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Jornal 36: Abril/Maio de 2010


5 de novembro de 2011
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O CONCLAT 2010 e os desafios da reorganização dos trabalhadores

 

 O antigo e o novo CONCLAT

CONCLAT (Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras) era o nome que se dava aos encontros das entidades sindicais do Brasil até fins da ditadura militar. Naquele período, um crescente setor combativo que estava retomando os sindicatos para transformá-los novamente em instrumentos de luta e organização dos trabalhadores convivia num mesmo fórum com os chamados pelegos, interventores colocados pela ditadura no comando dos sindicatos, federações e confederações. A convivência tornou-se insustentável e fez com que no CONCLAT de 1981 os setores combativos optassem por romper com os pelegos e construir uma nova entidade, que viria a ser a CUT, cujo primeiro congresso aconteceria em 1983. Essa decisão estava respaldada por um formidável ascenso da luta dos trabalhadores, com grandes greves estourando em setores de peso como metalúrgicos, bancários, professores, etc. Centenas de greves aconteciam todo ano, revelando uma vanguarda de milhares de ativistas e mobilizando milhões de trabalhadores.

Damos agora um salto na história e nos deparamos com um novo CONCLAT sendo convocado para os dias 5 e 6 de junho de 2010. O evento terá como principal pauta a possibilidade de unificação entre Conlutas e Intersindical, juntamente com entidades e correntes menores que o estão convocando, como MTST, MTL, MAS, PO-SP, Unidos para Lutar e , visando a construção de uma Nova Central. O que salta à vista na comparação entre os dois períodos é a ausência daquele que era o grande protagonista de fundo do processo dos anos 80, ou seja, a base do proletariado. A maioria da classe está de modo geral alheia ao processo atual.

As entidades que estão impulsionando o Congresso reúnem uma vanguarda de ativistas presentes nas categorias que se colocaram em luta ao longo de todo o governo Lula, tais como servidores públicos, professores, bancários, correios, petroleiros, além de setores do movimento estudantil, popular e de minorias que se manteve na luta. É preciso reconhecer que se trata de uma minoria da classe, mas não se pode negar a importância dos enfrentamentos travados por essa vanguarda. Trata-se de um setor combativo e mesmo heróico, pois colocou-se em luta mesmo contra a direção das correntes majoritárias do movimento. O PT, que ainda dirige a CUT, secundado por seus satélites (FS, CTB e outras centrais pelegas, além da direção do MST e da UNE), transformou essas entidades em instrumento de sustentação do governo Lula, atuando de forma a abortar, desviar e derrotar as lutas dos trabalhadores. Essa colaboração tem sido fundamental para a aplicação dos planos do governo Lula e da burguesia.

 

A necessidade de uma nova referência

Uma vez que os principais instrumentos da classe se converteram pelas mãos de seus dirigentes em instrumentos da burguesia, algo novo precisa ser construído. Se o nome de CONCLAT não se justifica do ponto de vista da ausência de mobilizações massivas da classe (como havia nos anos 1980), ele se justificaria como uma iniciativa de ruptura que busque criar um novo pólo de organização para as lutas dos trabalhadores, uma nova referência depois da incorporação do PT, da CUT e seus satélites ao aparato de Estado e à política da burguesia. Nesse aspecto, a iniciativa de chamar à discussão para a criação de uma nova referência é na verdade tardia. A capitulação dos principais organismos do proletariado à colaboração de classe se aprofundou ao longo de toda a década de 1990, antecedendo portanto o governo Lula e a ascensão do PT ao poder de Estado.

Além disso, a unidade dos setores combativos não foi seriamente buscada ao longo dos dois mandatos de Lula, pois as principais correntes, PSOL (que dirige a Intersindical) e PSTU (que dirige a Conlutas), priorizaram a construção de seus projetos particulares, deixando uma preciosa camada de ativistas dispersa e dividida. O sectarismo, o aparatismo e o imediatismo das principais correntes de esquerda foram também obstáculos no caminho da pequena vanguarda que despontou nos enfrentamentos que marcaram a atual década, além da própria burocracia petista. A conduta dessas correntes nos últimos anos autoriza a observar com ceticismo os seus atuais movimentos em direção à unidade.

Nem Conlutas nem Intersindical reúnem o número de sindicatos requerido pela atual legislação para serem reconhecidas como centrais sindicais, mas ficam mais próximas de conseguí-lo estando unificadas. A Nova Central que pretendem construir pode ser apenas um artifício formal para alcançar esse número, sem que as correntes se unifiquem de fato no movimento. É possível por exemplo que em bancários de São Paulo o MNOB (oposição ligada à Conlutas) lance uma chapa para concorrer à direção do sindicato, mas o coletivo de bancários da Intersindical permaneça numa chapa com a Articulação-PT. A unificação em uma Nova Central, nesse caso, seria apenas “para inglês ver”, ou seja, perante o Estado e a lei, mas não no dia a dia dos trabalhadores.

 

Os debates sobre a Nova Central

Um reflexo desse distanciamento das bases está nos debates que antecedem a realização do CONCLAT, que têm estado restritos às divergências entre as correntes principais. Tais divergências dizem respeito principalmente à composição da Nova Central e à sua forma de direção. Em relação à composição da Nova Central, nós do Espaço Socialista somos a favor de uma entidade não apenas sindical, que reúna os demais movimentos (estudantis, populares, luta contra as opressões), pois entendemos que é preciso contemplar a diversidade de situações e frentes de luta em que está envolvida nossa classe.

Somos também a favor da eleição da direção da Nova Central em Congresso por meio de chapas. Nesse ponto temos uma divergência com a corrente majoritária da Conlutas que envolve um balanço da central. A atual composição da direção da Conlutas, formada a partir de representantes escolhidos pelas entidades, é apresentada como mais democrática, e a eleição por chapas é tida como algo que vicia os debates do Congresso porque concentra tudo na disputa pela direção. Ambos os argumentos não se sustentam.

No congresso da Conlutas em 2008 defendemos que a escolha dos representantes das entidades para a coordenação se desse em fóruns de base, mas a corrente majoritária defendeu e manteve a ausência de um critério que obrigue a escolha das direções a ser referendada pelas bases, o que fez com que os processos de escolha continuassem sendo apenas formais, sem um debate real nas categorias sobre os rumos e a política da Conlutas. O inconveniente dessa forma de direção está no fato de que a responsabilidade política pela linha de ação adotada pela Conlutas fica oculta. Nunca se sabe claramente qual é a linha política majoritária na Conlutas, pois formalmente não existe uma maioria, já que a composição da direção é “flutuante”. Mas na prática, o PSTU controla a maioria das entidades e oposições que constróem a Conlutas, referendando automaticamente os seus militantes para a direção da Central, de maneira administrativa, formal. Transfere-se artificialmente a responsabilidade política para as entidades, sendo que na verdade ela cabe ao partido.

Quanto ao segundo argumento, não é a forma de escolha da direção que determina a existência de disputas entre as correntes no congresso. A disputa vai existir sempre, na medida em que, como dissemos, a unificação pretendida está sendo construída num plano apenas formal. Esconder a disputa política que existe pode dar a impressão de que o congresso se torna mais democrático e que os debates são mais aprofundados. Entretanto, mantida a forma de direção da Conlutas, os debates acabam sendo artificiais, estéreis, improdutivos, pois uma direção vai ser construída nos bastidores, por via indireta. Por mais qualidade que tenham os debates no curso de um congresso sem chapas, no final das contas a implantação ou não das propostas discutidas vai sempre depender de uma direção, que precisa portanto ser escolhida com critérios claros. Até mesmo para que se possa fazer o balanço daquilo que foi ou não posto em prática.

 

Por uma nova concepção e prática sindical

Essas diferenças que temos com as correntes majoritárias são importantes, mas não são as principais. Uma vez que a questão fundamental em jogo é a criação de uma nova referência de organização para as lutas da classe, nós do Espaço Socialista entendemos que a tarefa do CONCLAT deve ir além do aspecto organizativo, que consiste em fundar uma Nova Central. É preciso lutar pela construção de uma nova concepção de prática sindical. A partir de nossa atuação nas oposições sindicais e dos contatos que temos com sindicatos ligados à Conlutas em outros estados, estamos participando da construção do CONCLAT, inscrevendo uma Tese em que buscamos desenvolver os elementos dessa nova concepção. O pressuposto de que partimos é de que a estrutura sindical brasileira permanece prisioneira dos limites que lhe foram impostos na Era Vargas, os quais não foram rompidos nem mesmo em períodos de grande ascenso como no pré-64 e no início dos anos 80. Nesse sentido, apresentamos em nossa Tese uma série de pontos de discussão sobre os problemas que as organizações dos trabalhadores precisam superar.

– No Brasil os sindicatos dependem de autorização do Estado para existir. É preciso ter uma carta do Ministério do Trabalho para que a entidade tenha a condição legal de representar os trabalhadores perante a patronal e o próprio Estado. Os sindicatos passam a ter como limite da sua atuação as negociações trabalhistas. Defendemos que os sindicatos possam se organizar autonomamente, segundo suas próprias concepções, para desenvolver o processo de educação política da classe em direção ao socialismo paralelo ao enfrentamento cotidiano das questões trabalhistas.

– O atrelamento dos sindicatos ao Estado se materializa por meio do financiamento, pois os sindicatos no Brasil são mantidos por meio do Imposto Sindical, uma contribuição compulsória cobrada de todos os trabalhadores brasileiros, independentemente de serem sindicalizados ou não, equivalente a um dia de trabalho por ano. Com esse dinheiro é possível manter artificialmente a existência de um aparato burocrático de sindicatos, federações, confederações e centrais sem que essas entidades tenham qualquer papel político real enquanto organizações da classe, até mesmo no que se refere ao plano da luta econômica elementar. É preciso romper com essa barreira e construir organizações sindicais política e financeiramente autônomas, mantidas exclusivamente por meio da contribuição voluntária e consciente dos trabalhadores, em função do reconhecimento da sua representatividade.

– Cada luta sindical deve transpor seus limites tornando-se uma luta política no sentido de colocar em questão a ruptura com a lógica do capital e com o Estado capitalista e a necessidade de outro tipo de sociedade e de poder em que sejam os trabalhadores e suas organizações que decidam os rumos da sociedade. Mesmo os sindicatos, em uma época de domínio imperialista, se quiserem superar seus limites, devem ser radicais na defesa dos interesses dos trabalhadores: ter como estratégia a luta contra o capitalismo.

– As lutas e principalmente os sindicatos devem romper seu corporativismo tornando-se mais amplos, unificando trabalhadores ativos e desempregados, trabalhadores diretos e terceirizados, estudantes e professores, etc., no sentido de um movimento o mais geral e coeso possível. Não pensamos que os sindicatos, como quer a burguesia, fiquem restritos à representação corporativa da categoria (em muitos casos representam apenas parte dessa categoria), limitando-se as suas reivindicações. As bandeiras de luta devem ser mais gerais, extrapolando os limites de fábricas, categorias, e ramos produtivos. As lutas e organizações sindicais devem transcender os limites das bandeiras específicas, sob pena de não conseguirem mais sequer manter as conquistas que ainda restam. As bandeiras de luta imediatas devem ser combinadas com outras mais gerais, como: redução da jornada de trabalho para 36 horas sem redução dos salários, carteira assinada para todos os trabalhadores, índice unificado de reajuste salarial, salário mínimo do DIEESE , etc.;

– O sindicalismo brasileiro se caracteriza ainda pela falta de efetividade das organizações por local de trabalho, como as comissões de empresa, CIPAs, corpos de delegados sindicais e representantes de base. A atividade sindical é desenvolvida como algo que emana da cúpula dirigente das entidades sindicais, ao invés de se construir na mobilização a partir da base. Por isso é preciso que a Nova Central desenvolva formas de organizar os trabalhadores em suas entidades, mas também em seu local de trabalho, seja legalmente, por meio das comissões de fábricas ou CIPAs, ou mesmo clandestinamente.

– Não pensamos que a burocratização seja inerente ao ser humano, mas ao sistema de dominação. Para se manter de pé o sistema cria mecanismos ou soluções aparentemente mais fáceis para atrair a consciência da classe trabalhadora. A burocratização, seja pelo parlamento, sindicatos ou mesmo o partido, é um elemento objetivo e assim temos que lidar. Para que a CENTRAL se apresente aos trabalhadores como algo realmente diferente precisa demonstrar que tem uma estrutura anti-burocrática. Por isso propomos as seguintes medidas:

a) Todas as decisões políticas importantes precisam ser tomadas em fóruns amplos, ou seja, deve ser retirado dos órgãos de coordenação/direção o poder de decidir tudo, sem discutir com a base;

b) Ninguém pode se reeleger mais que uma vez e quando reeleito não pode ocupar o mesmo cargo;

c) Substituição obrigatória de pelo ½ dos membros dos órgãos dirigentes a cada eleição, de forma que garanta uma renovação permanente;

d) A liberação deve ser uma discussão com o conjunto da categoria, que decida quem se libera e quem não se libera. Quando a “liberação” for aprovada o salário não pode ser superior àquele que o militante recebia e deve existir rodízio, com prazo determinado para retorno ao trabalho. Deve haver um rígido controle sobre o cumprimento de horário e das tarefas assumidas, de forma que se cumpra no mínimo o mesmo de antes da liberação;

e) Os sindicatos e demais organizações devem ser absolutamente democráticas, com garantias expressas ao debate entre os ativistas, liberdade de intervenção, discussão, votações, direito de expressão de todas as posições para os trabalhadores nos materiais do sindicato (jornais, revistas) e nas assembléias. Também deve haver um impulso sistemático à formação política e teórica, para superar as dificuldades que haja entre os trabalhadores.

 

– Entendemos as oposições como um movimento mais amplo que tenha como objetivo retomar ideologicamente a direção da classe. A tarefa desse movimento é desenvolver o trabalho que os sindicatos não tem desenvolvido de organização e elevação da consciência da classe. A retomada dos sindicatos é um meio e não um fim em si. O fortalecimento do movimento deve criar condições para que cada segmento da classe seja capaz de organizar sua luta cotidiana contra a burguesia mesmo com o obstáculo das direções burocráticas, passando por cima dessas direções, até que possam ser substituídas por direções combativas formadas no próprio curso da luta. É preciso que os trabalhadores se convençam de que faz diferença votar em uma chapa da Nova Central

– A disputa ideológica requer também uma disputa teórica. A formação dos dirigentes sindicais, dos militantes e dos próprios trabalhadores também precisa ser desenvolvida internamente, dentro das próprias entidades sindicais, sem o recurso a institutos e aparatos exteriores. Além disso, a formação sindical deve ir além de palestras do tipo acadêmico, em que um orador fala e os trabalhadores permanecem passivos. E também os temas tratados devem ir além das questões imediatas, como CIPA, condições de trabalho, legislação trabalhista, etc., que são importantes, mas não dispensam uma formação de caráter mais ideológico e político. É preciso superar a concepção das atividades de formação apenas como uma série de cursos que não se relacionam com o restante da atividade sindical e do dia a dia do trabalhador. O próprio desenvolvimento das lutas deve ser visto como um meio de formar novos dirigentes e de educar os trabalhadores em geral, para que desempenhem um papel mais ativo. A formação deve ser um processo permanente, em conexão com a atividade política e a disputa ideológico-cultural.

Esses e outros pontos estão desenvolvidos em detalhe em nossa Tese. Chamamos todos os ativistas e trabalhadores a debater essas concepções e construir conosco uma intervenção no CONCLAT e nas lutas em direção à renovação das formas de organização do proletariado, retomando a luta política e ideológica pelo socialismo.

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Crise e luta de classes na Europa: a resistência dos trabalhadores gregos

 

A nova fase da crise

A crise econômica mundial ingressou numa nova fase em 2010. Os gastos dos governos do mundo inteiro desde 2008 e ao longo de 2009 para salvar os negócios da burguesia levaram a um aumento explosivo do endividamento público. Para lidar com esse aumento do endividamento sem decretar moratórias e em alguns casos para manter a própria validade da moeda, os governos serão forçados a lançar medidas de redução dos gastos públicos e aumento da arrecadação. Isso significa aumentar impostos e reduzir os gastos com os serviços públicos, como aposentadorias, saúde, educação, transportes, etc., que são conquistas dos trabalhadores obtidas por meio de décadas de lutas. Os países imperialistas, como os Estados Unidos, as potências da Europa e o Japão, terão que impor uma queda violenta no padrão de vida dos seus trabalhadores para recuperar a taxa de lucro da burguesia, tendendo a jogá-los em número cada vez maior no mesmo grau de miséria em que vivem os trabalhadores dos países periféricos.

O primeiro round desses ataques contra os trabalhadores depois do auge da crise está se desenrolando na periferia da Europa, onde países como Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha (grupo apelidado de “PIGS” – porcos, na sigla em inglês), Bélgica e Áustria, enfrentam sérias crises de endividamento público, crises bancárias, aumento do desemprego, etc., acompanhados da própria Itália, um dos pilares da União Européia. A contradição vivenciada pela União Européia reside no fato de que a sua economia está centralizada por uma moeda comum, o euro, enquanto que os Estados-membros retém sua autonomia em termos de política orçamentária (gastos do Estado). Para preservar o euro, essa autonomia tem que ser revogada na prática, pois o endividamento excessivo de um dado país pode pôr em risco a moeda comum a todos. Na medida em que cada governo nacional usa de sua autonomia para resgatar a sua burguesia em momentos de crise, a União Européia precisa vir depois impor a esses governos que passem a conta para a sua classe trabalhadora, sob pena de enfraquecer a moeda comum.

 

A armadilha da dívida

Dos 16 países da zona do euro, há 12 em situação de infração das metas orçamentárias. Dentre esses países, a Grécia é o que tem se colocado com mais evidência no foco das atenções, como uma espécie de ponta do iceberg, com um déficit orçamentário próximo de 13% do PIB e uma dívida pública de cerca de 110%. As autoridades financeiras européias impuseram uma supervisão sobre a administração do orçamento público grego, o que na prática significa a revogação da soberania do país sobre sua economia em favor dos funcionários não-eleitos da burocracia da União Européia. Por meio de seus funcionários na União, a burguesia européia exige o fim das “mordomias” do “estado do bem-estar social grego”, dos “altos salários” e “privilégios” dos servidores públicos e aposentados, apontados como culpados pelo endividamento. Essa defesa hipócrita de palavras de ordem neoliberais acontece menos de um ano depois do governo grego, assim como os demais governos europeus e mundiais, ter entregue toneladas de dinheiro aos bancos e grandes empresas que causaram a crise econômica (o total gasto por Estados Unidos e Europa tem sido estimado em US$ 14 trilhões).

A Grécia caiu prisioneira de um mecanismo perverso que se estabeleceu logo após o salvamento dos bancos e especuladores pelo Estado. Graças aos pacotes de ajuda dos governos, os agentes do mercado financeiro passaram a obter empréstimos a juros praticamente zero dos Bancos Centrais. Além de se aproveitar dessa mãozinha do Estado, os especuladores vão além e fazem empréstimos aos governos mais fragilizados, que precisam rolar suas dívidas, cobrando altas taxas de juros. Esses juros são tanto mais altos quanto mais se duvida da capacidade do país em questão de resgatar os títulos e pagar sua dívida. Graças a esse círculo vicioso, a dívida de países como a Grécia cresce como uma bola de neve, até colocar o governo do país à beira da falência e a sua população à mercê das exigências do capital.

 

A resposta dos trabalhadores

Os primeiros impactos da crise mundial na Grécia e as mobilizações da juventude em fins de 2008 levaram à queda do primeiro-ministro conservador e à subida ao poder do Partico Social-Democrata (PASOK) nas eleições de outubro de 2009, formando um governo chefiado por George Papandreou. Entretanto, neste início de 2010, o próprio governo dito “socialista”, para atender às exigências da burguesia grega e européia, lançou um pacote de redução de gastos para tentar diminuir o enorme déficit público de 13 para os 3% estabelecidos como meta para os países da zona do euro. O plano envolve cortes nos serviços de saúde e pensões, redução nos salários dos servidores, aumento do tempo para aposentadoria e aumentos de impostos. O imposto sobre valor agregado, que incide sobre o consumo, cuja alta teve efeito já em março, elevou imediatamente o preço de vários bens e serviços essenciais, castigando particularmente as camadas mais pobres da população.

Na Grécia como em vários outros países, o partido social-democrata se transformou no instrumento preferencial da burguesia para administrar os efeitos da crise e o descontentamento social subsequente. O PASOK tem o apoio da burocracia que dirige as centrais sindicais dos trabalhadores das empresas privadas (GSEE) e do serviço público (ADEDY), que trabalham para impedir a deflagração de lutas dos trabalhadores.

Entretanto, apesar do PASOK, das burocracias sindicais e das hesitações dos agrupamentos burocráticos e reformistas, tais como o Partido Comunista (Stalinista) KKE, a coligação SYRIZA e a Antarsya, os trabalhadores gregos foram à luta. Greves foram deflagradas no serviço público e nas empresas privadas, passeatas e manifestações de massa tomaram as ruas das cidades, camponeses bloquearam estradas, numa onda de mobilizações que as burocracias não puderam conter. Em 10 de fevereiro houve uma primeira greve dos servidores públicos. Em 24 de fevereiro houve uma greve geral que paralisou cerca de 2 milhões de trabalhadores.

Seguiram-se novas paralisações no dia 4 de março e manifestações de massa na capital Atenas em 5 de março, com cerco da população ao palácio do governo e choques com a polícia no momento em que o pacote de medidas de austeridade foi aprovado no Parlamento. E uma greve geral ainda mais massiva, envolvendo 3 milhões de pessoas (de uma população total de 11 milhões de habitantes), praticamente parou o país em 11 de março. Uma vez que não podem impedir a deflagração de greves, tamanho é o ódio dos trabalhadores contra o governo e suas medidas, as burocracias sindicais ligadas ao PASOK (GSEE/ADEDY) e ao KKE (PAME) usam o recurso das greves de apenas um dia para permitir que o descontentamento se expresse, sem que chegue a se desdobrar em ações mais efetivas, tais como ocupações de fábricas e prédios públicos, que tenham duração por tempo indeterminado e que realmente impeçam a economia e o governo de funcionar.

Com isso, as burocracias sindicais e políticas esperam dar tempo ao governo para aplicar as medidas e apresentá-las como inevitáveis. Depois da greve geral do dia 11, novas ações de massa foram suspensas e a luta se manteve no nível de protestos e greves isoladas por unidades. Pior do que isso, as burocracias sindicais estão impulsionando uma campanha protecionista para incentivar os trabalhadores a consumir “produtos gregos”, como se a causa dos problemas do país estivesse na concorrência dos produtos importados. Isso joga os trabalhadores gregos contra os seus irmãos de classe em outros países e os impede de se colocar em luta contra a burguesia e o Estado em seu próprio país. Além disso, trata-se de uma medida que, mesmo que executada, não daria condições às empresas gregas de concorrer com rivais muito mais fortes numa economia plenamente mundializada. O problema do país é a sua subordinação ao capitalismo mundial, o que exige soluções muito mais radicais.

 

O exemplo grego se espalha

A luta dos trabalhadores colocou em dúvida a capacidade do governo Papandreou de conseguir implantar de fato o pacote de ajuste, o que fez com os juros dos títulos da dívida disparassem ainda mais. O primeiro-ministro grego excursionou pela União Européia e até pelos Estados Unidos mendigando ajuda para evitar o colapso financeiro do país. Com muita má vontade, os primos ricos costuraram um plano de ajuda ao governo grego, mas não por simpatia para com a Grécia e sim pelo risco de que o exemplo dos trabalhadores gregos se espalhasse também para o seu próprio quintal.

As lutas dos trabalhadores gregos, a partir da greve geral de 10 de fevereiro, foram acompanhadas por ações do proletariado em vários outros países. Em fins de fevereiro, servidores públicos em Portugal fizeram dias de greve, houve protestos em todas as grandes cidades espanholas contra medidas semelhantes do governo do PSOE, e as greves dos trabalhadores dos transportes na República Tcheca e em grandes empresas como Lufthansa (Alemanha), Total (França) e British Airways (Inglaterra) tiveram que ser contidas com grandes dificuldades pelas burocracias sindicais. No final de março houve uma greve na França envolvendo 1 milhão de servidores públicos.

Foram esses os fatos que levaram a burguesia européia a entrar num acordo a contragosto e arranjar um empréstimo em parceria com o FMI. Setores da burguesia européia relutaram até o último momento em aceitar a interferência do FMI, pois sabem que com ela vêm juntas uma série de exigências que amarram o país “socorrido” aos interesses estadunidenses, que em última instância são os que dão as cartas na instituição. E foram justamente os financistas estadunidenses que precipitaram a crise grega, especulando contra os títulos da dívida daquele país. No auge do seu descontentamento, os imperialistas europeus, especialmente a Alemanha, cogitaram até de criar um fundo monetário europeu, para exercer eles mesmos a ditadura sobre países em situação como a dos PIGS e enfraquecer a influência estadunidense.

 

A necessidade de uma perspectiva socialista

Apesar dessas divisões, a burguesia continua unida quanto ao fundamental, que para ela é a necessidade vital de aumentar a exploração sobre os trabalhadores. Para impor o ataques às condições de vida dos trabalhadores de que necessita para restaurar a taxa de lucro, a burguesia conta com a colaboração unânime dos partidos políticos que se alternam no poder em cada país, pois não há mais partidos que questionem a lógica do capital. Desde a queda da URSS e do muro de Berlim, faz-se sentir com todo o peso a crise de alternativas socialistas, que faz com que os trabalhadores não vislumbrem uma alternativa ao capitalismo e facilita a tarefa dos agentes da burguesia. Usa-se o discurso de que “todos devem fazer a sua parte” para recuperar a economia, como se não houvesse outra forma possível de administração da economia e da sociedade, a ser construída a partir das necessidades da classe trabalhadora.

Por outro lado, o proletariado não vai suportar passivamente a destruição de conquistas sociais consolidadas há várias décadas e que custaram o sacrifício de gerações de trabalhadores. As mobilizações, protestos e greves continuam a se suceder e aumentam em vários países, especialmente no continente europeu, neste momento. Na luta defensiva dos trabalhadores para impedir a destruição das suas condições de vida, pode estar a via para a retomada de uma ofensiva da luta pela superação do capitalismo. Para que essa retomada se verifique na realidade uma série de obstáculos terão que ser superados, principalmente em termos de consciência e formas de organização da classe, que permitam aos trabalhadores perceber que somente uma luta socialista e radical contra o capital e o Estado pode preservar, e no futuro melhorar, as suas condições de vida.

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Eleições 2010: O falso debate e a alternativa para os trabalhadores

A continuidade do neoliberalismo

Enquanto os países imperialistas se defrontam com a necessidade de esmagar os seus trabalhadores, obrigando-os a aceitar a degradação de suas condições de vida, o proletariado dos países periféricos já convive com uma miséria crônica, permanente, estrutural. Além disso, continentes como a América Latina enfrentaram, durante a década de 1990, processos de reestruturação neoliberal que fragilizaram sobremaneira o setor mais organizado da classe trabalhadora (reestruturação produtiva, privatizações, reforma da previdência, arrocho salarial), diminuindo seu poder de resistência e abrindo caminho para um aumento expressivo da lucratividade dos empreendimentos capitalistas (em especial bancos, agronegócios e os setores que produzem para exportação). Isso deu à burguesia instalada nesses países uma flexibilidade maior para atravessar a crise econômica e para que seus gestores aparecessem para o mundo como um suposto exemplo de sucesso.

No caso do Brasil, quem se beneficiou politicamente dos ajustes neoliberais foi justamente o partido que nominalmente fazia oposição a esse projeto, ou seja, o PT. O governo Lula, eleito em 2002 com base na rejeição popular ao neoliberalismo e na esperança de mudança, deu continuidade a essa mesma política. Vejamos alguns pontos dessa continuidade:

– Prosseguiram os criminosos pagamentos da dívida pública (uma média de escandalosos R$ 200 bilhões de reais por ano). A dívida externa foi convertida em dívida interna, mas continua sangrando as finanças do país. Os juros pagos pelo governo brasileiro, embora tenham caído muito, permanecem entre os mais altos do mundo, beneficiando os especuladores;

– Enquanto os especuladores e outros setores da burguesia faturam com toda sorte de benefícios (isenções fiscais, obras de infra-estrutura, empréstimos facilitados, liberdade para a remessa de lucros ao exterior), a população sofre com o sucateamento dos serviços de previdência, saúde, educação, transporte público, asfixiados por cortes de verbas;

– As estatais privatizadas durante o governo FHC (o caso mais criminoso foi o da Vale do Rio Doce) não foram reestatizadas e novas privatizações foram feitas (reservas de petróleo, bancos estaduais, rodovias, concessões do uso de florestas). As principais estatais, como Petrobrás e Banco do Brasil, são geridas como empresas privadas, voltadas para o lucro, sem compromisso com os trabalhadores e em benefício de acionistas privados, inclusive estrangeiros;

– Prosseguiram as (contra)reformas, como a da Previdência, atacando inicialmente os servidores públicos; a reforma universitária, sucateando as universidades públicas e financiando o ensino privado; aspectos parciais da legislação trabalhista;

– A política econômica seguiu privilegiando os setores da burguesia que mais lucram com a atual inserção do Brasil na divisão mundial do trabalho como exportador de produtos agrícolas e manufaturas de baixo valor. É o caso dos bancos, do agronegócio e das transnacionais que usam o país como plataforma de exportação.

 

Imagem e realidade do governo Lula

Para tornar aceitável esse programa anti-operário, o governo se revestiu de uma imagem popularesca, repartindo migalhas para o setor mais pobre da classe trabalhadora através dos programas de bolsa-esmola, que criaram um eleitorado fiel nos moldes do velho clientelismo, renovado por técnicas de marketing. Para o setor médio da classe trabalhadora, o governo Lula acenou com o crescimento do crédito, dando a essa camada a condição de adquirir casas, carros e eletrodomésticos numa escala que antes não era possível. Um relatório do Banco Central publicado no final de março mostrou que a relação entre o volume total de empréstimos chegou a 44,9% do PIB em fevereiro de 2010, contra 40% em 2009. Esse aumento expressivo do crédito (ou seja, do endividamento dos trabalhadores) é uma das explicações para o aparente sucesso do governo em contornar temporariamente a crise econômica mundial.

Contra o setor mais organizado da classe trabalhadora (servidores, professores, funcionários das estatais) e os movimentos que ousaram se colocar em luta (sem-terra, favelados, sem-teto), o governo usou a repressão policial e judicial, processos e perseguições, além de contar com o controle do PT sobre os principais instrumentos de luta para evitar a massificação de greves, ocupações e lutas sociais. A conversão do PT em instrumento auxiliar da burguesia, ajudando por meio das centrais sindicais a validar as demissões, reduções de salários e cortes de direitos durante o auge da crise, foi também fundamental para aplicar os ataques à classe trabalhadora.

Por último, o governo usa também de chantagem, com a ameaça da volta do PSDB ao governo. Com isso, mesmo os setores organizados da classe, como os funcionários das estatais, duramente atacados pelo governo durante seus dois mandatos (arrocho salarial, reestruturações, degradação das condições de trabalho, repressão às greves), tendem a ver a continuidade do PT no governo, através da candidatura Dilma, como um mal menor em face da possibilidade de retorno do PSDB.

 

Verdade e falsidade na disputa PT X PSDB

Sabemos o quão desastroso foi para a classe trabalhadora brasileira o governo FHC e o quanto pode ser um eventual governo Serra, o qual combatemos no estado de São Paulo. Somos oposição ao governo Lula não por considerar que o PSDB é a alternativa, mas por saber que a candidatura Dilma e o PT não governam no interesse dos trabalhadores. Não são uma defesa contra os ataques da burguesia. O PT se converteu num partido burguês composto de burocratas. Os traços de presença operária remanescentes na base do PT não têm mais qualquer influência nas instâncias decisórias do partido. O PT sobrevive do aparato do Estado, dos mandatos parlamentares, dos cargos de confiança, diretorias de estatais, controle sobre os fundos de pensão e até mesmo da corrupção (de cujos casos o governo Lula foi pródigo, desde o mensalão até o recente exemplo da Bancoop). O PT funcionou como mais um partido burguês na repartição do poder feita por Lula, que se manteve no governo com o apoio de setores altamente reacionários, como o PMDB de Sarney.

Isso não significa que não haja uma disputa real entre PT e PSDB, pois os dois partidos vão travar uma disputa de morte até outubro pela presidência. A questão é que essa disputa diz respeito a diferenças no método de gestão do mesmo projeto e não quanto ao projeto em si. O PT defende um projeto de capitalismo com maior controle do Estado (porque ele PT, enquanto dependente da burocracia estatal, sobrevive às custas de parcelas do lucro que daí consegue extrair), mediações no ataque aos trabalhadores (verbas para assentamentos do MST, Pró-Uni para cooptar possíveis ativistas, bolsa-esmola para contentar o setor mais pobre, reconhecimento das centrais sindicais para que legitimem as medidas da burguesia, repressão pura e dura contra quem se atreve a lutar) e algumas facilidades ao mercado interno para contentar os setores médios. O PSDB defende um Estado enxuto, uma gestão “eficiente” (ou seja, em que a burocracia não fique com nenhuma fatia dos lucros), e trata os movimentos sociais como caso de polícia.

A alternativa não está portanto entre PT e PSDB, pois ambos reprimem os trabalhadores e se colocam a serviço dos lucros da burguesia. É falsa a afirmação de que um eventual governo Dilma, por representar a continuidade do lulismo, seria um mal menor. As demissões, reduções de salário e retirada de direitos correram soltas no auge da crise. E na suposta “recuperação” econômica que estamos vivenciando, os trabalhadores estão sendo contratados para trabalhar mais e ganhar menos. A reestruturação produtiva prossegue, com o aumento da exploração e a degradação das condições de trabalho em todas as empresas. Tudo isso ocorreu com a colaboração explícita de Lula e do PT. O PT, com Lula ou Dilma no governo e a Articulação no comando da CUT e demais centrais sindicais, não representa uma defesa contra os ataques da burguesia.

 

Os limites da democracia burguesa

O comportamento de Lula e do PT não é simples acidente ou traição, mas segue uma lógica, a lógica da democracia burguesa, que consiste em mudar as aparências para que tudo continue igual. Periodicamente, quando o capitalismo vivencia uma crise de legitimidade, uma dificuldade para aplicar os programas de interesse da burguesia, a classe dominante apela para o recurso da democracia burguesa e promove a eleição de governantes que supostamente representam a “mudança”. Esses governantes são eleitos com as esperanças ardentes de milhões de trabalhadores, como uma figura messiânica, um “salvador da pátria” todo-poderoso. É o caso de Lula no Brasil ou mesmo de Obama nos Estados Unidos.

Entretanto, tão logo assumem o governo, descobre-se que esses governantes não podem na verdade mudar nada. Eles dão continuidade ao mesmo programa dos demais partidos burgueses. Quando alguns setores da classe trabalhadora mais conscientes e mais mobilizados começam a perceber que não houve mudança, que tudo continua como antes, que prosseguem os benefícios para o grande capital, a corrupção, a repressão sobre as lutas sociais; então esses mesmos governantes, que no dia em que foram eleitos eram todo-poderosos, imediatamente se convertem em seres impotentes. De repente, mostram-se incapazes de lutar contra as forças da direita. De repente, eles precisam do máximo de apoio e do mínimo de crítica. Surge o discurso de que o burocrata de plantão é um mal menor e de que o importante é impedir a volta da direita.

Poucas vezes um governante foi eleito com base em tamanha esperança e respaldo popular e tamanho ódio contra seus adversários e o programa que representam como nos casos de Lula e Obama. Se houvesse a intenção de mudar alguma coisa de fato, havia força social e política para isso. A questão é que não havia intenção de mudança nenhuma. O objetivo das eleições é justamente impedir que essa força social e política da classe trabalhadora desejosa de mudança realize as mudanças por si mesma, por meio da ação direta, das greves, das ocupações, da auto-gestão, da criatividade libertada. O objetivo é justamente fazer com que a classe trabalhadora fique paralisada, em estado de espera e eterna dependência para com o dirigente.

 

A verdadeira alternativa: organização dos trabalhadores

Diante do mecanismo da democracia burguesa, a alternativa para os trabalhadores não está na eleição de um governante que supostamente resolva seus problemas, mas está na auto-organização da classe para lutar por um programa que contemple as suas necessidades. Só a luta muda a vida. Só a greve pode nos dar a redução da jornada de trabalho sem redução de salários. Só a ocupação do latifúndio pode nos dar a terra para produzir alimento e impedir a degradação do meio ambiente. Só a participação ativa e consciente dos trabalhadores na gestão de todos os aspectos da vida social, do trabalho, da educação, da cultura em todas as suas manifestações, das relações entre os sexos, pode construir um modo de vida livre de exploração e de todas as formas de opressão racial, machista e sexista.

A função das organizações políticas da classe trabalhadora, dos partidos operários legalizados perante o Estado para disputar eleições não é disputar parcelas de poder no interior do aparato estatal (esse foi o caminho que levou à degeneração do PT e à sua transformação em instrumento da burguesia), mas fazer a denúncia da democracia burguesa e a defesa de um programa que contemple as reais necessidades dos trabalhadores. Diante do atual quadro, em que a maior parte da classe trabalhadora brasileira tende a ver a candidatura Dilma como uma possível esperança ou um mal menor contra Serra, o papel da esquerda organizada deveria ser o de construir anti-candidaturas operárias para o parlamento e o executivo que fizessem a denúncia dessa falsa disputa, revelassem os interesses que esses partidos representam e expusessem um programa dos trabalhadores, um programa socialista.

Para cumprir essa tarefa, um pré-requisito seria o diálogo com a base das categorias, com os ativistas e a vanguarda dos trabalhadores que, com todas as dificuldades, se colocaram em luta ao longo do governo Lula. Seria preciso organizar um verdadeiro Movimento Político dos Trabalhadores como alternativa unitária contra as candidaturas burguesas e instrumento para a construção de um programa contra o capitalismo. Entretanto, os movimentos que temos visto por parte dos partidos operários existentes no Brasil, PSOL, PSTU, PCB e PCO, não vai nessa direção. Todos têm preferido as discussões de cúpula e o lançamento de candidaturas próprias.

Fazemos o chamado a essas organizações para que revejam essa política equivocada e se coloquem a serviço da construção de um Movimento Político unitário, tão necessário nas difíceis condições atravessadas pela nossa classe. Essa é a nossa responsabilidade histórica como lutadores pelo socialismo.

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A educação em tempos de crise estrutural do capital

No Brasil e no mundo os governos, mais uma vez, foram convocados, como sempre, para gerenciar a crise estrutural do capitalismo. Essa intervenção estatal direta, através da aquisição e do empreendedorismo, ignora as necessidades coletivas dos trabalhadores para garantir os lucros das grandes empresas e dos banqueiros.

Os governos emitiram trilhões de dólares para atenuar a crise. Escondem com isto um enorme endividamento público que será pago por alguém, nesse caso, pelos trabalhadores. Lula já gastou mais de R$ 480 bilhões e Serra, que já havia dado R$ 9 bilhões para as montadoras, criou um pacote de R$ 20,6 bilhões, com isenção de impostos e a construção de obras de infra-estrutura de interesse dos empresários. A isenção de impostos também foi seguida pelo governo federal através da redução de IPI para a compra de eletrodomésticos e automóveis.

O endividamento público em função da ajuda às empresas fez com que o setor público consolidado brasileiro registrasse déficit primário de R$ 5,763 bilhões em setembro, pior resultado para o mês desde 2001. Em setembro de 2008, o resultado primário havia sido superavitário em R$ 6,618 bilhões. (Reuters News 30/10/2009).

O resultado dessas ações é o sucateamento dos serviços públicos com os baixos salários e a precariedade dos serviços utilizados pelos trabalhadores.

No caso, estado de São Paulo, Serra contingenciou mais de R$ 23 bilhões e se apresenta como o verdadeiro porta-voz da burguesia para governar o Brasil, principalmente no contexto de crise.

 

Os professores como obstáculo para a implementação do projeto da burguesia

Embora os estados tenham gasto trilhões de dólares – e irão gastar muito mais – com ajuda financeira ao capital em crise, os professores juntamente com os profissionais de Saúde são apontados como a principal carga orçamentária dos Estados Nacionais, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):

“O conjunto desses países (países pertencentes a organização) destinavam, em média, 4% do seu PIB para o ensino primário e secundário e 8,3% dos gastos públicos para essas categorias, sendo que na União Europeia o percentual do PIB se elevava a 10% e, na América do Norte, a Européia 14%. Mas de 80% da soma investida nos cursos primário e secundário era destinada à remuneração dos profissionais da escola e três quartos desses recursos iam para os professores”. (In: Professores do Brasil: impasses e desafios, p. 16)

Isso evidencia o nível de controle e repressão sobre os professores em todo mundo. No caso da greve dos professores da Rede Estadual do Ensino de São Paulo possibilita-nos entender os motivos de uma mobilização massiva e longa (30 dias) ser tão fortemente combatida, desmoralizada pela imprensa e governo e ter como resultado a repressão policial sangrenta e a falta de diálogo.

Derrotar qualquer reação dos trabalhadores é necessário para a implantação do projeto burguês de contingenciamento de recursos financeiros e de conquista e manutenção de isenção fiscal.

Não é à toa que grandes empresários e banqueiros participam da discussão em torno das questões educacionais. Para a burguesia a Educação vai além da preparação de mão de obra ideal para maior extração da mais-valia.

O compromisso “Todos pela Educação”, assinado em 06 de setembro de 2006, nos mostra isso. O movimento conta com a adesão de governos de todas as legendas partidárias burguesas (PT, PSDB, DEM, PMDB…), de grupos empresariais, ONG´s (Fundação Roberto Marinho, Fundação Itaú – Social, Instituto Airton Senna, Fundação Bradesco, Grupo Gerdal, etc). Tem como objetivo central o corte nos gastos públicos e a contenção social para sobrar dinheiro que será utilizado na construção de obras de seu interesse e de um caixa para socorrê-la futuramente.

Para isso é necessário instituir Prova por mérito e Avaliação por desempenho como mecanismos de controle “que atuam diretamente sobre as escolas como forma de pressão através da competição em suma, na gestão dos sistemas escolares, há um excesso de centro, excesso de política, excesso de estado”. (Márcio da Costa. In: Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em Educação. p. 63). São ações que procuram enquadrar o professor para possibilitar a implantação do projeto burguês e dos projetos impostos pelos organismos internacionais a todo o funcionalismo público.

 

As organismos internacionais

Os organismos financeiros como Banco Mundial e FMI passaram a traçar diretrizes, ou mesmo intervirem, na política interna dos países endividados subdesenvolvidos e, sobretudo, da América Latina a partir da crise dos anos 70/80 que mais tarde desembocou na implementação da política neoliberal.

Estas intervenções tinham como objetivo central assegurar o pagamento das dívidas aos credores dos países centrais a partir da redução dos gastos estatais com os serviços sociais (saúde, educação, moradia) a fim de garantir ajuda financeira e fiscal aos empresários e banqueiros.

Na Educação pública, a intervenção do Banco mundial e do FMI se dá através de reformas educacionais que objetivam formar uma mão de obra que ora pode ser utilizada, ora pode ser descartada parcialmente ou totalmente de acordo com as necessidades do mercado, formando uma mão de obra precária e flexível adequada à reestruturação produtiva.

Essa lógica está aplicada na forma de contratação dos professores temporários em São Paulo (cerca de 80 mil) que ora são aproveitados ora descartados e representam a mão de obra precária e flexível na Educação.

As medidas pioneiras tomadas pelo governo estadual em relação às novas formas de contratação de professores indicam o aprofundamento do processo de precarização do trabalho no funcionalismo público, objetiva a consolidação do trabalho temporário, instável e sujeito à avaliação e demissão pelo gestor (categoria “O”).

Ao criar várias divisões na profissão de professores a categoria “O” é a que mais expressa a precariedade, pois o professor leciona por um ano e é impedido de lecionar no ano seguinte (200 dias) com intensa retirada direitos. Evidentemente, esta situação inviabiliza qualquer possibilidade de exercer um trabalho educativo adequado. Precariza simultaneamente, as condições de trabalho dos professores e o ensino público em geral, consolida o trabalho informal e desmerece a importância social do trabalho dos professores.

É evidente que esta lógica tende a se estender a todas as demais formas de contratação do funcionalismo, inclusive sinalizando para o fim da estabilidade dos efetivos.

 

A greve dos professores reafirma: a luta por uma educação pública deve ser todos os trabalhadores!

A greve dos professores da Rede Estadual de Ensino Público de São Paulo é um exemplo de que não podemos mais dissociar a luta desses profissionais com a luta dos trabalhadores dos demais setores, sob pena de isolamento e derrota.

Primeiro, porque são os filhos dos trabalhadores que estudam na escola pública. Segundo, porque a burguesia busca manter suas taxas de lucro, se blindar da crise econômica e jogar nas costas dos trabalhadores os custos da crise.

É necessário rompermos com os limites do corporativismo e ligar a luta imediata com a luta política tendo no horizonte a superação da lógica do capital. Precisamos envolver todos os trabalhadores na discussão sobre a qualidade do ensino público e desmascarar governos e patrões, os verdadeiros culpados pela crise da Educação.

Enquanto estávamos em Greve, em São Paulo, por condições de trabalho, contra a precarização dos vínculos de contratação, contra a política da meritocracia, o governo Lula criou o decreto nº 7133 que qual estabelece os critérios e processos de avaliação de desempenho de todos os funcionários públicos federais. Ou seja, a mesma política de José Serra.

Nesse sentido nossa luta não é apenas contra o governo estadual (Serra/Goldman), mas também contra o governo federal (Lula), pois ambos aplicam a mesma política com pequenas diferenças no modo de governar.

Atualmente as provas de mérito não são obrigatórias, com o passar do tempo serão atreladas ao processo de Avaliação de Desempenho, no caso dos professores inclui: Prova de Mérito, Avaliação de Desempenho (estágio probatório), meta da escola aferida via os indicadores de desempenho de avaliação externa dos alunos.

O objetivo é passar a questionar e acabar de vez com a estabilidade dos funcionários públicos de modo a conseguir maior subordinação e, no caso dos professores, nos sobrecarregar de atividades que não têm qualquer relação com a nossa profissão.

Enquanto a imprensa burguesa (Folha de São Paulo, Rede Globo, Estadão, DGABC) posicionava-se a favor do governo acusando-nos de estarmos fazendo campanha eleitoral, as centrais governistas (CUT, Força Sindical, CTB, CGT) não fizeram nada para fortalecer a greve dos professores. A CUT, para quem a APEOESP contribui com mais de R$ 120 mil por mês não divulgou (publicação de cartas abertas em seus jornais, sites, etc) e nem discutiu a greve com os trabalhadores das várias categorias. Teve sindicato no ABC paulista que negou empréstimo de carro de som e não aceita contribuir para o fundo de greve.

Mesmo as organizações sindicais de esquerda como a CONLUTAS (dirigida pelo PSTU) e a INTERSINDICAL (dirigida pelo PSOL) pouco fizeram e não se envolveram na greve de modo efetivo. Os sindicatos ligados a essas organizações tampouco se solidarizaram ativamente (para além dos discursos) com a greve dos professores. A maioria da esquerda também deixou de fazer a discussão da profundidade dessa greve com os demais trabalhadores. Isso demonstra que ainda prevalece a concepção corporativista – mesmo nos meios mais combativos – de que a greve dos professores é apenas problema dos professores e não uma questão que envolve toda a classe trabalhadora e que deve ser tratado como um problema de todos os trabalhadores e não apenas de uma categoria.

Além disso, a quase totalidade das correntes de esquerda também deu muito pouco peso ao caráter estratégico da nossa greve de enfrentar não apenas um projeto estadual, mas também federal e inclusive um projeto de estado e do sistema capitalista.

Isso fez com que um amplo setor da categoria ficasse preso ao discurso da maioria da direção do sindicato (Articulação/ArtNova/CSC) de que a culpa era do Serra. Discurso extremamente conveniente que visava apenas desgastar a imagem de Serra e do PSDB, ao passo que para a vitória efetiva do movimento seria necessário formas mais avançadas e mais amplas que colocassem em xeque o projeto como um todo.

De qualquer forma, independentemente de seus resultados imediatos, a greve fez com que a categoria dos professores voltasse a se mobilizar e, principalmente, a discutir e problematizar as questões da Educação e do movimento de professores. Podemos dizer que passamos a pautar os problemas estruturais da Educação no estado e no Brasil.

Outro elemento extremamente importante foi o surgimento de ativistas que assumiram tarefas relevantes na condução/sustentação da greve. Um dos maiores desafios será preservarmos e ampliarmos a nossa união e organização, envolvendo-nos como Representantes de Escola, formando redes de comunicação e integrando-nos às Comissões de Trabalho nas subsedes para uma renovação de idéias e forças no Sindicato e na rede pública de ensino.

O interesse da burguesia e do governo em derrotar a greve dos professores em São Paulo a fim de impedir a reação e a repercussão por todo o movimento de trabalhadores fica como exemplo do quanto precisamos unificar as nossas lutas se quisermos manter os nossos direitos e a nossa sobrevivência.

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OSCAR 2010: Por que “Guerra ao Terror” e não “Avatar”

A lógica do espetáculo e o Oscar

No clássico “Sociedade do Espetáculo”, de 1967, Guy Debord identifica um salto de qualidade nos mecanismos de mistificação ideológica, por meio do qual se criou uma esfera que concentra em si toda a representação do mundo, substitui a representação real, impede a manifestação do real e impõe o domínio da falsificação. É a essa esfera que Debord denomina espetáculo. A característica central do mundo do espetáculo é a falsificação. O inautêntico se impõe como verdade e bloqueia a aparição do autêntico.

Todas as relações sociais trazem a marca da encenação, do inautêntico, do falsificado. O fetichismo da mercadoria se concretiza como império da imagem, da narrativa e da encenação. Tudo é performance e nada é ação. Não se trata de uma simples explosão quantitativa do volume de produção e influência da indústria cultural e dos meios de comunicação, mas da conformação de toda uma estrutura que permeia de alto a baixo as relações sociais, da cultura até a política.

Periodicamente, o Espetáculo precisa produzir uma pseudo-negação do sistema, pois do contrário as pessoas podem chegar a alguma forma verdadeira de negação. A pseudo-negação do sistema está em certas obras de arte, vendidas como produtos da indústria cultural, que apresentam elementos de crítica da realidade. Tais obras mobilizam as emoções e a inteligência dos espectadores contra aspectos parciais do sistema, mas não lhes dão os instrumentos para uma negação do sistema na sua totalidade. Assim, o potencial crítico se esteriliza na falta de ações práticas e o público espectador retorna à passividade pretendida.

Esse seria o caso de um filme como “Avatar”, que apresenta uma crítica da destruição da natureza e das invasões imperialistas, mas uma crítica parcial, que não atinge o núcleo do sistema, a lógica do capital. Mas o filme de James Cameron é um caso à parte, pois as proporções extraordinárias do seu sucesso (nada menos do que o recorde mundial de bilheteria), forçaram a indústria cultural a providenciar um antídoto contra os seus efeitos “negativos”, recusando-lhe a consagração final dos prêmios Oscar, concedidos ao rival “Guerra ao Terror”.

Essa escolha foi interpretada como uma vitória do “favorito da crítica” contra o “favorito do público”, ou ainda, de um “filme de arte” contra um “filme de efeitos especiais”, um filme “independente” e “artesanal” contra um “filme dos grandes estúdios” e sua multibilionária máquina publicitária. Mas como se trata de espetáculo, as aparências podem ser enganosas…

 

O paradoxo da técnica em “Avatar”

“Avatar” é indubitavelmente um salto adiante na capacidade do cinema de funcionar como uma armadilha sensorial que suspende o espectador da sua relação com o mundo real e o arremessa no universo da fantasia. A sala escura, a tela gigante, a luz em que brilham os astros e estrelas, o volume ensurdecedor do som, a trilha sonora cuidadosamente arquitetada para conduzir as emoções, o ritmo da edição, a profusão dos efeitos especiais, ganharam nas últimas décadas a companhia das imagens em CGI e no caso em questão, da profundidade em três dimensões.

A extrapolação da corrida tecnológica para o cinema corresponde proporcionalmente à vigência dessa mesma corrida tecnológica na vida social em geral. Não é apenas o cinema que se tornou irreal, mas a vida real que se tornou cinematográfica, espetacular, fantástica, ilusória e instável, no contexto histórico do capitalismo plenamente mundializado, o que vale dizer, plenamente atravessado pela aceleração explosiva das suas contradições constituintes. Nesse sentido, o cinema mais espetacular e irreal pode ser também o produto ideológico mais típico e ilustrativo de determinados fenômenos sociais muito reais. Isso atualiza o valor crítico do cinema e da crítica de cinema, ainda que o cinema em questão venha à tela completamente despido de intenções críticas; e demonstra também a impossibilidade de se fazer crítica de cinema e de arte com alguma seriedade e coerência sem uma perspectiva crítica do conjunto da vida social.

“Avatar” representa a chegada ao patamar histórico em que qualquer coisa que pode ser imaginada pode também ser filmada de modo tecnicamente convincente, o que coloca em pauta uma outra questão: o hiper-realismo proporcionado pela técnica cinematográfica acrescenta credibilidade à fantasia ou destrói a sua fecundidade, já que não deixa nada ao espectador para ser livremente imaginado? Ou dito de outra forma, porque o cinema fantástico hiper-realista deve ser considerado um avanço em relação ao teatro de bonecos, se este pode ser tão eficiente quanto aquele na sua tarefa fundamental, que é contar uma história?

O culto da novidade e da técnica como substitutos da vida é mais um sintoma da patologia social contemporânea, da qual “Avatar” é mais uma confirmação. Mas é uma confirmação invertida, pois a moral da história é justamente… a volta à natureza!

Esse paradoxo é o grande achado de “Avatar”. O homem adquire a capacidade de viajar pelo espaço, conservar-se vivo em sono criogênico, colonizar outros planetas, construir e reconstruir corpos por engenharia genética, controlar remotamente um outro corpo, etc., mas o seu objeto de desejo é retornar à mesma relação com a natureza que os índios praticam: caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira…

 

O bom-mocismo do século XXI

A história de “Avatar”, que já foi descrita como “Pocahontas no espaço”, é um completo clichê: soldado se apaixona por nativa e se volta contra os colonizadores dos quais era parte. O que torna essa narrativa culturalmente significativa é o acréscimo da questão ambiental. O ambientalismo é o bom-mocismo do século XXI. É a causa que (aparentemente) unifica a todos, gregos e troianos, o que ajuda a explicar o sucesso do filme (e o recorde de bilheteria), para além do refinamento visual. Ao colocar de um lado a defesa da natureza e de outro a sua destruição, “Avatar” fornece ao público heróis para os quais torcer e vilões aos quais odiar, e não há nada que o grande público aprecie mais do que heróis virtuosos derrotando vilões odiosos. Sem isso, não há efeitos especiais que bastem para construir um sucesso artístico e comercial dessa magnitude. Mesmo sendo rasa, banal, repetitiva, pouco criativa, a narrativa central de “Avatar” fornece ao espectador uma experiência dramática gratificante, ou seja, boa diversão.

A consagração artística e comercial do ambientalismo em “Avatar” (através de uma overdose de técnica cinematográfica) representa ainda uma espécie de “vingança estética” contra a era Bush. O discurso dos vilões do filme é literalmente o mesmo dos sinistros personagens que povoaram os noticiários na década de 2000, os procônsules estadunidenses no Oriente Médio e os executivos rapaces da Enron, Halliburton, AIG, Lehman Brothers e Cia. O executivo que dirige a exploração do mundo de Pandora em “Avatar” diz que tudo o que importa para os acionistas é o balanço trimestral, a mesma obsessão dos especuladores trazidos à berlinda pela atual crise econômica. O coronel que chefia a milícia particular da empresa diz que se deve “combater o terror com terror”, a mesma coisa que os Estados Unidos fazem no Iraque e no Afeganistão (e em Guantánamo ou em outras bases secretas nas quais torturam “suspeitos de terrorismo”) ou que Israel faz contra Gaza.

Dando mostras do quanto está sintonizado com o sentimento anti-Bush ainda presente na opinião pública mundial, “Avatar” dá a pista dos próximos alvos da “guerra ao terror”, quando lembra que o protagonista, antes de ser mandado para o espaço, serviu na Venezuela, enquanto o coronel servira na Nigéria, ambos “coincidentemente” produtores de petróleo. Ao aterrissar em Pandora, o ex-fuzileiro paraplégico ainda acredita que na Terra as forças armadas estadunidenses estão “lutando pela liberdade”, sendo que os problemas acontecem quando soldados servem como mercenários de uma empresa privada.

 

Algumas verdades por meio da fantasia

Algumas das falas do protagonista poderiam ter saído da boca de um veterano do Iraque dos nossos dias de crise econômica e desemprego galopante nos Estados Unidos, como quando ele diz que seria possível reparar sua espinha para que pudesse voltar a andar, “mas não nessa economia, não com essa pensão”. Gradualmente o protagonista muda seu ponto de vista sobre o mundo de onde veio, pois passa-se para o lado dos nativos. Supera-se também aos poucos a hostilidade mútua entre o soldado e os cientistas. A separação entre o homem de pensamento e o homem de ação, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, típica da cultura estadunidense, também é vencida conforme o soldado se torna capaz de refletir (o videolog mostra-se uma ferramenta bastante útil, mas também perigosa) e os cientistas de se engajar numa rebelião contra a corporação. “Avatar”subverte ainda outro padrão típico da cultura estadunidense, retirando as mulheres do seu papel subalterno tradicional e dando-lhes funções decisivas, como aliás acontece em todos os filmes de Cameron. Em “Avatar”, temos personagens femininas fortes, como a cientista-chefe e até a piloto de helicóptero, mas o destaque fica para a guerreira nativa, capaz de desafiar as tradições de seu povo para unir-se ao estrangeiro por quem se apaixonou.

“Cedo ou tarde, sempre temos que acordar”, aprende o fuzileiro. A operação de exploração mineral em Pandora é uma metáfora de todas as invasões imperialistas no planeta Terra. Repete-se ali o mesmo processo que se desencadeou sobre a América, a África e a Ásia, onde se destruíram povos, culturas e ecossistemas em escala genocida e cataclísmica em busca de riquezas efêmeras, com a diferença de que, na batalha de Pandora, os nativos venceram. E o público que lotou os cinemas do mundo inteiro para dar a “Avatar” o recorde de bilheteria torceu pela vitória dos nativos.

Quando até mesmo um filme de Hollywood coloca em cena heróis em luta contra uma típica empresa imperialista, isso representa uma vitória política do ambientalismo, algo ideologicamente significativo. Mas o ambientalismo tal como é praticado pelas ONGs e movimentos ecológicos padece de um sério limite, que é o mesmo limite em que se encerra o filme “Avatar”, ou seja, uma defesa abstrata da natureza e um repúdio também abstrato da técnica e da “civilização industrial”. Ora, o problema da humanidade não está no excesso de técnica, mas no fato de que toda a tecnologia existente é propriedade de uma minoria de capitalistas, ao invés de servir à maioria, que são os trabalhadores. Cedo ou tarde a humanidade terá que acordar, como o protagonista de “Avatar”. Ou a classe trabalhadora se levanta e destrói o capitalismo ou o capitalismo destruirá o planeta.

 

A apologia do império em “Guerra ao terror”

O mesmo tipo de guerra criticado em “Avatar” é examinado clinicamente em “Guerra ao terror”. O filme de Kathryn Bigelow (ex-mulher de Cameron) não traz nenhuma inovação estética significativa. Não traz avanços técnicos revolucionários, não traz novidades na forma narrativa, que segue a linearidade tradicional, não apresenta interpretações excepcionais, com um elenco que se situa na média das atuações da escola hollywoodiana, etc. Não há nada que justifique artisticamente a sua escolha como vencedor do Oscar, a não ser o critério político. A importância do filme está em apresentar um retrato realista da vida dos soldados estadunidenses no Iraque.

O gênero dos filmes de guerra já trouxe algumas pérolas ao cinema, como “Apocalipse Now”, “Platoon” e “Nascido para matar”, que tratam todos da guerra do Vietnã. Todo o potencial crítico de tais filmes se esgota diante de uma séria limitação: seu foco está no sofrimento dos soldados estadunidenses, e não na iniqüidade da guerra em questão. O movimento contra a guerra do Vietnã dentro dos Estados Unidos, do qual tais filmes representam uma síntese, tinha como seu foco a defesa da vida dos jovens estadunidenses mandados para a guerra, e não a condenação da própria guerra de invasão imperialista a um outro país. O povo vietnamita aparecia algumas vezes como vítima, mas nunca como herói, pois esse é o papel que cabe aos povos periféricos no cinema, ao lado do de vilão. O herói é sempre por definição o jovem branco, protestante e anglo-saxão.

“Guerra ao terror” também se situa nesse mesmo registro, mas com alguns agravantes. O filme se concentra na psicologia dos soldados no Iraque, em especial de uma equipe que trabalha na desativação das bombas que são a principal arma da resistência iraquiana. A figura do especialista em bombas é romantizada por meio do clichê do herói relutante, indisciplinado e dotado de uma ousadia que beira o descuido (neste caso, o suicídio). Ao fazer isso, perde-se o horizonte em que se poderia discutir a guerra como um todo, ou seja, o significado da invasão estadunidense e suas causas políticas e econômicas. Descartado esse que deveria ser o eixo central de qualquer investigação séria sobre a realidade da guerra em questão, o que resta é uma apologia indireta da bravura e dedicação dos soldados. Ou seja, uma apologia da própria guerra.

 

Hollywood se reconcilia com a Casa Branca

Logo no início de “Guerra ao terror” uma bomba explode porque um soldado não consegue deter a tempo um iraquiano usando um celular. Outra cena-chave acontece quando um garoto é usado como bomba. Tais exemplos ilustram o discurso de que qualquer iraquiano (ou venezuelano, brasileiro, etc.) capaz de manipular um artefato tecnológico é uma ameaça, e de que os adversários do sistema (terroristas por definição) são capazes de qualquer desumanidade em sua guerra santa. Isso legitima a guerra ao terror. Em outras palavras, está declarada a guerra contra toda a população pobre do planeta, inimiga em potencial do império. A guerra ao terror substitui a Guerra Fria e fornece o pretexto para a manutenção de um aparato militar tão obsoleto tecnicamente (“para que servem os tanques?”, notou um dos soldados do filme) quanto necessário economicamente para a sobrevivência da economia artificial do império.

Ao descrever a verdade da guerra do Iraque, “Guerra ao terror” expõe o sifgnificado profundo da política imperialista de guerra mundial da burguesia contra os trabalhadores do mundo inteiro, em lugar da antiga guerra mundial entre Estados. Por ser mais verdadeiro, “Guerra ao terror” foi premiado pelo Oscar, mesmo que isso signfique a confissão feita por Hollywood das verdadeiras intenções do imperialismo estadunidense contra o resto do mundo. Ao desconsiderar a simpatia mundial para com “Avatar”, Hollywood manda o recado de que está se lixando para o resto do mundo.

A crítica feita por “Avatar” está em certo sentido deslocada, pois remete à era Bush, já superada pela eleição de Obama. Se tivesse surgido no encalço de um documentário de Michael Moore ou de “Uma verdade inconveniente”, a superprodução de James Cameron teria sido imbatível. “Avatar” perdeu o Oscar por ter perdido o timing. Na Era Bush, a crítica ainda era de bom tom ou pelo menos aceitável. Agora que “tudo mudou”, Hollywood se alinha com a Casa Branca e a crítica (mesmo limitada e parcial) cede lugar à apologia. A crítica à era Bush pairou num vazio, enquanto a verdade política da era Obama está em “Guerra ao terror”. A Academia de Hollywood foi fiel à verdade ao premiar a apologia da guerra, pois a eleição de Obama não mudou substancialmente a política estadunidense, apenas a sua embalagem. Em se tratando de espetáculo, a embalagem faz toda a diferença.

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