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Revolução Russa: 10 dias, 9 meses ou 5 anos?


1 de abril de 2017

 Sergio Lessa

É provável que a maioria das pessoas que leu algo sobre a Revolução Russa tenha lido Os 10 dias que abalaram o mundo, de John Reed. É um relato jornalístico de primeira qualidade dos 10 dias que, de fato, “abalaram o mundo”, quando os bolcheviques, liderando uma frente de esquerda, tomaram o poder no país dos czares. É memorável, mesmo um clássico do jornalismo mundial, sua descrição da reunião do Soviét de Petrogrado em que Lenin, saindo de meses na clandestinidade, fez a convocação que se tornou o símbolo: “Passemos à construção da ordem socialista!”. Narra Reed que a convocação foi seguida por um pandemônio de alegria e comemorações, bonés ao ar e urros e lágrimas por todos os lados!

Talvez os que leram algo além de Reed tenham tido em suas mãos A história da Revolução Russa, de Leon Trotsky, um texto que, por sua profundidade, análises complexas, reflexões sobre a história e sobre os processos revolucionários, é equiparável ao 18 Brumário de Luis Bonaparte, reconhecidamente um dos textos mais brilhantes de Marx. O fato de Trotsky ser um grande escritor e não menor jornalista torna o texto fácil de ser compreendido e, com todos os méritos, apaixona gerações desde que foi redigido, em 1930.

Se Reed escreveu no calor dos acontecimentos, Trotsky redigiu sua obra duas décadas depois, em um momento em que o stalinismo já se consolidava na URSS e na Terceira Internacional. Além disso, os dois textos também se diferenciam pelo espaço de tempo de que se ocupam. John Reed, os 10 dias de outubro; Trotsky, os nove meses de fevereiro a outubro de 1917. Uma terceira e, talvez, mais importante diferença entre eles, é que Trotsky é um profundo conhecedor da história e da essência da formação social russa, Reed é um jornalista muito bem informado. A descrição brilhante de os 10 dias não contém nada equivalente às análises históricas que Trotsky faz ao longo de sua História, tanto nos dois capítulos iniciais como, por exemplo, no capítulo intitulado “A arte da insurreição”.

Reed nos entrega a emoção, a paixão e as não menores esperanças desencadeadas pela chegada ao poder dos bolcheviques. Trotsky nos conduz pelos meandros de uma terra (chamar a Rússia de nação, naquele momento, é um exagero) cuja área era três vezes maior que o Brasil, que compreendia toda a área entre os limites mais orientais da Europa até o final da Ásia e o oceano Pacífico, tendo ao sul a Cordilheira do Himalaia e o Mar Negro e, ao norte, as terras gélidas que ultrapassavam o Círculo Polar Ártico. Nesse enorme território, quase uma centena de nacionalidades, com bases econômicas por vezes muito distintas, com bases produtivas milenarmente atrasadas ou muito desenvolvidas, se organizavam em classes sociais também muito heterogêneas.

As classes dominantes eram, de fato, muitas. Enquanto classes dominantes tinham o interesse comum de manter a exploração dos trabalhadores. Contudo, o modo de exploração dos trabalhadores, fundado pelo modo de produção, variava muito fazendo com que essas classes dominantes vivessem em constantes conflitos entre si e eram com muito custo mantidas coesas pela figura do Czar. O modo de produção das grandes propriedades produtoras de cereais da Ucrânia era essencialmente distinto do das grandes propriedades pecuaristas ou de exploração de madeira da porção asiática e, ainda, muito diferente das propriedades, pequenas e médias, dos cossacos no Vale do Rio Don, ao sul, próximo ao Mar Negro. Os latifundiários da Ucrânia desejam uma maior integração com o capitalismo europeu, para quem vendiam seus cereais, mas os latifundiários da porção asiática temiam a concorrência que viria com essa integração e a ela se opunham. Os cossacos, ao sul, apenas apoiavam o Czar na medida e na proporção em que mantivessem suas propriedades médias e pequenas à salvo da gana por mais terras dos grandes latifundiários.

Os trabalhadores também eram muito distintos, talvez ainda mais diferentes entre si que as classes dominantes. O regime de trabalho, a forma de remuneração do trabalho, mesmo se o trabalho era permanente ou sazonal, tudo colaborava para uma centenária heterogeneidade entre os trabalhadores. O trabalho assalariado já se fazia presente nas cidades, nas rotas ferroviárias etc. Mas, ainda não abrangia a todos: a maioria dos camponeses pobres, os mujiques, recebia in natura, isto é, recebia uma porção daquilo que produzia em moldes similares aos do antigo feudalismo europeu. Os direitos dos trabalhadores da terra eram estabelecidos segundo critérios e tradições que vinham, por vezes, do século 12, mais comumente que vinham das reformas de Pedro, o Grande, no século 17 e da reforma agrícola de 1861. A enorme maioria dos trabalhadores era camponesa, tal como a maior parte das classes dominantes era latifundiária. Contudo, essa denominação comum com frequência escondia as diferenças existentes no interior de cada uma dessas classes. Essas diferenças são da maior importância para se entender a dinâmica das derrotas de todas as revoltas camponesas até chegarmos à Revolução Russa, bem como para entendermos o que ocorreu na Guerra Civil, nos anos de 1918-21.

Para coroar essa formação histórica tão complexa, temos a atuação ideológica decisiva da Igreja Ortodoxa, apoiada pelo Estado e tradicional pilar do czarismo. As seguidas derrotas das muitas revoltas camponeses instigaram um espírito fatalista entre os trabalhadores: impossível escapar dessa miséria e dessa vida de penúrias. A Igreja Ortodoxa fornecia o cimento ideológico para manter essa concepção de mundo: Deus teria criado o mundo como um vale de lágrimas pois é pelo sofrimento que se chegaria ao Paraíso. A Igreja ocupava, assim, um lugar decisivo na vida das pequenas aldeias e servia de importante consolo paralisador das revoltas entre as massas camponesas.

Mas, também entre as classes dominantes a Igreja Ortodoxa era importante. Como sustentáculo do poder dos czares, se sentia, com razão, com direito a parcela desse poder. As classes dominantes, atrasadas como a base econômica que a sustentava, viam em uma concepção de mundo fatalista a confirmação de que eram classes dominantes por uma decisão divina. Deus fez delas os dominantes, para sempre, eternamente. O mesmo com a família do Czar: se Deus não quisesse, não teriam o poder, a riqueza e a glória. A Igreja Ortodoxa, não apenas servia de consolo aos trabalhadores, como ainda atuava no interior das classes dominantes para confirmar o poder das mesmas como de origem divina e para justificar o Czar como um imperador por direito divino.

A Igreja ortodoxa é, por essa via, bem-recebida pelos explorados e pelos exploradores… mas, isso não duraria muito tempo.

As coisas se complicaram ainda mais quando o capital estrangeiro, principalmente francês, adentrou às terras do Czar.

A industrialização e o proletariado

Quando, em 1813, o Grande Exército de Napoleão invadiu a Rússia, se tornou ainda mais evidente o quanto o atraso tecnológico debilitava militarmente o poder dos czares. Napoleão apenas foi derrotado porque Kutuzov, o comandante russo, adotou a tática de ceder terreno para não perder o exército. Foi recuando, evitando qualquer grande batalha, até às portas de Moscou. Napoleão, em contrapartida, fazia de tudo para forçar um combate decisivo.

Até chegarem às portas de Moscou.

Kutuzov queria recuar para os Montes Urais, a leste de Moscou. O Czar, pressionado pelos nobres que temiam abandonar seus palacetes em Moscou para os invasores, não concorda com seu comandante em chefe e, finalmente, Napoleão pôde ter sua batalha. A Batalha de Borodino foi uma das maiores que a Europa conheceu até então, durou vários dias e terminou sem uma vitória definitiva dos franceses e, os russos, abandonaram Moscou.

Semanas depois, Moscou estava em chamas e chegava o inverno: o Grande Exército é dizimado pelo frio e pela fome, Napoleão é derrotado e enviado à Ilha de Elba.

A vitória russa garantiu a permanência dos czares, mas evidenciou que era preciso industrializar o país para poder contar com um exército moderno, com armas mais desenvolvidas. Quando das guerras de unificação da Alemanha, em 1870-71, essa necessidade tornou-se ainda mais patente: a influência da Rússia nos Bálcãs e na política europeia necessitava de um apoio militar à altura.

Enquanto a Inglaterra conseguia lucros cada vez maiores na exploração de suas colônias na Ásia, em especial na Índia, os capitalistas franceses enxergavam na situação russa uma excelente oportunidade de negócios. Havia uma enorme massa de trabalhadores miseráveis, sem experiências em uma economia industrializada, sem tradição de lutas, sem sindicatos e partidos, controlados a ferro e fogo pelo Czar e por uma nobreza corrupta. Isto, mais um Estado e um governo dispostos a comprarem a preços exorbitantes o que viessem a produzir por lá, tudo indicava que enormes lucros poderiam advir de investimentos na industrialização da Rússia.

Nas últimas décadas do século 19, principalmente em Petrogrado, mas também em Moscou e mais secundariamente em Kiev, os capitalistas franceses montaram grandes indústrias para explorar o máximo de operários. As condições de trabalho eram sub-humanas. Gorki, no seu romance A mãe, fornece um bom quadro do que era a vida operária naqueles dias em Petrogrado. Em pouco mais de duas décadas, isso criou uma situação história inédita e, no longo prazo, insustentável: deu origem a um proletário mais concentrado que o proletariado francês ou inglês, em condições de vida e trabalho brutais, sem que houvesse uma burguesia que pudesse se contrapor na luta de classe a esse jovem proletariado.

As coisas se tornavam ainda mais instáveis porque a repressão e a violência com que o czarismo tratava as resistências e reivindicações dos trabalhadores tornavam impossível desarmar, pela negociação, as insatisfações antes que explodissem em revoltas. As negociações, greves, pressões etc., sempre presentes na relação entre burguesia e proletários nos países capitalistas, eram impossíveis na Rússia. Organizar uma greve ou um sindicato resultava em exílio na Sibéria ou na morte pela forca (Os sete enforcados, de Andreiev, é um belo conto sobre essa situação.)

Um jovem proletariado, sem experiência de luta, mas, também, sem a influência contrarrevolucionária dos reformistas e sem a presença de uma aristocracia operária, se contrapunha a uma classe dominante incapaz de administrar os conflitos inerentes à industrialização. Sem uma burguesia à altura, o proletariado russo vivia uma situação inédita na história: rapidamente a nobreza e o czar se demonstrariam incapazes de dar conta das novas contradições, tipicamente capitalistas, e seriam por elas derrubados.

A burocracia

Uma economia de base agrário-latifundiária não cria espaço nem para o desenvolvimento de um mercado interno para além das classes dominantes, nem abre espaço para o crescimento das “classes de transição” (Marx), que nem são os camponeses nem pertencem à nobreza. A alternativa a esses indivíduos era o emprego público, raros os que tinham um emprego fora do Estado.

Por outro lado, o Czar, a nobreza, a Igreja e o Estado necessitavam de funcionários tanto para as funções de administração, de repressão etc., quanto para as funções ideológicas. Necessitavam de funcionários públicos, juízes, advogados, policiais, torturadores, professores, carrascos, jornalistas, filósofos, contadores, médicos, carteiros, enfermeiros, engenheiros, lixeiros etc. Manter o poder, na Rússia de então, demandava uma vasta quantidade de indivíduos com alguma instrução e educação, por vezes com elevado conhecimento técnico, outras vezes com vasto conhecimento do submundo do crime (a Rússia já contava com uma poderosa máfia que controlava importantes atividades econômicas, principalmente na sua porção asiática), outras vezes com conhecimento da Europa e do francês para negociar com os europeus ou com conhecimento das línguas, doutrinas e das tradições jurídicas das diferentes nacionalidades do Império Russo etc.

Essa necessidade e a impossibilidade de a pequena burguesia conseguir sobreviver fora do Estado deram origem a uma vasta burocracia que se estendia por todos os setores da vida social. Uma intelectualidade empregada pelo Estado era a responsável pela produção ideológica que sustentava o regime. Este, em contrapartida, premiava essa intelectualidade com algumas recompensas e uma vida com um conforto impensável para os trabalhadores. A maior parte dessa intelectualidade burguesa era conservadora e czarista. Mas, apenas, a maior parte.

Uma parte minoritária, sempre perseguida, duramente reprimida, percebia logo na juventude que o atraso e a miséria russos apenas poderiam ser superados por uma transformação completa da situação. Nenhuma reforma poderia converter aquela ordem social e política em algo mais próximo aos países mais desenvolvidos da Europa. Neste contexto, mesmo aqueles que não eram socialistas ou anarquistas, que eram apenas democratas, que almejavam um capitalismo desenvolvido, aos moldes europeus, eram forçados a ações revolucionárias: tratava-se de destruir o czarismo e da eliminação da nobreza, o que apenas seria possível pela violência revolucionária. Uma enorme quantidade de grupos anarquistas, de grupos partidários do terror revolucionário contra os indivíduos das classes dominantes, de grupos que se propunham a apoiar com armas os camponeses nas lutas contra os latifundiários, se somavam a grupos marxistas que tinham clareza de que a superação do atraso russo só viria pela superação do capitalismo. Dessa pequena burguesia, grande parte funcionária pública, saiu a maior porção das ideias e ideologias revolucionárias que terão um papel tão importante durante a revolução.

Essa intelectualidade foi também o solo social para que o marxismo tivesse se expandido na Rússia muito cedo. A primeira tradução de O Capital, de Marx, foi para o russo e intelectuais marxistas vão surgindo com alguma profusão e velocidade. A geração de revolucionários de 1917 teve, em geral, essa base social. Também foi essa base social que deu origem ao apogeu da literatura russa: Dostoievsky, Tolstoy, Tchekhov, Gorki, Maiakovski etc.

O atraso da Rússia foi, portanto, o responsável pela formação de uma gigante burocracia. Trotsky menciona que, para cada 17 habitantes, havia um funcionário público! Essa burocracia terá grande peso no desdobramento da Revolução Russa e será de um enorme peso conservador, depois de 1917.

O exército e a marinha

Desde a Idade Média, a potência militar russa se apoiou essencialmente na quantidade gigantesca de soldados que podia colocar em combate. O armamento não era o melhor, o comando militar não era tão bom, a estratégia militar deixava a desejar. Contudo, essas debilidades eram contrabalançadas com folga pelo tamanho do exército russo. Os camponeses eram a classe que, por sua miséria, por sua função social e pelo fato de comporem a maior parte da população russa, serviam como a principal fonte de fornecimento da “carne de canhão”, o soldado raso.

Esses camponeses-soldados, com uma vida rural longe das indústrias, foram se tornando cada vez mais incapazes de serem bons combatentes na medida em que o avanço da tecnologia militar exigia um conhecimento e um adestramento mais próximo à indústria que da agricultura. Por isso, o exército russo foi incorporando uma parcela de operários para cumprirem as funções que requeriam um conhecimento técnico um pouco maior. Principalmente na artilharia, o peso dos soldados oriundos dos centros industriais tendia a crescer conforme avançava no tempo.

O Alto Comando Militar era composto por nobres e altos funcionários públicos atraídos pelos salários, pelas vantagens e pela corrupção do aparato militar: as relações com a nobreza, com o Czar e a Czarina eram mais importantes para a obtenção desses cargos do que o conhecimento da “arte da guerra” ou a experiência militar. A incompetência da alta hierarquia militar apenas é comparável, em tamanho, à distância de classe que havia entre ela e a base do exército.

O resultado é uma estrutura militar em tudo semelhante à sociedade. E, tal como o czarismo tratava os trabalhadores com repressão e violência, a hierarquia militar será imposta pela violência e castigos desumanos. O látego, a forca e o knut eram castigos corriqueiros e que faziam parte da vida militar.

Na Marinha, algo similar ocorria. Contudo, com uma diferença importante: em confronto com a nobreza que ocupava o Almirantado, havia uma massa de marinheiros que vinha majoritariamente das cidades industrializadas. Nos navios, a distância de classe se reproduzia tão duramente quanto na sociedade, todavia em um espaço muitíssimo menor: a luta de classes era, na Marinha, muito mais imediata e muito mais direta. (O Encouraçado Potenkin, de Eisenstein, retrata com maestria essa contradição). Por isso a revolta na Marinha veio antes e com mais consistência que no Exército, quando 1917 chegou.

Além disso, o czarismo veio desenvolvendo, desde a Idade Média, um aparato de coleta de informações e de controle dos trabalhadores que só tem equivalente na máfia russa (uma das mais antigas e desenvolvidas do planeta). Ao chegarmos no século 20, milhares de funcionários públicos, policiais, espiões de todos os tipos vigiavam a vida de todos: nobres e trabalhadores não estavam livres de sua vigilância. A temível Okrana, a polícia secreta, tinha até mesmo um espião infiltrado no Comitê Central dos bolcheviques quanto da tomada do poder em outubro de 1917!

10 dias, 9 meses ou 5 anos?

A Revolução de Fevereiro (voltaremos a ela em um próximo artigo), que colocou abaixo o Czar, não alterou a estrutura econômica da sociedade russa. As terras continuaram nas mãos dos latifundiários, nas fábricas continuaram explorando os operários, os bancos continuaram nas mãos dos banqueiros – e assim sucessivamente.

A rápida evolução das lutas de classe terminou colocando no poder em outubro um partido, o bolchevique que, em fevereiro, sequer tinha um peso político significativo. Além disso, foram nas cidades industrializadas (Petrogrado e Moscou, essencialmente) que as lutas de classe evoluíram no sentido de colocar no poder os bolcheviques. No restante da Rússia, o processo era muito mais lento: a tomada do poder pelos bolcheviques nem alterou a propriedade da terra e pouco mexeu nos poderes locais; algumas localidades mais distantes de Petrogrado foram se dar conta do que ocorrera em outubro de 1917 apenas meses depois.

O novo poder revolucionário enfrentava, portanto, uma situação muito desigual: em Petrogrado, operários, padeiros, artesãos etc. se radicalizavam à esquerda, no restante da Rússia, nada semelhante tinha lugar.

Foi tirando vantagem desse descompasso que a contrarrevolução se levantou em meados de 1918 e levou a Rússia a uma guerra civil que, por pouco, os revolucionários não perderam. Ao final da Guerra Civil, na passagem de 1920 a 1921, a velha classe dominante havia sido derrotada militarmente e socialmente destruída, as terras foram tomadas pelo Estado ou pelos camponeses, as fábricas foram estatizadas assim como os bancos. Uma nova estrutura produtiva tinha, então, nascido e, a tarefa de toda revolução, a de destruir a velha forma de propriedade e dar origem a uma nova sociedade baseada em uma nova estrutura produtiva, estava essencialmente terminada. As bases do que viria a ser a União Soviética estavam assentadas.

Vejam, nem o ano de 1917, nem os 10 dias que abalaram o mundo, foram capazes de modificar as bases produtivas (a forma de propriedade, a forma de exploração do trabalho, de apropriação do trabalho excedente, de distribuição da riqueza etc.) do velho czarismo. Foi preciso os anos de guerra civil para que essa gigantesca tarefa história fosse cumprida. A essência da tarefa revolucionária de 1917, a eliminação das velhas classes proprietárias e a reestruturação de toda a base produtiva, não estavam realizadas até chegarmos ao ano de 1921. Os 10 dias que abalaram o mundo bem como os 9 meses de A revolução russa não relatam nem analisam o que ocorreu de novembro de 1917 a março de 1921. Essas duas obras tão importantes, assumem que, com a tomada do poder pelos bolcheviques, estaria realizada a essência do processo revolucionário russo. Tratar-se-ia, a partir de outubro, de construir a “ordem socialista”, como Lenin dissera no Soviét de Petrogrado.

Essa a maior debilidade dos maravilhosos livros A história da revolução russa, de Trotsky e Os 10 dias que abalaram o mundo, de John Reed. Pressupõem que, com outubro, a essência do processo revolucionário estaria dada e que o caráter de classe do novo Estado e da nova sociedade estaria já posta: o socialismo e o Estado proletário. A concepção de Trotsky de que a URSS seria uma Estado operário degenerado tem um de seus fundamentos na concepção de que 1917 já decidira o caráter de classe e a essência produtiva da nova sociedade. Reed nem imagina que o futuro pudesse ser outro que a humanidade socialista.

Hoje, do ponto de vista muito mais vantajoso de décadas após o desaparecimento da ordem soviética, restam poucas dúvidas de que, se o ano de 1917 propiciou uma alteração na correlação política entre as classes sociais da velha russa czarista, foram os anos de Guerra Civil que moldaram a nova base econômica e, com isso, o caráter de classe da nova sociedade e do novo Estado. E, portanto, para compreendermos o que ocorreu na Revolução Russa, é preciso que não nos limitemos aos 9 meses entre fevereiro e outubro, ou aos “10 dias”: o processo revolucionário russo se estende de 1917 a 1921, cerca de 5 anos. Nesses 5 anos é que foram lançadas as bases do que viria a seguir: uma rápida industrialização, com uma melhoria ainda mais veloz e impressionante das condições de vida e trabalho, sob a ditadura de Stalin.

Como decorreram esses 5 anos, veremos nos próximos artigos. Até lá, não deixem de ler nem Os 10 dias… de Reed, nem a História da Revolução Russa, de Trotsky.

Indicação de leitura

Andreiev, L. Os sete enforcados; Tolstoy, Guerra e Paz e Anna Karenina, Gorki, A mãe: como diria meu pai, quem não ler essas três obras literárias não merece os olhos que Deus lhe deu! São um quadro social e político da Rússia Czarista da mais elevada qualidade literária.

Dois os títulos fundamentais: o texto de John Reed e o obra-prima de Trotsky, citados no texto.