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Jornal 79: Por que as revoluções não levaram à sociedade socialista?


16 de junho de 2015

A QUESTÃO É MAIOR DO QUE SUA APARÊNCIA

As revoluções são um fenômeno histórico para a humanidade. A primeira foi a Revolução Inglesa, entre 1642 e 1688. A segunda, mas a primeira com impacto mundial, foi a Revolução Francesa entre 1789-1815. O século 19 conheceu vários períodos revolucionários, o mais intenso deles foi o de 1848-52, quando pela primeira vez o proletariado e a burguesia entraram em um aberto conflito. Depois, viria a Comuna de Paris (1871).
Contudo, o maior e mais intenso período revolucionário da história é aquele que se inicia com a Revolução Russa de 1905 e se estende até o final da Revolução Chinesa (1949). Essa é uma fase da história em que há revoluções em todos os continentes, exceto a Oceania. Movimentos revolucionários – e mesmo revoluções – tiveram lugar em países mais avançados, com um proletariado significativo (Revolução Alemã, Espanhola, Greve de 1936 na França, resistência contra os nazistas no final da II Guerra Mundial) e em países muito menos desenvolvidos no sentido capitalista (como a China, a Índia e o Paquistão, o México); táticas e estratégias revolucionárias, as mais diversas, foram surgindo e se desenvolvendo segundo as necessidades de cada situação (stalinismo, maoísmo, autonomismo, titoísmo, trotskismo, leninismo, anarquismo etc.) – e também foi nesse período que conhecemos a primeira organização verdadeiramente mundial dos trabalhadores, a III Internacional ou Internacional Comunista. Contava com partidos em praticamente todos os países do mundo e, em vários deles, tinha os mais importantes partidos de base operária (França, Alemanha, por exemplo). Foi, ainda, esse período que assistiu ao amadurecimento ideológico e teórico da geração de revolucionários mais significativa da história, com Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bukharin, Preobrajensky, Radek, Riazanov e, também, da geração seguinte, marcada principalmente por Gramsci e Lukács. De todas as revoluções, a mais importante foi a Revolução Russa de 1917. Não apenas por ter sido a primeira com um vasto impacto em todo o planeta, mas também porque, em poucas décadas, elevou a URSS à segunda potência mundial.
A questão, portanto, é de uma importância enorme: por que foram derrotadas (no sentido de não abrirem a transição ao comunismo, através do socialismo) todas as revoluções do maior período revolucionário que a humanidade jamais conheceu, com uma geração de teóricos e dirigentes que até hoje não foi superada por nenhuma outra? Por que nenhuma das revoluções que colocaram os revolucionários no poder pôde superar o capital?

O REINADO DA CONFUSÃO
Os revolucionários que viveram esses anos foram sendo surpreendidos por inesperadas evoluções dos processos revolucionários em andamento. A previsão de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo, etc. de que o poder revolucionário, na esfera da política, se caracterizaria pelo gradual, porém acelerado, desaparecimento do Estado, das classes sociais, da família monogâmica e dos países (tratamos disso em “O que é o socialismo?”), era sistematicamente negada. As revoluções davam, seguidamente, origem a Estados ainda mais poderosos do que o das velhas classes dominantes, seus exércitos eram ainda mais fortes e maiores, a distância entre os dirigentes e os trabalhadores não parava de aumentar, a repressão política e a polícia política jogavam um papel cada vez mais importante na vida social.
Na esfera da produção, as coisas não caminhavam muito melhor: a propriedade individual foi substituída pela propriedade estatal, originando um gigantesco e poderoso aparato, unificado nacionalmente, com a força policial e política do Estado a lhe dar respaldo, de controle sobre os trabalhadores. O trabalho proletário que – como vimos em “O que é socialismo?” – funda o modo de produção capitalista, não apenas não era naqueles processos superados pelo trabalho associado, como ainda se expandia e passava a imperar em toda a esfera produtiva. Uma férrea ditadura, tanto na esfera da política quanto da produção, se contrapunha dolorosamente ao reino da liberdade e da pronta redução da jornada de trabalho propostas por Marx e Engels.
Ao mesmo tempo, pelos mesmos processos, os países que fizeram suas revoluções conheceram um acelerado desenvolvimento das forças produtivas, com uma não menos acelerada redução da miséria secular de seus povos. Poucas décadas depois das revoluções, as condições de vida e trabalho da vasta maioria dos soviéticos, chineses etc. haviam melhorado de forma muito significativa. Educação pública e universal, assistência médica para todos, casa e trabalho para todos etc. eram realizações efetivas. O apoio dos trabalhadores aos governos revolucionários – mesmo sendo ditatoriais e opressivos – era muito grande. Stálin era adorado pelos trabalhadores soviéticos, o mesmo ocorrendo com Mao-Tse-Tung na China. A consolidação do stalinismo, do maoísmo, do titoísmo etc. são fenômenos ideológicos que têm suas bases sociais na incrível melhoria das condições de vida e trabalho das massas de trabalhadores de seus respectivos países.
Essa foi a situação histórica que inaugurou uma enorme confusão entre os revolucionários.
Por um lado, convertendo necessidade em virtude, uma parcela dos revolucionários passou a defender que as teses de Marx e Engels eram utópicas (no sentido de não terem lugar na história) e que a vida estaria mostrando que o verdadeiro socialismo, “socialismo real”, era o que estava sendo construído naqueles dias na URSS (ou, a depender a filiação político-partidária, na República Popular da China, ou no Vietnam, ou na Albânia, e assim por diante). Em todas essas variantes, aceitava-se que o socialismo seria um Estado ditatorial, com um gigantesco aparato de controle policial e político dos trabalhadores. Aceitavam, ainda, que o socialismo não superaria o mercado e o trabalho proletário – pelo contrário, estes seriam essenciais “ao socialismo real”!
O campo do “socialismo real” não era, de modo algum, homogêneo: stalinistas criticavam os maoístas, estes criticavam os titoístas, todos combatiam os trotskistas, estes últimos criticavam de volta a todos os outros… mas, em todas as críticas aceitava-se como socialistas o mercado, o Estado, o trabalho proletário, a repressão sobre os trabalhadores e proletários. O que estaria errado – nisso também todos coincidiam – seria, apenas e tão somente, a direção política. Se Trotsky – e não Stálin – houvesse permanecido no poder na URSS, o socialismo teria sido lá construído, argumentavam os trotskistas. Se os stalinistas e não os maoístas tivessem vencido a luta interna no PC Chinês, a revolução naquele país teria sido socialista – diziam os stalinistas sobre a China, enquanto o PC Chinês garantia que se os maoístas estivessem no poder na URSS, esta não teria degenerado em um “Estado burocrático”. A questão, no fundo, para todo esse campo, centrava-se na direção política. Dependendo da preferência política, a direção “correta” seria o stalinismo, o maoísmo, o trotskismo, o titoísmo e, logo depois, o castrismo, o guevarismo etc., etc. e, já mais bem para frente, nos anos 1980, o eurocomunismo.
Além do campo do “socialismo real”, abriu-se outro campo mais amplo e ainda mais heterogêneo, que afirmava que a ordem surgida das revoluções seria, na verdade, a traição dos ideais revolucionários. Já nos anos de 1920 esse campo começou a se delinear com a Oposição Operária na Rússia e, depois, com as críticas à nascente ordem soviética pelos autonomistas e anarquistas. Com o passar do tempo, muitos intelectuais e organizações políticas foram se aproximando ou aderindo a essa concepção: as sociedades saídas dos processos revolucionários nem eram socialistas, nem estavam a caminho de se converterem em socialistas. Uma parte desse campo migrou para a direita: a democracia burguesa seria a melhor opção para a humanidade e, pela adoração à democracia, essa porção aderiu ao campo da contrarrevolução. A Escola de Frankfurt, com Adorno e Habermas, foi o exemplo mais típico dessa evolução, mas longe de ser o único. Uma outra parte permaneceu à esquerda: as concepções políticas autoritárias – que, argumenta-se, já estariam presentes em O que fazer? de Lenin, com a concepção do partido centralizado que traria “de fora” da classe a consciência revolucionária – seriam a causa principal da degenerescência do poder revolucionário em ditaduras contra os trabalhadores. Suas expressões mais importantes foram os luxemburguistas e os autonomistas: o problema decisivo teria sido, segundo eles, a liquidação da autonomia dos trabalhadores nos anos de 1919-1920 na antiga Rússia. Os principais responsáveis pelas derrotas seriam os bolcheviques, os leninistas de todos os tipos.
A confusão estava posta: a questão da direção política (e, portanto, da concepção político-ideológica dos dirigentes) seria o que decidiria se uma revolução superaria (ou não), pelo socialismo, a ordem burguesa. No fundo, a verdade dependia da escolha pessoal de cada revolucionário: se optasse pelo maoísmo, os traidores seriam os stalinistas, trotskistas, autonomistas etc. Se fosse um stalinista, os traidores seriam os trotskistas, os maoístas, os autonomistas etc. Se fosse um anarquista, os culpados seriam os leninistas, stalinistas, trotskistas – e assim sucessivamente.
Quando a escolha pessoal passa a ter tal importância, a confusão está instalada: não há argumentos que seja superior a outro, a opinião de cada um é o critério da verdade. Esse é um claro sinal de que a teoria não está dando conta de acompanhar a história.

MÉSZÁROS E PARA ALÉM DO CAPITAL
Esse reino da confusão começaria a ser superado com a publicação, por Mészáros, na Inglaterra, em 1944, de sua obra-prima, Para além do capital. Este foi o primeiro – e até hoje único – estudo aprofundado sobre as condições de reprodução do capital no século 20. Em se tratando o nosso tema, Mészáros assinala que as revoluções do século 20 ainda podiam desenvolver – e desenvolveram de forma muito rápida – as forças produtivas em escala nacional. A produção poderia ser enormemente ampliada, o desemprego podia ser eficientemente administrado, as condições de vida e trabalho da população poderiam ser muitíssimo melhoradas, pela exploração dos trabalhadores por meio de um Estado que concentrasse a propriedade e que planejasse toda a produção.
A intensa e rígida repressão dos trabalhadores e proletários correspondia às condições de exploração dos trabalhadores que se faziam imprescindíveis. Muito rapidamente, nas “sociedades pós-revolucionárias” tivemos o surgimento de uma nova modalidade da exploração dos trabalhadores pelo capital. Nova, porque tem no Estado o proprietário dos meios de produção. Mas, ainda assim, mantém a exploração dos trabalhadores e proletários pelo assalariamento.
A exploração dos trabalhadores e proletários pelo assalariamento é, precisa e exatamente, o capital. O trabalho que produz o capital – como vimos em “O que são classes sociais?” – é o trabalho proletário.
Lembremos que o capital é a relação social pela qual se extrai o trabalho excedente pela redução da força de trabalho a uma mercadoria e o assalariamento é a sua a expressão cotidiana. As revoluções da primeira metade do século 20, afirma Mészáros, deram origem a países que se estruturam ao redor da exploração do homem pelo homem (com tudo que a acompanha: o Estado, a família monogâmica, as classes sociais e as desumanidades que têm sua origem no capital); foram revoluções nacionais e que cumpriram o papel de desenvolver muito rapidamente as forças produtivas do capital em países muito atrasados, como a Rússia e a China. Tais revoluções – nacionais e em países pouco desenvolvidos – não podiam iniciar a transição ao comunismo pela passagem do trabalho proletário ao trabalho associado.
Todavia, por que isso ocorreu? Por que nas “sociedades pós-revolucionárias” não se superou o capital? A possibilidade de uma explicação veio de uma profunda mudança no modo de produção capitalista, o início da crise estrutural do capital, na década de 1970.

A CRISE ESTRUTURAL
Vimos, em “O que é o socialismo?”, como, com a Revolução Industrial (1776-1830), a capacidade produtiva ultrapassa as necessidades humanas e gera uma abundância que, para o capitalismo, não passa de superprodução. Isto é, a oferta de mercadorias é maior do que a procura e, consequentemente, os preços tendem a cair conforme aumenta a produção, conduzindo às crises cíclicas. Na década de 1970, a abundância se tornou tão intensa (dado o desenvolvimento da produção) que nem sequer a crise foi capaz de superar a superprodução. Para sobreviverem, as empresas precisaram demitir trabalhadores e aumentar a produção: essa é a dinâmica de uma crise infindável, pois, a cada aumento da produção com o aumento correspondente do desemprego, se intensifica a contradição fundamental: uma crescente produção para um mercado que se reduz pelo aumento do desemprego. Em 1970 a abundância torna-se permanente e tem início a crise estrutural do sistema do capital em seu todo.
A crise estrutural bloqueia a via do desenvolvimento das forças produtivas nacionais pela propriedade estatal dos meios de produção, por um sistema político ditatorial e através da exploração dos proletários e trabalhadores. Isso porque o capital em crise estrutural necessita, imediata e diretamente, de toda mais-valia produzida no planeta e nada mais sobra para desenvolver – como fizeram a Rússia, a China etc. – as forças produtivas locais.
É essa necessidade absoluta do capital por todo átomo de mais-valia que conseguiu extrair dos trabalhadores e proletários um dos fatores decisivos para a atual “integração” da Rússia e da China, do Vietnam e de Cuba, ao mercado mundial. É essa mesma necessidade que inviabiliza que novas revoluções sigam a “via” chinesa, ou soviética, ou cubana etc.
O sistema do capital, nesse período de sua crise estrutural, se converteu em uma totalidade mundial de tal forma articulada que as revoluções apenas podem sobreviver se confrontarem o capital como um todo. Por isso, as revoluções que vierem a acontecer terão, muito rapidamente, de se desenvolver até o socialismo ou perecerão frente à contrarrevolução: já não existe mais o meio termo de os revolucionários se manterem no poder pela via do desenvolvimento, sob o capital, das forças produtivas em escala nacional pela exploração do trabalho proletário.
Por que, então, todas as revoluções foram derrotadas? Porque ocorreram em um período histórico, antes de 1970, em que ainda era possível o desenvolvimento das forças produtivas do capital em países isolados e economicamente atrasados. Por isso nem puderam se internacionalizar, nem puderam abrir a transição ao comunismo. Isolados no poder, os revolucionários tiveram apenas a alternativa de desenvolver a força produtiva do capital: as “sociedades pós-revolucionárias”, que faziam parte do sistema mundial do capital. Não lhes restava alternativa: havia que substituir as velhas formas de trabalho da Rússia czarista, da China Imperial etc. pelo trabalho proletário. Houve uma vasta melhoria nas condições de vida dos trabalhadores, mas isso estava longe de dar início ao socialismo.
Em nossos dias, não há razão para qualquer confusão. Descoberta a principal razão histórica de todas as revoluções do século 20 não terem conduzido ao socialismo e ao comunismo, torna-se possível uma avaliação científica, histórica, dos processos revolucionários que supere as opiniões e preferências pessoais. Os acertos e os erros do passado, suas variadas expressões ideológicas, as não menos diferentes tentativas de explicação teórica etc. podem, agora, ser compreendidos a partir de sua base social: tornou-se, finalmente, possível uma compreensão que forneça elementos para o desenvolvimento da teoria revolucionária. Essa é parte da enorme contribuição de Mészáros ao movimento revolucionário.
Por outro lado, as revoluções que vierem a ocorrer confrontarão o sistema do capital como uma unidade: ou destruirão o capital ou serão por ele derrotadas. Serão revoluções que, mesmo se iniciando em países, se internacionalizarão rapidamente – ou perecerão não menos rapidamente. Contarão com uma possibilidade que não existia antes da crise estrutural, qual seja, a possibilidade do desenvolvimento das forças produtivas em escala planetária – para além do trabalho explorado por meio do assalariamento (o trabalho proletário), para além do mercado.
Essa possibilidade, nova, que abre as portas para a transição ao comunismo pela mediação do socialismo, não existia antes da crise estrutural: por isso, todas as revoluções do mais incrível período revolucionário da história foram derrotadas – no sentido de não inaugurarem a transição para além do capital.