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O trabalho escravo no Brasil: a acumulação para a metrópole e a resistência dos trabalhadores negros

O objetivo desse texto é abordar brevemente duas questões relativas ao trabalho escravo empregado no que hoje chamamos de Brasil: a utilização majoritária da renda auferida com o sistema escravista ( venda de escravos, produção desse trabalho compulsório) para a acumulação na Europa – portanto, não se destinava a formação de uma burguesia interna; e a relação subjetiva do trabalhador escravo negro com a escravidão.

Partimos da compreensão de que a escravidão por aqui era parte do que o marxismo chama de acumulação primitiva do capital, ou seja, a produção derivada do trabalho escravo não era destinada ao mercado interno, mas ao mercado europeu, servia a acumulação para a metrópole. A combinação de venda de escravos, trabalho escravo e produção voltada para a exportação formam os elementos essenciais desse processo de acumulação.

A acumulação com o lucro resultante do comércio de escravos era fabulosa, constituindo-se como uma atividade econômica das mais lucrativas. Para se ter uma idéia o escravo negro era um dos principais produtos de importação do Brasil no final século XVIII: "O ramo mais importante do comércio de importação é, contudo, o tráfico de escravos que nos vinham da costa de África: representa ele mais de uma quarta parte do valor total da importação, ou seja, no período 1796-1804, acima de 10.000.000 de cruzados, quando o resto não alcançava 30.000.000". Prado Júnior (História econômica do Brasil, p.116). Ainda segundo caio Prado Júnior, no final do século XVIII e início do XIX, o total de escravos que desembarcavam por aqui era cerca de 40.000 por ano. Dá para se ter idéia do potencial do aumento do capital de comerciantes que se dedicavam ao tráfico negreiro.

Em relação às taxas de lucro do que se produz com a utilização do trabalho escravo dá para supor que eram elevadíssimas. O fato de os escravos serem submetidos às piores condições de trabalho e de subsistência faz com que o tempo do trabalho destinado à satisfação de suas necessidades (tempo de trabalho necessário) seja reduzido a um curto intervalo de tempo e consequentemente o tempo de trabalho excedente constitui quase a totalidade de sua jornada de trabalho que não raro ultrapassava 15 horas diárias, incluindo sábados, domingos e feriados.

Ao comércio de homens e mulheres como escravos e a utilização em larga escala do trabalho escravo agrega o fato de que a produção era de monocultura de matérias primas e que ela estava essencialmente voltada para a metrópole onde servia para a formação das fortunas. Ou seja, o que se produzia era voltado quase que exclusivamente para a exportação. Esse era o "sentido da colonização": "Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante, depois, algodão e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso" (Caio Prado, Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. p. 31-32)

A expansão ultramarina, portanto, não era resultado do desejo da Nobreza, mas uma necessidade histórica que se colocava para responder às pressões econômicas do novo sistema social que surgia das cinzas da sociedade feudal. Assim, essa relação que a metrópole estabeleceu com a colônia portuguesa foi fundamental para a consolidação da acumulação primitiva do capital e foi a que deu bases para o financiamento do capitalismo industrial nos séculos seguintes no continente europeu.

O processo de acumulação do capital (assim como em outras de suas fases) ocorre em base a uma super exploração do trabalho, mas esse processo não aconteceu sem resistência por parte dos trabalhadores negros escravizados. Historiadores apontam várias formas de resistência, entre elas a que ficou mais conhecida pela complexidade de sua organização econômica e social, os quilombos.

Há, no entanto, historiadores que minimizam o processo de resistência apontando que sequer a relação entre senhores escravocratas e escravos era negociada e, portanto livre de violência. E mesmo quando havia alguma forma de violência essa era considerada como justa pelos próprios escravos, ou seja, os castigos eram como lições pedagógicas. Uma das conclusões que podemos tirar dessas concepções historiográficas (reconheço que há diferenças entre eles) é que há uma acomodação e aceitação por parte do escravo de sua condição, ou seja, um escravo dócil porque tem um senhor generoso. Prevalece nessa tese a coexistência pacífica entre ambos.

De acordo com essa concepção, por parte do escravo havia uma consensualidade na escravidão, um acordo entre escravos e escravocratas. Esse consenso fazia com que o escravo pudesse se sentir não como instrumento, como coisa, mas como ser humano que se deixa levar pela passividade e aceita os desígnios de ser submetido à escravidão.

O absurdo da tese consensualista está no fato de que entre o homem que escraviza e o escravizado há uma relação contratual, com direitos e garantias para as duas partes. E como sabemos uma relação contratual só pode ocorrer entre homens livres, o que de fato desmonta a tese do consenso. O uso do chicote para impor a vontade do escravocrata é outro elemento que desmonta a tese de que havia qualquer forma de consenso entre senhores e escravos.

Penso ser impossível, pelas necessidades da acumulação primitiva do capital, qualquer relação de consensualidade ou mesmo de "pacto social" entre escravos e escravocratas. A violência (em todas as suas formas) ao extremo é a explicação plausível para entendermos como um sistema de apropriação de trabalho alheio tão cruel tenha durado tanto tempo. "Para explicar o caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção é necessário compreender que o escravismo é um sistema de produção de mais-valia absoluta, sistema esse no qual a mercadoria aparece imediata e explicitamente como produto da força de trabalho alienada. Aliás, o escravo é duplamente alienado, como pessoa, enquanto propriedade do senhor, e em sua força de trabalho, faculdade sobre a qual não pode ter comando. O escravo é obrigado a produzir muito além do que recebe para viver e reproduzir-se; e não dispõe de condições para negociar, nem o uso da sua força de trabalho, nem a si mesmo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento do escravismo" Octávio Ianni.

Para Gorender, o que havia era uma adaptação, que não quer dizer passividade. No processo de resistência (que se manifestava em diversos aspectos da vida social) a "adaptação para seguir sobrevivendo" tornava-se uma forma de resistência. Mesmo que tenham nascido e morrido na condição de escravos isso não quer dizer que tenham aceitado tal condição. Essa resistência, por exemplo, podia se manifestar no relaxamento no trabalho, trato danoso para com os animais das fazendas, a sabotagem, etc. Para esse autor, a resistência era parte ativa do cotidiano dos escravos. Essa forma de resistência não se tratava exatamente de uma escolha, mas o que em muitos casos era o possível diante das condições objetivas impostas, uma vez que a elite colonial brasileira impunha aos escravos uma severa repressão a toda forma de rebelião. Assim, a adaptação não era uma acomodação, mas uma forma de resistência possível.

Destaco essa forma de resistência para ressaltar que a luta dos escravos contra a sua condição era permanente e cotidiana. Mas também merecem destaque todas as formas de resistência, em especial a que se organizava nos quilombos e ainda mais especial a dos Palmares, que questionava não só a escravidão, mas que colocou em xeque todo o modelo econômico implementado pela Coroa. Por isso o ódio particular da elite escravocrata brasileira contra esses resistentes quilombolas.

É importante compreender e dar valor a todos esses processos de resistência porque significa que entendemos que se o sistema escravocrata, pelas condições objetivas, conseguiu coisificar o seu ser social, graças a resistência que os milhões de escravos exerceram durante todos esses anos, os senhores escravocratas não conseguiram coisificar a sua subjetividade.

Graças a essa subjetividade os escravos conseguiram continuar as suas lutas e essas mesmas lutas que os escravos travaram durante séculos conquistaram o fim do trabalho compulsório. Mas sabemos que isso não significou o fim das condições precárias de vida, pelo contrário, vários aspectos de nossa vida denunciam que a verdadeira liberdade do trabalho ainda está por vir. E isso só vai acontecer quando nós trabalhadores conquistarmos o fim da escravidão assalariada.

As palavras como reprodução do preconceito

Os temas relativos ao racismo e a escravidão são muito sensíveis porque neles, se por um lado significa poder conhecer o papel dos trabalhadores negros e suas lutas pela libertação, por outro lado também nos deparamos com práticas que são preconceituosas e até racistas. A história brasileira que aparece nos livros, meios de comunicação, etc é aquela forjada pela classe dominante branca, da qual a ideologia dominante impõe sobre todos nós modos de agir que em muitas ocasiões terminamos por utilizar palavras e expressões que reproduzem a idéia de que tudo que é preto ou negro sempre está associado a algo ruim ou negativo.

As palavras têm um significado que foi sendo construído historicamente e essa construção, via de regra, obedece a interesses político ideológicos da classe dominante, uma vez que as palavras -assim como a linguagem- também se constituem como instrumento de dominação dos exploradores.

A expressão "a coisa tá preta" é uma dessas em que logo se assemelha a situações difíceis, ruins, seja na vida ou mesmo na situação política do país. Poderíamos também falar da expressão consagrada pelo filme Star Wars "o lado negro da força" utilizada como forma de exprimir que um dos personagens passou para o lado do mau.

Outra palavra muito utilizada é o verbo "denegrir", geralmente utilizado para desqualificar a reputação de alguém e como o significado dela nos dicionários é tornar negro, escuro; enegrecer, escurecer, logo é feita a associação negro e desqualificação, negatividade se torna seu sinônimo.

Às vezes até utilizamos essas palavras sem saber o seu significado e o papel que têm, de reproduzir a linguagem dos dominadores, mas é preciso que fiquemos cada vez mais atentos para, na nossa prática militante, não reproduzamos tais preconceitos. Esses são apenas alguns exemplos relativos à questão racial. Há outros termos que se referem a mulheres, homossexuais e etnias, expressões estas que também merecem a nossa repulsa.

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A revolução dos “jacobinos negros” no Haiti

A revolução dos "jacobinos negros" no Haiti

É parte fundamental da luta dos trabalhadores negros a tarefa de reconstituir a história de resistência contra os séculos de escravidão, exploração e opressão. Ao contrário do que é normalmente veiculado, os negros jamais aceitaram passivamente o processo de serem raptados na África, vendidos como escravos, tratados como animais e explorados durante séculos nas Américas. Inúmeras formas de resistência foram praticadas, desde as saídas individuais desesperadas, como os suicídios, fugas, assassinato de capatazes, senhores e autoridades, saídas "por dentro do sistema" como a compra da liberdade através de cartas de alforria, até as formas coletivas, como as rebeliões, fugas em massa, quilombos e a revivescência das religiões, dos costumes e da cultura africanas.

No Brasil subsistem inúmeras comunidades de remanescentes quilombolas, herdeiros da resistência de seus ancestrais contra a escravidão. O mais famoso episódio de resistência contra a escravidão e também o mais atípico dos quilombos, pelo seu tamanho, longa duração e heroísmo de sua guerra contra os escravistas, foi o quilombo dos Palmares (1597-1695), cuja memória do principal líder, Zumbi, é celebrada no dia 20 de Novembro, dia nacional da consciência negra.

Fora do Brasil, um dos mais marcantes episódios da luta dos negros foi a revolução haitiana. O jornalista e militante negro Cyril Lionel Robert James (1901-1989), nascido no Caribe e tendo vivido a maior parte na Inglaterra e Estados Unidos, publicou em 1938 um clássico da historiografia marxista intitulado "Os Jacobinos Negros", que narra a história da luta dos negros haitianos contra a escravidão e o domínio colonial e a trajetória de seus principais líderes. A obra de C.L.R. James faz uma análise rigorosamente marxista e científica das classes e frações de classes da sociedade haitiana, suas aspirações e ideologias, e suas relações com o mundo colonial, no momento em que o capitalismo experimentava a Revolução Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa.

Breve história do Haiti

O Haiti se localiza na parte ocidental da ilha de São Domingos (inicialmente batizada de Hispaniola por Colombo), com uma área territorial coincidentemente quase idêntica ao do Estado de Alagoas, em que existiu o quilombo de Palmares. A parte oriental forma a República Dominicana. A ilha de São Domingos foi inicialmente uma colônia espanhola, onde já em 1560, no primeiro engenho de cana de açúcar, de propriedade do governador Diego Colombo, filho do navegador, aconteceu a primeira revolta de escravos. Depois do massacre dos povos originários, de etnia arauaque e taino, as mesmas que habitavam o restante das ilhas do mar do Caribe, estabeleceu-se uma próspera colônia de "plantation", especializada na produção de cana de açúcar, com base no trabalho escravo de negros africanos.

Em fins do século XVII, piratas franceses, em sua maioria originários da região da Normandia, começam a se estabelecer na parte ocidental de São Domingos, a partir de suas bases na lendária ilha de Tortuga, espécie de capital da pirataria no Atlântico. A língua hoje falada no Haiti, o "créole", tem origem em grande parte no dialeto normando. Em 1697 foi assinado um tratado entre as coroas da Espanha e da França, reconhecendo a soberania dos franceses sobre o território que mais tarde constituiria o Haiti.

Ao longo do século XVIII a riqueza da colônia francesa cresce enormemente, a ponto de se tornar responsável por dois terços do comércio exterior francês. Os proprietários de São Domingos acumulam uma riqueza gigantesca, comparável a dos nobres na metrópole. Por volta da década de 1790, a colônia francesa contava com uma população de cerca de 500 mil escravos negros, contra pouco mais de 30 mil brancos. Havia também alguns milhares de negros libertos, mulatos e mestiços, que chegaram a gozar dos direitos de homens livres, e também do direito de possuir por sua vez propriedades e escravos. Quando eclode a Revolução em 1789, os proprietários na colônia, brancos e mulatos, vêem a oportunidade da independência em relação ao domínio francês. Entretanto, os escravos tinham outros planos…

A revolta dos escravos e seus líderes

Um dos traços característicos do regime escravista na São Domingos francesa era a crueldade, traço bastante ressaltado por James. Os constantes abusos, maus-tratos, castigos, torturas e mortes de escravos criavam um clima de ódio e revolta explosivos. Quando o governo revolucionário na metrópole proclama a libertação dos escravos nas colônias, os proprietários estavam mais preocupados com suas rivalidades internas, pois os mulatos queriam reaver os direitos que lhes haviam sido recentemente cassados, o que os brancos tentavam impedir. Os negros se aproveitaram disso e iniciaram uma rebelião, em 1791. O levante foi coordenado a partir dos rituais de vudu, cujos batuques ecoavam pelas florestas, unindo os negros nas senzalas aos seus irmãos nos quilombos, percorrendo toda a colônia e preparando o momento do ataque.

A primeira fase da revolução foi caótica, com os negros atacando repentinamente os brancos, assassinando os senhores e suas famílias, incendiando as propriedades e as cidades. Em meio a esse caos, os ingleses e os espanhóis se aproveitam para invadir partes da colônia francesa. É então que, em 1794, emerge a figura de Toussaint Breda, que depois adotaria o sobrenome de L'Ouverture, um escravo de mais de 40 anos, que trabalhava como secretário de um proprietário mais esclarecido (o qual inclusive salvou do massacre). Toussaint, homem de inteligência extraordinária (James o compara a Napoleão), foi alfabetizado em francês erudito e latim, tendo a oportunidade de ler a obra do abade Raynal sobre a escravidão no Caribe e os comentários de Júlio César sobre a guerra contra os gauleses.

Com este cabedal, e também o conhecimento dos ideais iluministas que guiaram a primeira fase da Revolução Francesa, propôs-se a liderar um exército de negros e constituir na colônia um novo estado, irmanado à França revolucionária. O ideal de Toussaint era um país unido à França sob um regime democrático e politicamente igualitário, em que brancos e negros teriam direitos iguais. Com este ideal, ele chegou a ter a aliança de Rigaud, líder dos mulatos, com o qual posteriormente rompeu e derrotou em batalha. Além de líder militar, Toussaint era também político e administrador competente, capaz de conter os excessos vingança contra os brancos, conseguir a cooperação dos proprietários, atender as reivindicações dos negros, que deixaram de ser escravos, e negociar com outros países, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

Desfecho da revolução

A narrativa de James é uma defesa apaixonada da luta dos explorados e oprimidos, mas não deixa de apontar, de maneira implacável, os erros e limites de seus líderes, de forma a servir de lição para as lutas dos trabalhadores em vários outros cenários. Toussaint pretendia manter a economia haitiana em funcionamento, e para isso não encontrou outra forma que não forçar os ex-escravos a continuar trabalhando nas fazendas e engenhos, sob direção dos proprietários remanescentes. Ele jamais deixou de acreditar na França e sua revolução, sem perceber que, sob Napoleão, o regime caminhava para a estabilização e o estancamento das conquistas revolucionárias.

Em 1801, Napoleão enviou seu próprio cunhado a São Domingos, o general Leclerc, no comando de um exército que chegou a ter 34 mil soldados. Inquieto com a ameaça de retorno à escravidão, o sobrinho de Toussaint, chamado Moïse, comanda um ataque contra os brancos, pelo qual foi punido pelo tio. A punição de Moïse criou um abismo de desconfiança entre Toussaint e os negros, que passaram a achar que seu líder trabalhava pela restauração da escravidão. Toussaint acabou preso por Leclerc e enviado para a França, morrendo no cárcere em 1803, sem jamais ser ouvido por Napoleão, a quem tentaria convencer da necessidade de manter a liberdade dos negros como condição para manter a fidelidade da colônia à França.

Enquanto isso, em São Domingos, os tenentes de Toussaint que permaneceram no comanndo do exército por ele formado, Dessalines, Christophe, Clairveaux, Maurepas, Pétion, conduzem uma guerra implacável contra Leclerc, que acabaria morrendo de febre em 1803, assim como parte de seu exército. A vitória final dos negros conduz ao massacre dos brancos e proprietários que restaram. A independência é proclamada em 1804 por Dessalines e o país adota o nome de Haiti, que na língua indígena significa "lugar montanhoso".

A história do Haiti até os dias de hoje

Logo após a independência, o Haiti se viu cercado por um isolamento internacional comparável somente ao bloqueio que hoje pesa sobre Cuba. O exemplo da revolução dos escravos, terrível para os senhores de todo o continente, precisava ser combatido e cercado a qualquer custo, para garantir a paz dos dominadores. A economia regrediu para uma agricultura de subsistência e a dívida para com a França sugou as riquezas do país durante décadas. Em 1913 o país foi invadido por fuzileiros estadunidenses. Entre 1957 e 1986 viveu sob a ditadura de François Duvalier, apelidado "Papa Doc", e seu filho Claude Duvalier, o "Baby Doc", que governavam por meio dos esquadrões da morte chamados "Tonton Macoutes". Um dos líderes da resistência à ditadura, o padre Jean-Bertrand Aristide, foi presidente do país duas vezes desde então. Tendo por fim capitulado ao neoliberalismo, acabou mesmo assim removido do poder pelos Estados Unidos, em 2004.

Desde então, o país vive sob ocupação estrangeira, com uma tropa da ONU liderada pelo Brasil, que cumpre assim vergonhosamente o papel de braço armado do imperialismo para oprimir a população miserável do Haiti e impedir suas lutas. No início de 2010 o Haiti foi vítima de um fortíssimo terremoto, que destruiu a já precária infra-estrutura do país, e em outubro deste ano alastrou-se uma epidemia de cólera. O país mais pobre do hemisfério, o primeiro em que os trabalhadores protagonizaram uma revolução que levaria à independência, se ressente da falta de novos jacobinos e revolucionários que liderem seu povo contra a dominação.

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Para acabar com o racismo é preciso superar o capitalismo

Para acabar com o racismo é preciso superar o capitalismo

O racismo é um problema social e histórico. Ele não existe porque os negros possuam qualquer "característica de inferioridade" ou os brancos sejam "naturalmente" opressores.

O racismo está ligado à exploração. As classes dominantes sempre buscaram aproveitar-se das diferenças de cor, gênero, nacionalidade, região, etc, para construir assim uma hierarquia na exploração. Essa hierarquia ao mesmo tempo divide os explorados em níveis diferentes de exploração (mais e menos explorados) e também justifica que uns sejam mais explorados por… serem negros.

No Brasil, conforme o capitalismo se estabelecia como sistema econômico, o racismo do período escravista foi assimilado, pois isso permitia aos empresários aplicar níveis mais intensos de exploração sobre os negros e as mulheres negras em particular, embora desde o inicio tivesse havido inúmeras formas de resistência. No topo dessa hierarquia de exploração encontram-se a burguesia e seus agentes: o Estado, a mídia, a Igreja, setores da classe mais alta que incorporam os interesses da burguesia.

Assim, a conclusão mais importante que tiramos, mas que não é de forma alguma unânime, é que para acabar de vez com o racismo é preciso acabar também com o capitalismo e com toda forma de exploração do homem pelo homem.

As lutas por mudanças mínimas, mesmo dentro do capitalismo, no sentido de questionar e enfrentar o racismo e incorporar a população negra são fundamentais, mas devem ser sempre consideradas como paliativos, que ainda não são a saída para o problema do racismo. A luta pela libertação real do povo negro é parte fundamental da luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista, e portanto o racismo deve ser considerado um problema a ser discutido e enfrentado por todos os trabalhadores, no sentido de unificar a nossa classe, com as suas características e diversidades, contra a burguesia que, por sua vez, também tem negros em seu meio.

Muitas correntes políticas ou acadêmicas, ao terem um enfoque apenas limitado à questão racial, sem um conteúdo de classe, sem abordá-la como parte da luta geral dos trabalhadores, acabam caindo no jogo da burguesia, que muitas vezes realça a opressão de raça apenas para silenciar sobre a dominação de classe, deixando a estrutura social capitalista livre do combate prático-crítico e livre para aprofundar a desigualdade e a exploração.

De fato, nos dias atuais é ainda mais difícil concebermos um movimento de libertação real do povo negro do racismo, sem que se enfrentem os limites do sistema capitalista – a lógica do lucro.

O sistema capitalista, que sobrevive cada vez mais da ajuda externa do estado, não reserva possibilidades de melhorias efetivas e sustentáveis para a maioria da população negra. O máximo possível dentro dos limites da lucratividade do capital é a ascensão de uma pequena elite negra, ao mesmo tempo em que a grande maioria permanece exatamente como estava antes.

Unir trabalhadores negros e brancos pela emancipação geral

Impor um conjunto de políticas efetivas de reparação para os negros requer, portanto, esforços para ligar a luta histórica dos negros no Brasil como parte da luta do proletariado por sua emancipação, pois o negro de hoje está também inserido no mercado de trabalho, e justamente em posições mais exploradas. Assim, a luta racial deve assumir também um caráter de classe e ter como preocupação a identificação dos verdadeiros aliados e inimigos.

Não partir do referencial de luta anticapitalista é o principal limite ao qual estão presos aqueles setores que hoje se acomodam e aplaudem as políticas governamentais, ao mesmo tempo se calando para o fato de que, este mesmo governo que pede paciência aos negros é também o que cede bilhões aos banqueiros e empresários todos os anos, mantendo justamente a exclusão da maioria.

Políticas eficazes de reparação do racismo só poderão ser conquistadas enfrentando-se os patrões e seus agentes: os governos de plantão.

A bandeira das cotas proporcionais deve ser levantada, juntamente com outras políticas de reparação, e com a luta dos demais trabalhadores por um programa geral que responda não apenas à questão de raça, mas também à questão de classe. Esse programa unitário de trabalhadores negros e brancos deve apontar para a ruptura com a lógica do capital e para que os explorados – brancos e negros – se unam para estabelecer uma forma de poder da classe trabalhadora, voltada para enfrentar os grandes problemas sociais.

Essa unidade tão necessária entre trabalhadores negros e brancos em sua diversidade – e que não será facilmente alcançada, por todos os preconceitos e modelos que nos foram impostos no decorrer de séculos – é um desafio que temos que ser capazes de realizar na prática das lutas e de um programa global.

Nesse sentido, a proposta de cotas deve estar inserida numa proposta mais geral de lutas do conjunto da classe trabalhadora por emprego, moradia, saúde, educação digna e de qualidade. Que essas questões imediatas sejam impostas mediante a luta direta da classe como um todo. Que os resultados obtidos possam ser estabelecidos a partir de cotas que reconheçam as desigualdades hoje existentes e, ao mesmo tempo, lutem para superá-las. É preciso que a aliança entre os trabalhadores negros e brancos preserve os direitos específicos de cada setor, para que possamos enfrentar e vencer o capital e todas as formas de exploração e opressão da humanidade.

Assim, por exemplo, a reivindicação de que os empregos gerados pela luta sejam divididos em cotas proporcionais, deve vir combinada com a luta pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial, de modo que todos os trabalhadores se beneficiem desta mudança, através da geração dos milhões de empregos necessários. Nas universidades públicas, do mesmo modo, a luta pelas cotas deve se juntar à luta por mais vagas para que todos possam estudar.

É evidente que tudo isso só poderá ser imposto mediante a luta contra os interesses capitalistas e, em última instância, levará a uma ruptura do próprio sistema, ao questionar qual classe deve ter o poder na sociedade, se os trabalhadores (negros e brancos) ou a burguesia.

Somente uma sociedade socialista no profundo sentido da palavra – de socializar os meios de produção sob o controle e a serviço dos trabalhadores e da humanidade – é que pode colocar um fim à exploração e à desigualdade social entre os seres humanos, inaugurando um novo período na história humana onde tudo seja decidido democraticamente, respeitando-se as diferenças de gênero e raça, como diferenças físicas e não sociais.

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