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Da ofensiva de Kornilov às vésperas da Revolução de Outubro


1 de agosto de 2017

Sérgio Lessa

Vimos, no Jornal Espaço Socialista do mês passado, como a sobrevivência de um Governo Provisório cada vez mais enfraquecido e desacreditado ante a ofensiva espontânea das massas nos meses de maio e junho, abriu espaço para que as forças reacionárias, lideradas pelo General Kornilov, tomassem a iniciativa. Os revolucionários, os bolcheviques antes de todos, são perseguidos e aprisionados, Lênin ameaçado de morte tem que se refugiar na Finlândia (e aproveitaria esses meses lá isolado para escrever O Estado e a revolução), o jornal bolchevique é empastelado. O Alto Comando Militar fez o que pode para acabar com a influência da organização revolucionária dos soldados e marinheiros e, nas fábricas, os patrões combatem com toda a ferocidade a organização dos trabalhadores e operários. O Governo Provisório apoia a ofensiva contrarrevolucionária com a condição de que ela o mantivesse no poder; os contrarrevolucionários aceitam a aliança com Kerenski e o Governo Provisório para destruir a esquerda e, em seguida, derrubar o próprio Governo Provisório. Em poucas palavras, os dias do Governo Kerenski estavam contados. A questão era se o sucederia um governo dos trabalhadores, soldados e camponeses ou um governo contrarrevolucionário. Isso seria sucedido nas poucas semanas que vão do 9 de setembro ao 25 de outubro de 1917, pouco mais de 6 semanas! Nesse mês, veremos como as condições amadureceram revolucionariamente nessas poucas semanas e, no mês que vem, como foi a tomada do poder pelos bolcheviques.

Voltemos um pouco no tempo, aos meses de julho e agosto. Nesses meses, ainda durante a ofensiva de Kornilov e seus partidários, aproveitando o refluxo da maré revolucionária, a burguesia e o governo provisório não perderam tempo em lutar contra os comitês de fábricas e a influência que estes exerciam no interior das unidades de produção. A 3 de agosto o Governo Provisório lançou uma campanha contra os comitês nas estradas de ferro. “Kukel, vice-ministro da Marinha, propõe a proclamação da lei marcial nas estradas de ferro e a criação de comissão com poderes para dissolver os comitês” (1)
“Pouco tempo depois se reuniu em Petrogrado uma Conferência de patrões que criou uma União de Associações Patronais. Seu presidente, Birmanov, declarou que o principal objetivo da nova organização era a eliminação da intrusão dos Comitês de Fábrica nas funções que são privativas da direção”.
Essas tentativas foram enfrentadas pela “Segunda Conferência dos Comitês de Fábrica de Petrogrado e províncias adjacentes”, que se reuniu de 7 a 12 de agosto. A conferência referendou as disposições anteriores que davam autonomia para a atuação dos comitês na fábrica, rejeitou as pretensões dos patrões de controlar a criação, ou de extinguir, os comitês eleitos diretamente pelos operários. Além disso, a conferência decidiu dar os primeiros passos no sentido de desvincular os comitês de qualquer controle dos sindicatos, nas mãos principalmente dos mencheviques. Para isso, 0,25% dos salários dos operários representados deveriam ser canalizados para a criação de um fundo para o Soviete Central dos Comitês de Fábrica, que ficaria assim “financeiramente independente dos sindicatos”.
Nas resoluções aprovadas pela Conferência, os Comitês de Fábrica exigem para si o direito de “controlar a composição da administração, e (…) a demissão de todos os que não pudessem garantir relações normais entre os operários ou que fossem incompetentes por outras razões”. “Todo membro do pessoal administrativo da fábrica terá que obter autorização do comitê de fábrica, para ocupar um posto; o comitê dará conhecimento de sua posição na Reunião Geral de toda a fábrica ou através de comitês de departamentos ou de oficina”.
No final de agosto, diversas greves importantes ocorreram: trabalhadores do couro, mineiros de Donbás, petroleiros de Baku, têxteis de Petrogrado. Nestas greves, uma característica comum: do lado dos patrões uma disposição em aumentar os salários, mas nunca reconhecer os comitês de fábrica. De outro lado, a disposição dos operários de reivindicarem, em primeiro lugar, que o direito de demissão e contratação de pessoal da fábrica coubesse somente ao comitê eleito pelos operários.
No dia 28 de agosto, o Governo Provisório, através de seu ministro (menchevique) do trabalho Skobelev, promulgou a “Circular 421” que proibia as reuniões de comitês de fábrica durante o horário de trabalho “devido à necessidade de consagrar todas as energias e todos os segundos a um trabalho intensivo”. Mais uma vez o Governo Provisório tentava controlar a organização independente dos operários através de decretos que somente serviam para desmoralizá-lo frente às massas. Naquela conjuntura, os operários não mais obedeciam a decretos como este.

As lutas camponesas

Enquanto o papel decisivo da luta do operariado era exercido pelos operários de Petrogrado, entre os camponeses, o mesmo papel era exercido pelas regiões agrícolas da Rússia Central, notadamente no vale médio do Rio Volga. Lá a agricultura, organizada tendo em vista a exportação, tinha adquirido um caráter mais capitalista e a estratificação entre os camponeses era mais definida.
Durante o verão, a luta dos camponeses cresceu de forma constante, aproximando-se da guerra civil. A forma de luta variava segundo a região: ocupação de fazendas, colheitas realizadas sem a autorização dos senhores da terra, distribuição de terras, etc. Até julho, o método empregado pelo Governo Provisório para combater os revoltosos tinha sido o envio de oradores protegidos por soldados aos locais onde os trabalhadores rurais estivessem “quebrando a lei” para persuadi-los a voltar atrás. No entanto, após a vitória sobre os trabalhadores em julho, as tropas da cavalaria se dirigiram ao campo, sem oradores, e se colocavam à disposição dos latifundiários. Na província de Kazam, uma das mais tumultuadas, eles obtiveram sucesso – para citar o jovem historiador Yugov — “somente através de prisões, trazendo tropas para o interior das vilas, mesmo revivendo o costume do chicoteamento (…) reduzir os camponeses à submissão”.
No entanto, a partir do verão, especialmente após o mês de agosto, o movimento camponês começou a tomar claramente um rumo cada vez mais à esquerda. Decrescem proporcionalmente as lutas que envolviam as taxas de aluguel do arrendamento da terra, ao mesmo tempo que crescem em proporção as ocupações de terras e a destruição das propriedades dos nobres e da Igreja. A luta pela modificação das condições de aluguel da terra, que em junho excediam os números de casos de movimentos destrutivos caíram em outubro para 1/40 do número (dos conflitos camponeses). “Mais de 42% de todos os casos de destruição registrados pela polícia entre a revolução de Fevereiro e a de Outubro, ocorreram no mês de outubro”.(29)
“Nos distritos que importavam grãos, a situação da alimentação deteriorou mais rapidamente que nas cidades. Não somente estava faltando comida, como também sementes (…). A população buscava substitutos para o pão. Relatórios davam conta de casos de escorbuto, tifo e suicídio de desespero. Fome e sua crescente sombra faziam a vizinhança da opulência e luxúria especialmente intolerável. As camadas mais destituídas das vilas moveram-se para as primeiras fileiras da luta”.
A tática utilizada pelos camponeses para combater os latifundiários era a mesma tática das velhas guerras camponesas: destruir completamente a propriedade dos inimigos. Os latifúndios eram reduzidos à “terra arrasada”. Apesar da amplitude e violência, essas lutas se dirigiam fundamentalmente contra as “relíquias da servidão” e não contra o capitalismo em si: em 4.954 conflitos no campo, somente 324 envolveram a luta contra a burguesia camponesa, isto é, os camponeses mais abastados. A propriedade camponesa era, essencialmente, respeitada pelo movimento. A razão disso é que o movimento camponês em 1917 foi um movimento essencialmente democrático (não socialista). O seu programa, foi o programa dos sociais-revolucionários: Terra e Liberdade. Só que, para os camponeses levarem até o fim o programa dos sociais-revolucionários, tiveram que derrubar, por meio de uma revolução, o governo social-revolucionário de Kerenski. Tal foi a dialética da Revolução Russa.
A ligação muito forte que existia entre camponeses e operários, que há poucas gerações haviam abandonado o campo e se dirigido à cidade, contribuía para fazer com que o espírito revolucionário dos operários, o seu desejo de derrubar o Governo Provisório, se alastrasse pelos campos. Os milhares de soldados que desertavam e voltavam para suas aldeias, carregavam com eles uma nova visão da velha Rússia: conheciam agora muito mais do país de seus antepassados, os quais raramente saíam além dos limites de suas vilas. Seu contato com os camponeses e operários de outras regiões da Rússia, bem como o vivo ambiente de discussão política que envolvia os soldados, principalmente devido à atuação dos comitês de soldados, lhes havia proporcionado uma visão mais clara a respeito dos problemas que os atingiam. As lideranças dos sovietes e Comitês Sobre a Terra ia passando dos professores de aldeias sociais-revolucionários e mencheviques para os soldados, num processo irresistível.
Para o Governo Provisório, mandar tropas para sufocar a rebelião camponesa era cada vez mais desvantajoso. Um número cada vez maior de tropas enviadas ao interior com este objetivo aderia à revolta. “Assim, a revolta rural desatava os últimos nós que amarravam o exército (czarista)”.
“Outono para os mujiques é o tempo de política. Os campos estão colhidos, ilusões desfeitas, paciência esgotada. Hora de acertar as coisas.” “O movimento agora transborda, invade todos os distritos, acaba com peculiaridades regionais, absorve todos os estratos sociais da vila, desaparece com todas as considerações de leis e prudência, se torna agressivo, selvagem, furioso, de grande violência, armado por aço e força, revólver, granadas de mão, demole e queima as residências dos proprietários, expulsam os latifundiários, limpa a terra e muitas vezes molha-as com sangue.” (32)
“A fraqueza desta revolução burguesa atrasada se manifesta no fato de que a guerra camponesa não empurrou os revolucionários burgueses para a frente, mas jogou-os conclusivamente no campo da contrarrevolução. Tseretelli, o condenado em trabalhos forçados de ontem, defendia as propriedades dos latifundiários da ‘anarquia’!” A revolução camponesa, assim rejeitada pela burguesia, juntou suas mãos com o proletariado industrial. “Neste sentido, o século 20 se livrou de todos os séculos passados que pesavam sobre ele, subindo em seus ombros para um novo nível histórico. Para que os camponeses pudessem cercar e limpar suas terras, os trabalhadores tinham que ficar na cabeça do Estado: esta é a fórmula mais simples da revolução de outubro.”

A construção do Governo Soviético

No front, a situação do Governo Provisório não era melhor, apesar da afirmação de Kerenski ao Primeiro Ministro inglês, Loyd George, de que a Rússia estava preparada para lançar uma ofensiva contra os alemães em melhores condições que a de junho. As instituições governamentais no Exército estavam completamente soltas no ar. “O comissário do 2º Exército relatou que as cortes militares não podiam funcionar porque os soldados testemunhas se recusavam a aparecer e testemunhar. Regimentos inteiros se recusavam a atirar e a confraternização com os soldados alemães, que em julho havia sido interrompida, continuava num ritmo cada vez maior”. Os delegados do 1330 Corpo do Exército fizeram esse relatório no soviete de Petrogrado: “Se não há um real esforço pela paz, os soldados mesmos tomarão o poder e declararão o armistício”.
Nas fábricas, os operários continuam desenvolvendo seus comitês, “que se multiplicam por todas as partes em um ritmo incrível”. A conferência dos operários das fábricas bélicas montou comissões para estudar o problema da conversão da indústria de guerra para a produção de tempo de paz, fazia funcionar as fábricas que os patrões fecharam num movimento de blackout, membros dos comitês de fábrica de Petrogrado entravam em contato com mineiros e com os comitês das estradas de ferro, para garantir o abastecimento de combustível e matérias-primas para suas fábricas. As organizações dos operários se encarregavam de garantir o abastecimento de água, energia elétrica, combustível e comida para as cidades.
O governo dos sovietes estava tomando forma. “Ele cresceu de baixo, do colapso da indústria, da impotência dos proprietários, das necessidades das massas.” No primeiro Congresso dos Sovietes, em Julho, decidiu-se que ele deveria ser convocado a cada três meses. No entanto, o Comitê Executivo dominado pelos partidos que tendiam a um compromisso com o Governo Provisório, não tinha qualquer interesse em convocar o Congresso. Esta tarefa coube aos bolcheviques, depois de conquistarem a maioria do congresso em Petrogrado. O II Congresso dos Sovietes foi convocado para o dia 20 de outubro. Estava ele destinado a tomar o poder do Governo Provisório e dar nascimento ao governo soviético.
Um movimento insurrecional de massas deve, necessariamente criar os órgãos destinados a realizar a insurreição. Enquanto corpo político, os sovietes eram esses órgãos. Mas, quando passavam a um plano insurrecional mais evidente, às questões de ordens técnicas e militares, um corpo como o soviete era insuficiente. Por isso o Soviete de Petrogrado criou, em meados de setembro, o Comitê Revolucionário-Militar. O Comitê foi criado por uma proposta dos mencheviques que queriam um órgão à parte do soviete para controlar a guarnição de Petrogrado e arredores no sentido de impedir a tomada do poder pelas massas. Mas, naquele momento, isto era historicamente impossível; e o órgão contrarrevolucionário acabou se convertendo no principal órgão coordenador do processo insurrecional em Petrogrado.
O primeiro conflito aberto do Comitê Revolucionário-Militar com o Governo Provisório foi a respeito da transferência dos regimentos mais revolucionários para o front. O objetivo do Governo Provisório era substituir essas tropas, mais “confiáveis”, para reprimir os bolcheviques e as massas. “A burguesia sabe que o soviete de Petrogrado proporá que o Congresso dos Sovietes tome o poder… E prevendo uma batalha inevitável, as classes burguesas estão tentando desarmar Petrogrado”, afirma Trotsky no soviete de Petrogrado.
Neste meio tempo, os mencheviques, assustados com a perspectiva de que o Congresso dos Sovietes de fato tomasse o poder, propõem o adiamento do mesmo por 5 dias, o que os bolcheviques aceitam rapidamente para terem um prazo maior para organizar a insurreição.
A iniciativa em se apoderar das instituições veio, em muitos casos, de baixo. Os trabalhadores dos arsenais do Forte Pedro e Paulo, em Petrogrado, suspenderam o envio de armas a diversas formações militares formadas pelos contrarrevolucionários, e um controle semelhante se estendeu a outros arsenais e mesmo a vendedores particulares de armas. Daí em diante armas somente eram liberadas sob as ordens dos comissários do soviete. Os tipógrafos se recusavam a imprimir folhetos e impressos contrarrevolucionários.
Para o dia 22 de outubro, domingo, foi marcado o “Dia do Soviete”. O objetivo era realizar “pequenas” reuniões, envolvendo milhares de trabalhadores em cada uma, preferencialmente em locais fechados, com o objetivo de fazer uma revisão pacífica da força dos operários, sem correr o risco de uma eclosão prematura e desorganizada da insurreição.
No dia anterior, como preparativo desta revisão pacífica de forças, o Comitê Revolucionário Militar nomeou três comissários para o Quartel General do Exército. Nenhuma ordem do Quartel General deveria ter validade sem a chancela e a aprovação de um dos comissários.
Depois de escutar o informe dos comissários, Polkonikov, um social-revolucionário apontado por Kerenski como chefe da guarnição em Petrogrado, se recusou a se submeter aos comissários. Em vista disso, a Conferência da Guarnição de Petrogrado, que estava ocorrendo naquele dia, decidiu que a ruptura com o Quartel General era um fato, e que deveria tomar isso como o início de uma ofensiva revolucionária. No dia seguinte, um anúncio da Conferência de Regimento de Petrogrado declara o Quartel General como órgão da contrarrevolução. Somente as ordens do Comitê Revolucionário Militar deveriam ser obedecidas pelos soldados. A insurreição estava tomando, formalmente, o controle da situação.
No dia seguinte (dia 23), toda a população trabalhadora de Petrogrado e adjacências participou das reuniões. “Nenhuma reunião como essa havia sido vista antes, durante a Revolução”. Milhares de trabalhadores, abarrotando todos os auditórios, escolas, salas de cinema, teatro ou de audiência, com seus casacos escuros e bonés, suas faces marcadas pelo passado, e seus olhos brilhando com a esperança de um futuro promissor, passaram o dia conhecendo-se, e conhecendo seus líderes. “Cada lado estava satisfeito com o outro. Os líderes estavam convencidos: não podemos postergar mais! As massas diziam para si mesmas: desta vez a coisa será feita!” Abaixo Kerenski! Abaixo a Guerra! Todo poder aos Sovietes!

O Partido bolchevique e a Insurreição de Outubro

Enquanto isso, uma feroz luta se travava no interior do partido bolchevique. A questão era: estava ou não no momento de se convocar uma insurreição? Lênin desde o final de setembro estava exigindo que o Comitê Central tomasse medidas concretas para a insurreição. Em 27 de setembro, de seu esconderijo na Finlândia escrevia a Smilga (bolchevique Presidente do Soviete da Finlândia):”… Os bolcheviques não estão fazendo um trabalho sistemático de preparação de suas forças para derrubar Kerenski”. Lênin receava que o adiamento da insurreição fornecesse tempo para que as tropas cossacas, contrarrevolucionárias, fossem trazidas a Petrogrado.
No dia seguinte, Lênin escreveria seu folheto “A crise está madura” onde faz uma verdadeira declaração de guerra ao Comitê Central: “Devemos… reconhecer a verdade que, entre nós, no Comitê Central e nas altas esferas do partido, existe uma corrente de opinião favorável a esperar o Congresso dos Sovietes, oposta à tomada do poder, oposta à insurreição imediatamente. Há que vencer esta corrente de opinião.” “Porque deixar passar este momento, e esperar o Congresso dos Sovietes é uma idiotice completa ou uma traição completa.”
Protestando contra o fato de que o Comitê Central não havia respondido às suas cartas sobre o assunto, e que o órgão do partido havia censurado seus artigos criticando a política direitista do Comitê Central, continua Lenin: “Vejo-me obrigado a demitir-me do meu cargo e a reservar-me a liberdade de fazer agitação nas organizações de base do partido e em seu Congresso.”
Cópias desta carta ele não só enviou ao Comitê Central, mas aos Comitês de Moscou e Petrogrado, e providenciou que os militantes mais confiáveis tomassem conhecimento dela. “Não muito tempo atrás,” relata Naumov, um trabalhador do distrito de Vyborg, “nós obtivemos uma carta de Ilich para o Comitê Central… Nós lemos a carta e engolimos em seco. Parece que Lênin há muito colocou no Comitê Central a questão da insurreição. Nós fizemos barulho. Começamos a pressioná-los”.
Sem dúvida sob a insistência de Lênin, no final de setembro o Comitê Regional de Moscou adotou uma dura resolução criticando o Comitê Central por não adotar uma estratégia direta para a insurreição, e assim introduzir confusão entre os militantes. Na reunião de 3 de outubro do Comitê Central, decidiu-se “não discutir a questão levantada pela resolução adotada pelo comitê de Moscou”.
Graças à pressão exercida pelos setores intermediários e de base do partido, auxiliados por Lenin, o Comitê Central resolve convocar uma reunião no dia 10 de outubro, com o objetivo de discutir a questão da insurreição. Por dez votos a dois (Kamenev e Zinoviev) é aprovada a resolução proposta por Lênin, afirmando que a situação internacional vinha amadurecendo rapidamente em favor da revolução mundial, que a revolta da Marinha alemã era um sinal claro disso; e que internamente as condições estavam maduras para a tomada do poder: “A situação política está pronta. Nós devemos falar do aspecto técnico. (…) Enquanto isso, como os defensivos, nós estamos inclinados a encarar o preparo sistemático da insurreição como algo da natureza de um pecado político. Nós devemos tomar o poder imediatamente e não esperar o Congresso”.
No dia seguinte, Kamenev e Zinoviev distribuíram para as principais organizações do Partido e ao Comitê Central um longo documento no qual eles discordavam da tática adotada pelo Comitê Central no dia anterior em favor da insurreição, que consideravam prematura. “Nós temos uma considerável parte dos trabalhadores e dos soldados a nosso favor”. Mas entre estes setores e a burguesia se encontra a pequena burguesia, que no momento balança mais para o lado da burguesia do que para o lado do proletariado.
Além disso, segundo o documento de Kamenev e Zinoviev, a situação internacional também não era favorável como a avaliação do Comitê Central afirmava. Se existiam sinais concretos da possibilidade de levantes operários na Europa Ocidental, esses sinais ainda não passavam de sinais; e, entre eles e uma ofensiva geral do proletariado contra a burguesia existia um longo caminho. O documento propunha que os bolcheviques mantivessem uma posição “defensista”, somente tomando o poder por meio de uma insurreição se tentativas de ofensivas por parte da burguesia tornassem a insurreição inevitável. Que traçassem sua tática levando em conta a impossibilidade da burguesia não convocar a Assembleia Constituinte e se preparar para contar com o maior número possível de delegados nela. Aí deveria residir o veio da tática bolchevique …
Uma declaração de Zinoviev e Kamenev atacando a decisão do Comitê Central é também apresentada ao público nas páginas do jornal de Gorki, que compunha a esquerda dos mencheviques. No artigo, os dois líderes bolcheviques denunciam a preparação da insurreição pelos bolcheviques. Isto aumenta, ainda mais, a crise no interior do Partido. Na reunião do Comitê Central de 20 de outubro, Lenin propõe a expulsão de Kamenev e Zinoviev como “fura-greves”, que por sua vez haviam se demitido do Comitê Central a 16 do mesmo mês. A confusão aumenta, quando Zinoviev, numa sessão do soviete de Petrogrado, se declara totalmente de acordo com Trotsky quando este, questionado pelos mencheviques se o soviete estava preparando a insurreição, é obrigado a declarar que não, mas que a preparariam se a situação exigisse. Naquele momento não era oportuno, ainda, julgava a maioria bolchevique, assumir publicamente a preparação da derrubada do Governo Provisório.
A confusão aumenta quando, no órgão central bolchevique, é publicada uma carta de Zinoviev endossando a afirmação de Trotsky e afirmando que “seria possível fechar fileiras com Lenin e deixar a disputa até que as circunstâncias sejam mais favoráveis”. Só como registro histórico, vale notar que naquela circunstância Stalin tomou posição favorável ao ponto de vista de que seria possível a tática de Lênin conviver com a de Zinoviev e Kamenev, e publica, junto com a carta de Zinoviev, uma nota da redação onde afirma que “o agudo tom do artigo de Lênin não altera o fato que, fundamentalmente, nós permanecemos com o mesmo objetivo”.
Apesar do desconhecimento que pesava sobre os militantes de base, e sobre os operários a respeito do que, de fato, ocorria no interior do partido bolchevique, um forte deslocamento das bases do partido e dos trabalhadores e soldados em direção à insurreição era visível. Mais e mais destacamentos de soldados, e comitês de fábrica, sovietes de distritos, etc., se pronunciavam pela tomada do poder pelo Congresso dos Sovietes que deveria iniciar em poucos dias.
A tomada de poder, em uma revolução, nunca é um processo simples, direto e imediato. Setores e classes sociais oscilam, os principais personagens nem sempre têm uma visão clara do que se passa, as massas se dividem mais agudamente entre a porção favorável e a contrária ao processo revolucionário. Nesses momentos, contudo, tem sido sempre a pressão das massas que possibilita que os líderes favoráveis à tomada de poder terminem por prevalecer o avanço do processo. Veremos, no mês que vem, como isso se deu com a Revolução de Outubro.
Até lá, viva a Revolução de 1917! Abaixo o stalinismo!

Nota:
(1) Lembremos, como nos meses anteriores, que todas as citações entre aspas foram retiradas de A história da Revolução Russa, de Leon Trotsky.