto que surgiu a liderança do presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Luís Inácio Lula da Silva, que tinha entrado na diretoria do sindicato, como suplente no período de intervenção do regime militar nesta entidade e em outras.

Em agosto de 1978, 27 militantes da Convergência Socialista (organização de esquerda que estava nas greves do ABC e que sucedeu a Liga Operária) foram presos. Dezessete militantes foram soltos, sendo que dez mantiveram-se presos até dezembro de 1978.

Mesmo com a revogação do AI-5, em outubro de 1978, com o fim da censura prévia à imprensa (ainda que existisse a ameaçadora Lei de Imprensa) e mesmo perdendo as eleições proporcionais de 1978, o regime militar se manteve, com a eleição de Figueiredo. Este derrotou o também General Euler Bentes Monteiro, candidato do “oposicionista” MDB. A prova de que o regime militar podia estar em crise, mas seguia vivo, foi a aprovação de uma nova Lei de Segurança Nacional, em novembro daquele ano.

Inicia-se o fim do Regime Militar (1979-84)

O general Figueiredo assumiu em um ano, convulsionado no mundo e no Brasil: a Revolução Iraniana, de forte cunho operário no primeiro momento, derrubou o Xá Reza Pahlevi; a Guerrilha Sandinista, de massas, se preparava para derrubar o ditador Anastásio Somoza, na Nicarágua. A chamada crise da dívida externa, expressão da crise estrutural do capital pós o “boom” econômico que se seguiu a II Guerra Mundial, arrastava as economias periféricas do chamado 3º Mundo, como a brasileira. A política dos EUA, sobre a presidência de Jimmy Carter, era a dos direitos humanos e da reação democrática, políticas eficazes que fizeram retroceder a “Revolução dos Cravos”, em Portugal.

Em função da crise econômica, a espiral inflacionária cresceu bastante assim como a alta do custo de vida. Esta, somada ao fato dos trabalhadores não se sentirem mais intimidados em reivindicar após a greve da Scania, produziu o maior ascenso grevista da história do país, desde 1964. No calor da nova onda de lutas, o ABC paulista protagonizou o novo sindicalismo e de lá surgiu, pela base, a proposta de criação de um Partido dos Trabalhadores, ainda que a liderança maior que emergiu desse processo (Lula) estivesse muito próximo a figuras do MDB, como Fernando Henrique Cardoso.

Em abril/maio estourou uma nova greve dos metalúrgicos dessa região. Em meio a greve, morreu, supostamente de acidente, um dos artífices da repressão sanguinária do regime militar: o delegado Sérgio Paranhos Fleury. No saldo final do ascenso grevista de 1979, mais de 3 milhões de trabalhadores cruzaram os braços (até coveiros), reconstruiu-se a maior parte das entidades estudantis (UNE e UBES). Porém, cinco operários foram assassinados nos confrontos de rua gerados pelo ascenso grevista, sendo a morte mais emblemática a de Santos Dias, em São Paulo.

Em final de agosto, o regime militar sancionou a Lei de Anistia, com uma série de restrições aos que combateram o regime militar, mas, perdoando de fato, os agentes da repressão. Mesmo com essa “anistia” vários exilados retornaram, assim como presos políticos foram libertados. No final de 1979, a temperatura voltou a ficar quente com a “dezembrada”, em Florianópolis, enfrentamento de estudantes com o general Figueiredo, quando este visitava a capital catarinense. Também no final do ano de 1979, foi aprovada a lei da reforma partidária que trouxe de volta o pluripartidarismo, visando a divisão da chamada oposição burguesa.

Previa-se quatro partidos: PDS (antiga ARENA), Partido Populista (parte do antigo MDB, sob a liderança de Tancredo Neves), PMDB (outra parte do MDB, comandada por Ulysses Guimarães) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB, antigos trabalhistas, que estavam abrigados no MDB). A briga entre os trabalhistas pela sigla, além de gerar o PTB, acabou fazendo surgir o Partido Democrático Trabalhista (PDT, capitaneado por Leonel Brizola, recém retornado do exílio).

Mas, o mais surpreendente de todos foi o surgimento do PT, com forte inserção no novo sindicalismo, cujas figuras de proa eram Lula e o seu grupo de sindicalistas. Também contava com a adesão de grupos oriundos das Comunidades Eclesiais de Base, da Pastoral Operária e da Terra; intelectuais como o ex-trotskista Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido.

Em que pese a presença de alguns poucos parlamentares tinham artistas como a ex-guerrilheira Bete Mendes; militantes e ex-guerrilheiras que voltavam do exílio e das prisões, cuja principal expressão era Apolônio de Carvalho (participante do levante comunista de 1935, membro das Brigadas Internacionais na Espanha em 1936, herói da Resistência Francesa e guerrilheiro do PCBR); e organizações esquerdistas: Convergência Socialista, Democracia Socialista (“Em Tempo”), Organização Socialista Internacional (“O Trabalho”), Organização Quarta Internacional (“Causa Operária”), Partido Comunista do Brasil-Esquerda (PC do B-E, futuro Partido Revolucionário Comunista, somente atuando em alguns estados no PT e em outros no PMDB), Ala Vermelha, Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP), Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) e Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (em alguns estados atuando no PT, em outros no PMDB).

Outra parte da esquerda preferiu-se abrigar no PMDB (PC do B e MR-8) e outra no PP (PCB). Militantes rompidos com o PCB também se abrigaram no interior do PDT (os seguidores de Luiz Carlos Prestes, chamados de “prestistas”; os que reivindicavam o legado do militante histórico do PCB, Gregório Bezerra, agrupados nos Coletivos Gregório Bezerra (CGB); a Reconstrução do PCB e o Movimento dos Trabalhadores Socialistas, ligado ao Partido Comunista Português) assim como os posadistas (“Frente Operária”).

Tanta “liberalidade” por parte do regime militar em “permitir” a existência legal de diversos agrupamentos de esquerda, inclusive, com as suas publicações nas bancas de jornais fez com que os grupos paramilitares voltassem a carga. Se em 1977 foram 3 ações terroristas de extrema-direita, em 1978 já foram 6, em 1979 foram 10. Em abril de 1980, foram explodidas dezenas de bancas que vendiam a imprensa alternativa. No total, foram 31 ações terroristas de extrema-direita em 1980, sendo as mais chocantes a que matou a secretária da OAB/RJ Lyda Monteiro da Silva e a que deixou feridos na Câmara de Vereadores do Rio, no gabinete do vereador Antônio Carlos de Carvalho, do PMDB e ligado ao MR-8.

Também em 1980, a greve dos metalúrgicos do ABC foi derrotada pela ditadura militar com carros blindados e helicópteros, ocorrendo a intervenção no sindicato e a prisão de 13 líderes sindicais, sendo 12 do grupo de Lula (inclusive ele) e mais José Maria de Almeida da Convergência Socialista. Os líderes metalúrgicos foram denunciados para a 2ª Auditoria Militar de São Paulo por crime de incitação à subversão e foram condenados a penas que variavam de dois a três anos de prisão.

Em final de 1980 a ditadura reestabeleceu as eleições diretas para governadores. Mas, em 1981 o Brasil mergulhou em recessão e veio o “interregno” na luta de classes. O México “quebrou” e suspendeu o pagamento da dívida externa. A política do imperialismo norte-americano, com a eleição de Ronald Reagan reforçava a política do imperialismo inglês desde a assunção de Margareth Thatcher como primeira ministra em 1979: a rapinagem nas economias periféricas, que tentava também atingir o Leste Europeu com a atuação do papado de João Paulo II instrumentalizando o sindicato independente Solidariedade, através da liderança de Lech Walesa.

A extrema direita continuou fazendo ações terroristas até o atentado fracassado no dia 1º de Maio no Rio-Centro/RJ, em show com vários artistas quando um agente paramilitar morreu e outro foi gravemente ferido. A não apuração das responsabilidades do atentado fez com que Golbery do Couto e Silva entregasse o seu cargo no governo. O corrupto Delfim Netto passou a ditar as regras como fazia no governo Médici, na política econômica e Leitão de Abreu na Casa Civil.

Em agosto de 1981, a ditadura militar boliviana de García Meza caiu. Sentindo a iminência da derrota nas eleições do ano seguinte, no final de 1981, a ditadura instituiu o voto vinculado, obrigando o eleitor a votar somente em candidatos de um partido. Essa medida fez com que a ala moderada do PMDB que tinha migrado para o PP retornasse à antiga legenda. Porém, nas eleições de 1982, mesmo com a manobra do voto vinculado, o governo perdeu em vários estados importantes para a oposição burguesa. Era o “efeito dominó” do que acontecia na Argentina, que depois do malogro na guerra contra a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas, a ditadura acabou sendo derrubada. Entretanto, os porões do regime brasileiro ainda continuavam agindo, ainda que de maneira mais controlada, como se verificou no assassinato do jornalista Alexandre Von Baungarten, da revista “O Cruzeiro”, no final de 1982.

O ano de 1983, começou com o lançamento da campanha das Diretas. Em abril uma manifestação de dez mil desempregados no centro de São Paulo, dirigida pelo deputado Aurélio Perez do PMDB e vinculado ao PC do B, terminou em uma onda de saques, quebra-quebra, com as grades do Palácio Bandeirantes sendo colocadas abaixo. Os militantes de Alicerce da Juventude Socialista (que sucedeu a CS), Henrique Carneiro e Silvano Baía, foram presos distribuindo panfletos, convocando uma Greve Geral.

Delfim editou vários pacotes econômicos (Decreto nº 2012, 2024, 2044, 2045) tentando expurgar os salários e fazer com que os trabalhadores pagassem mais uma vez pela crise. A resposta foi imediata: uma onda de lutas dos trabalhadores públicos e de estatais, desembocou em uma greve de petroleiros em Paulínia/SP e Mataripe/BA. Os metalúrgicos do ABC pararam em solidariedade. No dia 21 de julho, depois de 21 anos, existiu o primeiro ensaio de greve geral no país.

Em agosto, o novo sindicalismo fundou a Central Única dos Trabalhadores, dirigida majoritariamente pelo PT, com os sindicatos mais combativos e diversas oposições de base. O sindicalismo mais “pelego” (incluindo aí os stalinistas do PCB, PC do B e MR-8) ficaram abrigados na Confederação Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT). Fracassado nas tentativas anteriores de decretos econômicos, o governo voltou à carga com os Decreto nº 2064 e nº 2065.

Uma nova Greve Geral foi convocada pela recém-fundada CUT para 25 de outubro, mas, a mesma acabou sendo desmarcada: o PT, já com o aparelho do partido dominado pela corrente Articulação dos 113 dirigida por Lula e José Dirceu, decidiu acompanhar os passos da oposição burguesa e se jogar na Campanha pelas Diretas.

No final do ano de 1983, o primeiro ato pelas Diretas se realizou em São Paulo. No início de 1984, 40 mil tomam as ruas de Curitiba. Novos atos foram realizados, incorporando mais gente, São Paulo, Rio de Janeiro (dois atos, boicotados por Leonel Brizola), Minas Gerais, na luta pela aprovação no Congresso da Emenda Dante de Oliveira (deputado do PMDB). Comitês pró-Diretas se instalaram em todo o país e o Comitê Nacional Pró-Diretas decidiu pela convocação de um dia de paralisação cívica no dia 25 de abril, data da votação da Emenda Dante de Oliveira. A Greve Geral novamente voltava à ordem do dia.

Enfim, chegou-se o dia 10 de abril, o comício da Candelária, finalmente com a participação de Brizola, que antes de ir para o ato mandou arrancar e rasgar a faixa de Alicerce da Juventude Socialista que convocava a Greve Geral de 25 de abril. Um milhão de pessoas se somaram ao comício da Candelária, mas a Greve Geral começava a ser desmontada. No dia 17 de abril, 1 milhão e meio de pessoas tomaram o Vale do Anhangabaú, em São Paulo e em Goiânia, 2/3 da população da cidade compareceram ao comício pelas Diretas.

A Greve Geral foi desmarcada. O governo decretou estado de sítio em Brasília, no dia da votação da Emenda Dante de Oliveira, sob o comando do general Newton Cruz. A emenda Dante Oliveira teve os votos da grande maioria dos deputados, mas não obteve os 2/3 de votos necessários. As Diretas foram derrotadas por pouco, mas o regime militar estava ferido de morte. O Grupo Pró-Diretas do PDS era a expressão disso, envolvendo o vice-presidente Aureliano Chaves e o presidente do partido da ditadura, José Sarney.

A derrota da candidatura do presidenciável o coronel Mário Andreazza para Paulo Maluf, na Convenção do PDS, fez com que se debandassem mais ex-governistas para a candidatura do oposicionista e governador de Minas Gerais Tancredo Neves, que aglutinava Leonel Brizola, FHC, Mário Covas, Franco Montoro, Aureliano Chaves, Ulysses Guimarães, José Sarney e, discretamente, o ex-ditador Ernesto Geisel.

A campanha das Diretas estava enterrada pela oposição burguesa. Ainda houve um ato com cerca de 100 mil pessoas, em junho de 1984, no Rio de Janeiro, mas foi o último. O PT foi o único partido que denunciou o Colégio Eleitoral, mas, mesmo assim, três deputados (Airton Soares, José Eudes e Bete Mendes) declararam apoio a Tancredo, sendo expulsos, com amplo respaldo da base do partido.

No dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo foi eleito pelo Colégio Eleitoral tendo como vice José Sarney. Por ironia da história, gravemente enfermo não tomou posse e viria a falecer no dia 21 de abril, sendo definitivamente empossado no seu lugar o ex-presidente do partido da ditadura, José Sarney.

Como era de se esperar, os crimes da ditadura não foram apurados e nem a estrutura repressiva foi desmontada. O projeto “Brasil, nunca mais” apontou que de 1964 a 1979, cerca de 10 mil cidadãos exilaram-se, 4.682 foram cassados por diversos meios, 245 estudantes expulsos das universidades, milhares de pessoas passaram pelos cárceres políticos, mais de 300* foram assassinadas pelo aparelho repressivo, 7.367 cidadãos processados por atividades políticas de oposição e 6.385 indiciados por inquéritos policiais pelos mesmos motivos.

Por fim, diferentemente do que colocou o editorial da Folha de São Paulo (jornal que colaborou com a cessão de veículos para as ações dos agentes da ditadura, no início dos anos setenta) em novembro de 2009, de “branda” a ditadura não teve nada. Toda essa violência de classe do Estado brasileiro, através da sua ditadura civil-militar, esteve a serviço da destruição de um projeto de nação, mesmo em marcos bastante limitados e que estava sendo engendrado nos anos sessenta, destruir a escola e a saúde públicas, aprofundando a dependência externa da economia brasileira, com o endividamento externo pesado com a banca internacional e nacional.

É verdade que o movimento social conseguiu se recompor: surgiu em substituição às Ligas Camponesas, o Movimento dos Sem Terra; no lugar do Comando Geral dos Trabalhadores, a CUT, com os sindicatos das suas bases buscando se desvencilhar da herança varguista; as entidades estudantis foram reconstruídas, mas sem a mesma potência dos anos sessenta. Porém, o estrago social de 20 anos foi muito maior: a miséria aumentou, assim como a concentração de renda nas mãos de alguns poucos. E o que pior: os agentes do Estado que cometeram todos esses crimes continuaram soltos, diferentemente do que aconteceu na Argentina. Dentro do aparelho de Estado conviveram com os novos agentes “democráticos” que cooptaram para o “Estado Democrático de Direito” toda a organização independente dos trabalhadores surgida no final dos anos setenta e início dos anos oitenta.

Relembrar toda essa história (ainda que de forma resumida) é fundamental, quando existe um amplo setor de trabalhadores, de pobres e de jovens seduzidos pelo discurso da candidatura fascista de Jair Messias Bolsonaro, que se aproveita de todas as vacilações e traições dos governos lulo-petistas para não somente atacar a esquerda, mas exaltar as virtudes do período mais nebuloso da nossa história recente, esquecendo toda a corrupção, a violência, a tortura, os assassinatos, o entreguismo dessa época.

*nas contas não está o genocídio indígena, que elevaria esses números em mais de três mil.

Bibliografia: “Contra os inimigos da ordem – a repressão política do regime militar brasileiro (1964-1985)” de Marco Aurélio Vannucchi L. de Mattos e Walter Cruz Swensson Jr.