Desde março de 2019 o Espaço Socialista e o Movimento de Organização Socialista se fundiram em uma só organização, a Emancipação Socialista. Não deixe de ler o nosso Manifesto!

A contra-revolução que foi longe demais

A poeira do muro derrubado em 89 vai baixando lentamente, podemos então começar a distinguir algumas correntes do  pensamento marxista em meio aos escombros da crise política desencadeada pelos acontecimentos na  antiga União Soviética e leste europeu.

As interpretações do processo são as mais variadas, não é nossa intenção nos deter sobre elas, mas buscando entender os novos posicionamentos que surgem na vanguarda militante temos que discutir o significado do que desencadeou tanta polêmica e novas elaborações.

A contra-revolução  consumada no final dos anos vinte na União Soviética pela burocracia stalinista, resultou em seis décadas de opressão. Ao se apropriar das vantagens da planificação econômica, que tirou do atraso secular o povo russo, essa burocracia conseguiu estabilizar o seu regime político, apoiada ainda num sistema repressivo brutal  contra qualquer tentativa de organização operária independente ou oposição política.

As conseqüências para o proletariado soviético de um período tão longo de dominação burocrática  não poderiam ser mais nefastas. Foram duas gerações cultivadas no mais completo obscurantismo político e ideológico, na total ausência de iniciativa e organização política independente. A contra-revolução só se sentiria segura quando aniquilasse a consciência revolucionária e de classe do proletariado russo.

DERROTA NA VITÓRIA

Por mais que tenha se estendido ao longo do tempo, ( em parte também devido a heróica resistência e posterior vitória do povo soviético contra o nazismo que trouxeram enorme prestígio para o PC) o regime da burocracia contra-revolucionária só poderia ser transitório, sua vitória final também seria sua derrota, seu desaparecimento enquanto intermediário do capitalismo. A ausência de uma alternativa revolucionária frente a derrocada desse regime obscurantista só pode ser compreendida dessa forma: como um proletariado derrotado, desorganizado, poderia ser o dirigente político das mobilizações anti-burocráticas  levantando o programa da revolução socialista? Seria um verdadeiro milagre.

Um aspecto ainda mais grave dos acontecimentos soviéticos, é que a contra-revolução estendeu sua influência ao movimento revolucionário no mundo. Primeiro nos partidos comunistas que permaneceram atrelados a III Internacional, e mesmo as organizações marxistas que buscavam se contrapor ao stalinismo não escaparam da influência dos novos métodos dos vitoriosos.

Foi assim que o centralismo democrático, ferramenta das mais potentes para levar adiante o combate da classe trabalhadora contra o imperialismo, foi transformado em centralismo burocrático, em mandonismo, em cupulismo, em dirigismo e etc. O partido revolucionário, entidade de libertação dos trabalhadores, dos subalternos, a verdadeira universidade operária, exercício de democracia mais autêntica, construído na estratégia de fomentar o fim da diferença entre dirigentes e dirigidos, se transforma em aparato, em superestrutura política, onde a divisão de tarefas se consolida entre os guias geniais, e os simples executores. Muito distante do partido sonhado por Gramsci, que assim o definia em um artigo do L´Ordine Nuovo de 1920, “O Partido Comunista é o instrumento e a forma histórica do processo de íntima libertação pela qual o operário passa de executor a iniciador, passa de massa a dirigente e guia, passa de braço a cérebro e vontade; na formação do Partido Comunista pode-se colher o germe de liberdade que terá o seu desenvolvimento e a sua plena expansão quando o Estado Operário tiver organizado as condições materiais necessárias.”

UM RESGATE NECESSÁRIO

Se tomamos essas mudanças no movimento marxista mundial, como resultado histórico da vitória da contra-revolução, concluímos que o resgate do Partido e do seu método, o centralismo democrático,  são decisivos para recolocar o proletariado no centro da luta mundial contra o capitalismo. Mais ainda, considerando o atual estágio de centralizaçao e militarização do imperialismo, e a crescente degeneração capitalista com a violenta exclusão social, podemos prever um endurecimento cada vez maior dos embates, e a necessidade de uma verdadeira disciplina fundada na relação de confiança entre revolucionários. Os que imaginam arranhar o poder do capital com manifestações que atrasam em algumas horas encontros de organismos financeiros internacionais, são coerentes ao defender “organizações horizontais”, e que “a força do movimento  independe de quem esteja em sua direção”.

Não se pode falar de socialismo, de revolução e luta de classes, sem discutir organização a sério. Não temos nenhuma pretensão a descobridores ou inventores de novas teorias,  o marxismo-leninismo nos legou um arsenal suficiente, como seus discípulos nos cabe desenvolve-lo e impulsiona-lo. Em “Um Passo  em Frente, Dois Passos Atrás”, Lenin apontou os elementos fundamentais da organização que seria a dirigente do processo revolucionário de 1917 na Rússia. Esclarece confusões que vêm a tona hoje em dia, com a roupagem moderna das relações horizontais com a classe, quando definia que “Se considerarmos membros do partido apenas os aderentes às organizações que reconhecemos como organizações do partido, então as pessoas que não possam entrar diretamente em nenhuma organização do partido podem, no entanto, militar numa organização que não seja do partido, mas que esteja em contato com ele. Por conseqüência, não se trata de modo algum de deitar pela borda fora ninguém, isto é, afastar do trabalho, da participação no movimento. Pelo contrário, quanto mais fortes forem as nossas organizações do partido, englobando verdadeiros comunistas, quanto menos hesitação e instabilidade houver no interior do partido, mais larga, mais variada, mais rica e mais fecunda será a influência do partido sobre os elementos das massas operárias que o rodeiam e por ele são dirigidos. Com efeito, não se pode confundir o partido, como destacamento de vanguarda da classe operária, com toda a classe.”

O movimento extremamente progressivo  de negação das práticas espúrias do stalinismo e da influência que exerceu no movimento operário, não pode nos levar ao exagero ou ao invencionismo, mesmo porque os acontecimentos de 89 na antiga União Soviética demonstraram de forma cabal a falência do modelo fundado pela contra-revolução, parteira da restauração capitalista em curso, abrindo um novo tempo para o movimento operário, um tempo de reafirmação de nossos princípios, confirmados pelo passado e pelo presente.

Ney – militante do Coletivo Bandeira Vermelha – Rio de Janeiro, 03/07/2000.

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Sobre o critério de partido

Como os leitores que nos acompanha devem ter percebido no último número havia um artigo por  escrito em que colocava sobre o governo PTista aqui do MS este artigo provocou por parte dos companheiros do PSTU uma resposta que também esta sendo publicada neste número. O artigo dos companheiros tenta explicar porque os companheiros apoiaram e continuam a apoiar a idéia da frente dos trabalhadores para as eleições, digo continuam a apoiar porque acabaram de fechar um acordo eleitoral com o PT  para as eleições municipais que agora  se aproxima tal  política é ainda pior o que demonstra o grau e adaptação a democracia burguesa que este partido vem sofrendo pior porque se em 1998 o PT podia cumprir um papel de oposição as oligarquias e as elites papel esse mesmo na época já questionável agora é indefensável ainda mais com os partidos coligados que vai  inclusive a direita sua desculpa agora é que na ”coligação proporcional”  não esta presente os partidos burgueses.

Daí começamos a perguntar como se caracteriza um partido burguês ou operário???? Gostaríamos de perguntar aos companheiros qual é o critério  que se caracteriza o PT como partido operário ? Segundo algumas definições clássicas o PT já não é a muito tempo um partido operário . Vejamos como definir um partido operário se sua direção é uma direção burocrática que funciona como um colchão entre o movimento e o capital basta lembrar-mos da greve da Petrobrás onde Lula o máximo dirigente do partido agiu literalmente como um fura greve, sua política de defesa do capital não se pode chamar de socialista ou operária é na melhor das hipóteses e com muitas boa vontade uma política de desenvolvimento do capital, ou seja , uma ideologia burguesa reacionária que não é possível de realizar  na atual etapa de desenvolvimento do capital. A base desse partido e aqui é bom lembrar que não é só o PT mais também os chamados partidos da esquerda com mediações é cada vez menos operaria e popular e cada vez mais de funcionários do aparato sindical e agora diretamente  do estado burguês. Chegamos a uma encruzilhada para caracterizar tais partidos como operário para justificar sua política  o  PSTU  chega a brilhante  caracterização de que o PT e não só o  PT  mais inclusive o PC do B  são partidos operários porque as  massas tem confiança, continuam seguindo-os e votando nesses partidos a perguntamos em nosso pais o Getulismo teve muito mais base social no movimento operário e nem por isso o caracterizamos com sendo um movimento operário , Mussoline ídem , se ter a confiança das massas é um critério temos que dizer que todos esses populista  também são representantes da classe operária.

   O que esta em jogo na verdade é a esquerda tradicional e ai  também incluso a ultra esquerda esta empreeguinado de desvios eleitorais e no fundo estão preocupados em eleger vereadores e parlamentares e em alguns casos em não se enfrentar com a burocracia . Ao definir sua política como de exigências se denuncias na verdade fica somente na exigência nua e crua.

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O nascimento de um novo movimento operário

O velho movimento operário está em crise e em crise terminal. Aquele movimento operário surgido após a segunda guerra, baseado nos grandes sindicatos, nos partidos parlamentares ditos operários e numa estratégia nacional de luta já não consegue, de nenhum modo, dar respostas aos problemas atuais. Este era um modelo próprio ao período de prosperidade do capitalismo (1945-73), no qual as organizações operárias compunham o esforço de reconstrução do capitalismo (na Europa) ou de modernização retardatária (como na América Latina). Particularmente em nosso continente, a função modernizadora (nacional-desenvolvimentista) da antiga estratégia do movimento, sob controle ou não dos velhos PCs ou outras correntes nacionalistas, baseava-se fundamentalmente na idéia de um desenvolvimento nacional independente a partir de um papel soberano do Estado, o qual deveria participar da economia, desenvolvendo-a e distribuindo rendas. Era uma função histórica semelhante ao que cumpriam, na Europa, os partidos socialistas e comunistas e suas centrais sindicais.

A mundialização da economia que nada mais é do que o controle do mercado mundial por imensas corporações transnacionais deu uma imensa liberdade de movimento ao capital, representando um poder frente ao proletariado ao qual este não pode se contrapor senão superando completamente a estratégia e os métodos de luta tradicionais. Sob este aspecto, o que está em crise não é uma ou outra experiência de luta proletária, uma ou outra corrente política: mas o conjunto do antigo movimento operário, em todos os cantos do mundo.

Como basear a luta proletária nas lutas de categorias, quando a condição para a implantação das sedes das transnacionais são precisamente os baixos salários? Como basear nos sindicatos a organização da classe, se a maioria da classe está desempregada ou em situação precarizada? Como buscar politizar as lutas proletárias e populares tendo como alvo central os governos e Estados nacionais, se o poder real hoje (inclusive no que toca à legislação trabalhista, ambiental, científico-tecnológica etc) está não mais nos Estados nacionais, mas, nas corporações monopolistas transnacionais e suas instituições (OMC, BM, FMI e acordos comerciais regionais)?

O que explica o esvaziamento das antigas formas de organização e de luta de massas, e inclusive a crise das correntes políticas, é, antes de tudo, essas mudanças na realidade e a incapacidade do movimento tradicional de corresponder às novas exigências.

O interessante, no entanto, é que, na crise, está nascendo um novo movimento operário. A manifestação em Seattle (EUA), em novembro do ano passado, durante a abertura da nova rodada do milênio da OMC é um exemplo disso. 5O mil pessoas, de diversas partes do mundo e de diversos setores sociais, atrasaram, durante duas horas, o início da reunião; presidentes e ministros de diversas partes do mundo ficaram presos nos hotéis, sem segurança para saírem; outros, só entraram no Teatro Parammount, onde se realizaria a abertura oficial do evento, pulando janelas, como ladrões de galinha; Clinton foi aconselhado a adiar a decolagem de seu avião. Nas ruas, completamente ocupadas pelas massas, as pessoas festejavam a demonstração de força popular. Uns cartazes diziam: Fechamos a OMC! Um jovem trabalhador, fotógrafo, declarava ao repórter do Le Monde Diplomatique: Viemos aqui porque não queremos mais ser tratados como coisas. Não somos mercadorias. Quem estava lá? Jovens trabalhadores, sindicalistas alternativos, ecologistas, movimentos de mulheres, movimentos de gays e lésbicas, estudantes, pescadores, pequenos agricultores, movimentos de direitos humanos… O que reivindicavam? Contra os baixos salários, o desemprego, o trabalho infantil, o trabalho escravo no Terceiro Mundo, a extinção das tartarugas… E reivindicavam contra quem? Contra a OMC que, segundo afirmavam, é o verdadeiro poder das corporações… A força do movimento foi tão grande que, durante três dias, a Prefeitura local decretou toque de recolher a partir das 18 horas! O interessante, no entanto, é que este não foi a única manifestação. No mesmo dia, 30 de novembro, os sindicalistas e ambientalistas oficiais também fizeram uma pequena, sem massa, em local e ritual acordado com as autoridades… Neste cenário, defrontaram-se claramente o novo e o velho movimento operário.

A organização da manifestação de Seattle se deu a partir das iniciativas dos movimentos que compõem a AGP (Ação Global dos Povos). A AGP é uma articulação mundial, que congrega de forma horizontal e não-hierárquica, movimentos autônomos dos cinco continentes; sua estratégia principal é a unificação na ação e na reflexão dos movimentos de base que, independentes dos Estados e poderes econômicos, se baseiem na democracia direta e na ação direta tendo como alvo o combate mundial ao poder do capital transnacional. Antes dessa manifestação de Seattle, já havia impulsionado a manifestação de fevereiro de 98, em Genebra, durante a reunião do G-7, e, em 18 de junho do ano passado, um dia de luta internacional contra os centros do capital financeiro. A sua próxima atividade é o chamado a realizar em 1º de maio próximo uma nova Ação Global Contra o Capitalismo.

O que há de novo nessa experiência é tanto uma nova estratégia, como novos métodos de organização e ação. Uma estratégia anticapitalista que é inseparável do internacionalismo; um método de luta baseado na ação direta, que é inseparável da autonomia das formas de organização de base. Fundamentalmente, o que esta nova experiência demonstra é a possibilidade de ultrapassarmos positivamente o corporativismo e o nacionalismo, como também a idéia de que a força do movimento depende de quem está na sua direção. Essas novas formas de movimento, no centro e na periferia do movimento, está buscando se basear na auto-organização, numa relação horizontal, sem a velha divisão de trabalho entre dirigentes e dirigidos, especialistas e executantes. Busca ultrapassar a idéia do combate econômico centrado no salário e demonstra que o domínio da economia sobre a vida humana é que é o problema, e problema que se manifesta em todas as áreas da vida social: os direitos humanos, a cultura, a opressão sobre as mulheres, o trabalho infantil, a crise ecológica… como também sobre o desemprego, os baixos salários, os direitos trabalhistas. Está questionando, portanto, o próprio mercado: a mercantilização da vida, das pessoas, da cultura… E não tem mais a ilusão de que o poder está nos Estados nacionais: como tornou-se visível, o Estado não pode mais ser a via pela qual busquemos a emancipação da humanidade; do que se trata, como diz o manifesto da AGP, é colocar nas mãos dos povos os poderosos meios de vida que hoje estão nas das corporações, estabelecendo relações igualitárias e solidárias, sem o objetivo de lucro.

Será que conseguiremos aprender com as novas experiências, nós que viemos de uma tradição marxista que privilegiou sempre as formas tradicionais do movimento operário? Nós que, a despeito do nosso internacionalismo professado, buscamos sempre basear nossos esforços numa estratégia de luta pela tomada do poder de Estado nacional? Nós que sempre acreditamos que o central era nos catapultarmos como direção dos trabalhadores e construirmos nossas próprias organizações dirigentes? Será que não está na hora de estabelecermos uma relação horizontal com o restante da classe, tendo em vista contribuirmos para a sua auto-organização? Não estará na hora de buscarmos dar essa contribuição através das múltiplas formas que o próprio movimento espontâneo da classe está nos apontando: o trabalho de cultura proletário, grupos operários autônomos, organizações autônomas dos precarizados etc? Enfim, não estará na hora de compreendermos na sua radicalidade a afirmação de que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores?

João Emiliano- militante do Contra a Corrente Fortaleza- CE.

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Construindo o novo internacionalismo

Vivemos uma época dominada pela produção de mercadorias. A acumulação capitalista acontece em escala mundial, a uma velocidade crescente, controlada pelas corporações e os investidores transnacionais.

            A ação dessas corporações monopolistas mundializadas visa elevar a lucratividade desse setor do capital, procurando responder à crise que se abateu de modo persistente sobre esse sistema desde os anos 70. Para tanto, contam com a ajuda de agências internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), cuja atividade junto aos Estados Nacionais tem levado à adoção de medidas que tem o objetivo de dar maior liberdade ao grande capital, para transitar por onde lhe interesse, explorando pessoas e recursos naturais de forma ainda mais intensa.

            Os efeitos da mundialização econômica se expandem pelo tecido de sociedades e comunidades do mundo e integram seus povos em um gigantesco sistema único, voltado à extração do lucro e ao controle dos povos e da natureza. O movimento hierarquizado do capital tem retirado o acesso à produção dos meios de vida de amplas camadas populacionais, inclusive nos países ditos desenvolvidos, criando situações onde a convivência entre as elites e os setores sociais desprivilegiados tem se dado pela mediação crescente da repressão policial, tornando a vida cotidiana um fardo muitas vezes insuportável.

            Mas é de nossa resistência que queremos tratar. Neste aspecto, é necessário criar situações reais de confronto com as relações de mercado, baseadas na cooperação e na solidariedade em lugar da competição e do lucro. Na prática, significa constituir diferentes formas de organização, fundamentadas na democracia direta, capazes de responder aos problemas do cotidiano.

            Estas novas formas de organização autônoma deverão emergir de e se enraizar em comunidades locais, enquanto ao mesmo tempo pratica a solidariedade internacional, pois na medida em que o capital reafirma seu caráter mundial, temos que responder-lhe à altura.

         É preciso unidade entre as diferentes formas autônomas de organização dos povos, a fim de conformar as resistências locais no âmbito de um movimento total para a superação do capitalismo em nível mundial. A Ação Global dos Povos é, neste sentido, um dos momentos da necessária conexão entre os movimentos de base. Mas não pode ser o único. Na verdade, devem ser infinitos os momentos de interligação horizontal desses diversos movimentos populares, de acordo com os objetivos comuns a que se proponham.

            Nesse espaço de interação não há lugar para o sectarismo, pois não se trata de levar às últimas conseqüências a defesa de um programa fechado que levará a humanidade ao “mundo novo”. Mas trata-se de buscar o entendimento a partir da diferença. Abrir espaço para a diversidade cultural e nela encontrar a melhor maneira de gerir a vida, livre do mercado e do Estado.

Se queremos construir relações diretas entre as pessoas, livres da dominação do dinheiro, a hora é agora. Não podemos esperar que uma guerra civil nos coloque o poder nas mãos. O poder do povo não está acima, mas entre nós. Sendo assim, nossa revolução já está em curso; resta-nos propagar essa mudança de atitude.

(*) Os trechos em itálico foram extraídos do manifesto da AGP, aprovado na sua 2ª Conferência Mundial, realizada em agosto de 99, em Karnataka, Índia.

 

                                                            André Vasconcelos – membro do coletivo contraacorrente.

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Luta de categoria ou luta unitária dos explorados?

 

( considerações sobre a greve dos professores de São Paulo)

A greve dos profissionais da educação da rede estadual por 43 dias, que ocorreu no mesmo período que a greve dos trabalhadores da saúde, universidades, ETE´s e paralisação dos metroviários, foi  marcada por uma dura realidade: a falência do padrão de lutas de categoria corporativas e centradas na reivindicação salarial ou na melhoria da carreira.

Torna-se impossível saber com certeza qual foi a adesão ao movimento, tanto pela sua oscilação constante, quanto pela utilização manipulatória – pelo governo e pelo sindicato (APEOESP) – dos números da paralisação. As estimativas em momentos de crescimento falavam de 50% com muita desigualdade, principalmente entre o interior do estado, onde a adesão foi maior, e a região da capital e ABCD em que a greve foi um fiasco.

Nos últimos 10 dias as assembléias regionais e até a estadual já expressavam o fim da greve com o esvaziamento quase total e o retorno ao trabalho de quase todos os professores.

A intransigência do governo Covas – ao se recusar a negociar com os professores, ao colocar a tropa de choque para impedir ou intimidar as assembléias, nas diversas provocações ao movimento e, depois da greve, em descontar os dias parados e impor um calendário de reposição – expressa o interesse em preservar acima de tudo a garantia da manutenção das remessas de juros da dívida externa e a necessidade de manter as escolas como instrumento de contenção social.

Essa intransigência do governo de São Paulo, que também se demonstrou na desocupação em Guaianazes, se enquadra numa ofensiva nacional (prisão e assassinato de sem-terras) e até mundial de repressão aos movimentos sociais. Essa repressão se impõe com mais facilidade sobre os movimentos isolados, ao não serem capazes de despertar as energias dos imensos contingentes de proletários, cuja participação poderia mudar totalmente o rumo dos acontecimentos.

A DECADÊNCIA DO ENSINO PÚBLICO E DO MOVIMENTO SINDICAL…

 

Nas escolas enfrentamos desde os problemas com a falta de materiais pedagógicos, passando pelo despreparo e desmoralização de muitos profissionais até a acomodação com a crescente violência instalada ao nosso redor, o desânimo,  o baixo nível de ensino e falta de perspectiva e de interesse aos estudos de nossos jovens.

Nos últimos quatro anos foram demitidos mais de 60 mil professores e aumentou a fragmentação da categoria (efetivos, estáveis, ACT’s, substitutos, eventuais, monitores, etc). Milhares de novas demissões estão previstas para o próximo ano com a Reforma do Ensino Médio. Desenvolve-se uma campanha permanente de incentivo à competição entre escolas e professores, sobre quem pesa, além de tudo, o mecanismo da avaliação anual de desempenho.      

O desemprego e a fragmentação das categorias, a mundialização da produção e dos movimentos de capitais financeiros são os fatores objetivos que levaram as lutas de categoria à decadência. Foram reações dos empresários e governos de diversos países no sentido de aumentar a exploração e a dominação sobre os trabalhadores, dificultando sua resistência.

Mas, não podemos nos esquecer da ação e da ideologia desenvolvidas pelas direções sindicais que foi de aceitar e até implementar junto com  os empresários e o governo  suas principais políticas.

A perda de referências e alternativas geradas por essas mudanças enfraqueceram as antigas formas de luta. Acentuaram-se então o individualismo e a ideologia de que só resta nos submeter e aceitar, “se não, é pior”.

O padrão anterior, de lutas de categoria, que se desenvolveu nos anos 70 e 80, também teve como problemas a adaptação e dependência frente ao poder de Estado. Os sindicatos foram criados à imagem e semelhança do estado e neles predominam relações centralizadoras, burocráticas e corrompidas.

Mesmo que esse tipo de movimento e de estrutura, com todos os problemas, tenham obtido conquistas nas décadas anteriores, mostram-se completamente ultrapassados e impróprios para enfrentar os desafios atuais.

No caso dos professores e do funcionalismo público, também foi reproduzida a relação impositiva com os alunos e pais. Isso tudo se expressa quando uma greve é decretada e conduzida de cima para baixo, não considerando os diretamente afetados (professores, pais e alunos).

Ao insistir na questão salarial, como eixo da pauta,  ao invés das condições de ensino, mesmo depois de perder essa votação em assembléia, a direção do sindicato e parte da “oposição” prejudicaram nosso movimento em três aspectos: deram ao governo e à imprensa burguesa o argumento para limitarem nossa luta à  reposição dos 54%; jogaram parte da população contra o movimento e contrariaram os professores, que entraram em greve visando centralmente a luta contra o corte de aulas (Reforma do Ensino Médio) e a precarização geral do ensino.

BUSCANDO NOVOS CAMINHOS…

Com tudo isso, hoje os problemas que nos afligem são muito maiores do que o salário. A luta a ser travada necessita romper com as fronteiras da luta de categoria  colocando-se como luta da classe trabalhadora, tendo como primeiro passo a união das comunidades (professores, alunos, pais e demais trabalhadores). 

A total degradação do ensino público, que é também da saúde pública, do transporte e da moradia que atendem aos trabalhadores, desempregados e seus filhos nos empurram aos guetos e ao aprofundamento da miséria na periferia.

É necessário um novo padrão de luta e organização que permita e desenvolva as iniciativas de romper com a passividade e a representatividade em cada escola e bairro. 

A união de professores, alunos e pais numa luta pela ocupação democrática do espaço da escola, tanto no cotidiano das aulas como nos finais de semana; as iniciativas de auto-organização como oficinas de Hip-Hop (rap, grafite, street dance) teatro, capoeira, etc são importantes para desenvolver o senso de solidariedade e consciência de classe em nossas comunidades.

O desenvolvimento dessas e de outras práticas comunitárias e solidárias pode se constituir como ponto de apoio para novas lutas contra a degradação do ensino público, pelo aumento das verbas e  pelo direito de decidirmos coletivamente sobre o seu uso.    

Com a extensão desse movimento se desenvolverão novas formas de intercâmbio e coordenação entre as comunidades e com outros movimentos sociais.     

Assim, estaremos ao mesmo tempo lutando contra o capitalismo e buscando construir os germes de uma nova sociedade.

 

Iri, Alex, Neu e Re – ( ABC- SP )

 

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Avatar: revolução e paradoxo da técnica

    As revoluções da história do cinema

    Periodicamente, a cada uma ou duas décadas, o cinema passa por revoluções que atualizam sua capacidade de funcionar como a arte típica da sociedade capitalista moderna e expressar seus dilemas e contradições. Esbocemos sumariamente algumas dessas revoluções:
    – A primeira delas foi a própria invenção do cinema como veículo para contar histórias, saindo do submundo das curiosidades circenses para se tornar um ramo independente da indústria cultural com regras, métodos e cânones próprios. Esse processo de construção do cinema como instrumento da arte narrativa passa pelas criações de Méliès, Griffith, Chaplin, Eisenstein, o movimento expressionista, até alcançar a maturidade com Orson Welles e seu “Cidadão Kane”.
    – A invenção do cinema falado no fim dos anos 1920.
    – A introdução das cores no fim dos anos 1930.
    – O aperfeiçoamento nas técnicas de projeção nos anos 1950 (CinemaScope, Cinerama, 3D), na tentativa de fazer frente à concorrência da televisão.
    – A revolução temática impulsionada pela explosão das cinematografias não-hollywoodianas (neo-realismo, nouvelle vague, cinema novo, Fellini, Kurosawa, Bergman, Kubric, etc.) no pós-II Guerra e nos anos 1950.
    – A chegada dessa revolução temática a Hollywood pelas mãos da contra-cultura, na virada entre os anos 1960 e 70, deixando para trás a inocência dos musicais e contos de fadas com final feliz obrigatório. O cinema se tornou capaz de falar da vida de pessoas reais e abordar abertamente certas questões sociais, com marcos como “Adivinhe quem vem para jantar?”, “Sem destino”, “Uma rajada de balas”, “A primeira noite de um homem”, até chegar ao “Poderoso chefão”.
    – A revolução dos efeitos especiais entre os anos 1970 e 80, cujos maiores expoentes são as trilogias “Guerra nas Estrelas” e “Indiana Jones”.
    Conhecedores mais profundos da história do cinema poderão completar e precisar essa lista e enriquecê-la com muitos outros exemplos. Mas tal debate alongaria demais esse texto e o desviaria de seu propósito.
    Voltemos à última “revolução” indicada. O desenvolvimento dos efeitos especiais foi tido como uma resposta ao surgimento dos videocassetes (assim como nos anos 1950 fora preciso responder à massificação da televisão). Era preciso criar um espetáculo suficientemente grandioso para concorrer com o conforto do vídeo doméstico e motivar os espectadores a sair de casa para continuar freqüentando as salas de cinema.
    Na época esse fenômeno foi interpretado por Pauline Kael (reputada como a maior crítica de cinema estadunidense) como a verdadeira morte do cinema, pois os filmes passariam a estar cada vez mais baseados nos efeitos visuais do que na história.
    Coerentemente com essa interpretação “apocalíptica”, vimos cada vez mais as salas de projeção serem invadidas por filmes de ação, aventura, fantasia, ficção científica e histórias em quadrinhos, que se sustentam em efeitos visuais e secundarizam a expressão da realidade humana. Assim como o cinema deslocou o teatro para uma espécie de gueto habitado por remanescentes cultuadores das antiguidades culturais, o cinema de efeitos especiais transformou os filmes que tratam de pessoas reais num segmento apreciado por uma restrita tribo de cinéfilos, seguidores de produções independentes, européias, asiáticas, sulamericanas, etc.
    
    A obra de James Cameron

    Toda essa digressão sobre a história do cinema se propõe a preparar o terreno para a tentativa de localizar o significado do filme “Avatar”, de James Cameron. Passemos rapidamente em revista a obra desse diretor. Cameron foi um dos protagonistas da revolução dos efeitos especiais com “O Exterminador do Futuro”, de 1984, obra impulsionada por uma história originalíssima, de profundo impacto e marcante influência no imaginário da época (influência que perdura até hoje), culturalmente representativa do último surto da Guerra Fria e embalada por uma narrativa de suspense bastante eficiente, elementos que o tornam um clássico. A partir desse sucesso inicial, Cameron desenvolveu uma carreira pouco prolífica, mas repleta de títulos que o tornaram sinônimo de ambição e inovação: “Aliens, o resgate”, “Segredo do abismo”, “O Exterminador II”, “True Lies”, “Titanic” e agora “Avatar” (tornaram-no também titular da minha lista pessoal de diretores preferidos, fato que não tem a menor importância, mas para quem ficou curioso aqui vai: Martin Scorcese, Ridley Scott, Oliver Stone, Tim Burton e David Fincher).
    A curta filmografia de Cameron inclui os 2 filmes de maior bilheteria da história (o recorde de “Titanic” estava sendo superado por “Avatar” no momento em que este comentário era finalizado), fato este sim da maior relevância para os executivos de Hollywood e para a votação dos prêmios Oscar. E tal filmografia inclui ainda os marcos de mais duas revoluções na história do cinema, ou pelo menos dentro da atual fase da história:
    – “Exterminador II”, primeiro exemplar de utilização maciça e bem-sucedida de imagens geradas em computador (conhecidas pela sigla em inglês “CGI”), que causou escândalo na época pelo seu elevado custo de produção (mais de U$ 100 milhões, marca esta tornada rotineira a partir de então).
    – O próprio “Avatar”, filme quase inteiramente feito em CGI e concebido para ser apreciado em 3D.

    O paradoxo da técnica

    No que se refere à técnica cinematográfica, “Avatar” é indubitavelmente um salto adiante. As diversas revoluções técnicas do cinema citadas acima acrescentaram sucessivos aperfeiçoamentos à sua capacidade de funcionar como uma armadilha sensorial que suspende o espectador da sua relação com o mundo real e o arremessam no universo da fantasia. A sala escura, a tela gigante, a luz em que brilham os astros e estrelas, o volume ensurdecedor do som, a trilha sonora cuidadosamente arquitetada para conduzir as emoções, o ritmo da edição, a profusão dos efeitos especiais, ganharam nas últimas décadas a companhia das imagens em CGI e no caso em questão, da profundidade em três dimensões. Essas sucessivas inovações técnicas, nas quais aliás Cameron tem demonstrado inigualável aptidão, dotaram o cinema das ferramentas necessárias para reproduzir na tela as fantasias mais delirantes que o cérebro for capaz de criar.
    Os elementos criativos que povoam a história de “Avatar” (colonização interplanetária, engenharia genética, controle da mente sobre outro corpo, raças de humanóides descendentes de felinos com 4 metros de altura e ossos de fibra de carbono, que moram numa aldeia-árvore e são capazes de se comunicar com animais e vegetais, que cavalgam em dragões e voam entre montanhas flutuantes) são lugares-comuns em vários nichos da ficção científica, como os contos da lendária revista de quadrinhos alternativos “Heavy Metal”. Claro que, para tornar o filme palatável para as grandes audiências, Cameron teve que retirar quase todo o sexo, violência, provocação política e amoralidade que caracterizam aquela publicação, retirando também a vulgaridade e futilidade em que os elementos acima costumam vir empacotados na revista. “Avatar” é Heavy Metal em embalagem da Disney.
    A simplicidade quase banal da história e a falta de originalidade tem rendido a Cameron uma série de processos por plágio. Entretanto, a confiança do diretor em sua capacidade técnica o fez desdenhar impavidamente esses contratempos insignificantes e se dar ao luxo de se esbaldar com o brinquedo, dando livre curso a algumas das suas obsessões típicas já exploradas em filmes anteriores: o ambiente militar, a ética dos soldados, a parafernália tecnológica armamentista, os limites da ciência (e as criaturas bioluminescentes, como o absurdo “inseto-cóptero” que passeia no filme), etc.
    “Avatar” representa a chegada ao patamar histórico em que qualquer coisa que pode ser imaginada pode também ser filmada de modo tecnicamente convincente, o que coloca em pauta uma outra questão: o hiper-realismo proporcionado pela técnica cinematográfica acrescenta credibilidade à fantasia ou destrói a sua fecundidade, já que não deixa nada ao espectador para ser livremente imaginado? Ou dito de outra forma, porque o cinema fantástico-hiper-realista deve ser considerado um avanço em relação ao teatro de bonecos, se este pode ser tão eficiente quanto aquele na sua tarefa fundamental, que é contar uma história?
    O culto da novidade e da técnica como substitutos da vida é mais um sintoma da patologia social contemporânea, da qual “Avatar” é mais uma confirmação. Mas é uma confirmação invertida, pois a moral da história é justamente… a volta à natureza!
    Esse paradoxo é o grande achado de “Avatar”. O homem adquire a capacidade de viajar pelo espaço, conservar-se vivo em sono criogênico, colonizar outros planetas, construir e reconstruir corpos por engenharia genética, controlar remotamente um outro corpo, etc., mas o seu objeto de desejo é retornar à mesma relação com a natureza que os índios praticam: caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira…

    A hipótese apocalíptica

    Para explicar esse paradoxo, é preciso entrar na discussão sobre a relação do cinema com o contexto político-ideológico. Dentre os filmes de Cameron, “Avatar” é uma espécie de antípoda do primeiro “Exterminador”, pois se aquele contava com uma história poderosa e efeitos que hoje podemos considerar precários, este possui um visual absolutamente deslumbrante e uma história sofrível. Ponto para Pauline Kael? Depende.
    A hipótese apocalíptica que explica a decadência artística do cinema pelo abuso da técnica dos efeitos especiais tem uma contraparte dialética que consiste no fato de que a extrapolação da corrida tecnológica para o cinema corresponde proporcionalmente à vigência dessa mesma corrida tecnológica na vida social em geral. Não é apenas o cinema que se tornou irreal, mas a vida real que se tornou cinematográfica, espetacular, fantástica, ilusória e instável, no contexto histórico do capitalismo plenamente mundializado, o que vale dizer, plenamente atravessado pela aceleração explosiva das suas contradições constituintes. Nesse sentido, o cinema mais espetacular e irreal pode ser também o produto ideológico mais típico e ilustrativo de determinados fenômenos sociais muito reais. Isso atualiza o valor crítico do cinema e da crítica de cinema, ainda que o cinema em questão venha à tela completamente despido de intenções críticas; e demonstra também a impossibilidade de se fazer crítica de cinema e de arte com alguma seriedade e coerência sem uma perspectiva crítica do conjunto da vida social.
    O paradoxo técnica X natureza em “Avatar” o torna culturalmente significativo a ponto de merecer a qualificação de obra revolucionária, para além do aspecto cinematográfico e do recorde de bilheteria. Para avaliar esse significado cultural, é preciso relacionar sua narrativa aos discursos ideológicos em voga. A história do filme, que já foi descrita como “Pocahontas no espaço”, é um completo clichê: soldado se apaixona por nativa e se volta contra os colonizadores dos quais era parte. Essa mesma história já foi contada antes muitas outras vezes, merecendo destaque pela profundidade antropológica e paixão humanista um outro clássico do cinema recente: “Dança com lobos” (outro fato sem a menor relevância: primeiro filme que me fez chorar).
    O que torna essa narrativa culturalmente significativa é o acréscimo da questão ambiental. O ambientalismo é o bom-mocismo do século XXI. É a causa que aparentemente unifica a todos, gregos e troianos (veremos que não é bem assim nas próximas seções deste texto), o que ajuda a explicar o sucesso do filme (e o recorde de bilheteria), para além do refinamento visual. Ao colocar de um lado a defesa da natureza e de outro a sua destruição, “Avatar” fornece ao público heróis para os quais torcer e vilões aos quais odiar, e não há nada que o grande público aprecie mais do que heróis virtuosos derrotando vilões odiosos. Sem isso, não há efeitos especiais que bastem para construir um sucesso artístico e comercial dessa magnitude. Mesmo sendo rasa, banal, repetitiva, pouco criativa, a narrativa central de “Avatar” fornece ao espectador uma experiência dramática gratificante, ou seja, boa diversão.
    
    Gregos e troianos?

    A consagração artística e comercial do ambientalismo em “Avatar” (através de uma overdose de técnica cinematográfica) representa ainda uma espécie de “vingança estética” contra a era Bush. O discurso dos vilões do filme é literalmente o mesmo dos sinistros personagens que povoaram os noticiários na década de 2000, os procônsules estadunidenses no Oriente Médio e os executivos rapaces da Enron, Halliburton, AIG, Lehman Brothers e Cia. O executivo que dirige a exploração do mundo de Pandora em “Avatar” diz que tudo o que importa para os acionistas é o balanço trimestral, a mesma obsessão dos especuladores trazidos à berlinda pela atual crise econômica. O coronel que chefia a milícia particular da empresa diz que se deve “combater o terror com terror”, a mesma coisa que os Estados Unidos fizeram no Iraque e no Afeganistão (e em Guantánamo ou em outras bases secretas nas quais torturaram “suspeitos de terrorismo”) ou que Israel fez contra Gaza.
    Dando mostras do quanto está sintonizado com o sentimento anti-Bush ainda presente na opinião pública mundial, “Avatar” dá a pista dos próximos alvos da “guerra ao terror”, quando lembra que o protagonista, antes de ser mandado para o espaço, serviu na Venezuela, enquanto o coronel servira na Nigéria, ambos “coincidentemente” produtores de petróleo. Ao aterrissar em Pandora, o ex-fuzileiro paraplégico ainda acredita que na Terra as forças armadas estadunidenses estão “lutando pela liberdade”, sendo que a corrupção dos soldados no processo da colonização seria causada apenas pelo fato de estarem servindo como mercenários de uma empresa privada.
    Algumas de suas falas poderiam ter saído da boca de um veterano do Iraque dos nossos dias de crise econômica e desemprego galopante nos Estados Unidos, quando diz que seria possível reparar sua espinha para que pudesse voltar a andar, “mas não nessa economia, não com essa pensão”. Gradualmente o protagonista muda seu ponto de vista sobre o mundo de onde veio, pois passa-se para o lado dos nativos. Supera-se também aos poucos a hostilidade mútua entre o soldado e os cientistas. A separação entre o homem de pensamento e o homem de ação, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, típica da cultura estadunidense, também é vencida no filme, conforme o soldado se torna capaz de refletir (o videolog mostra-se uma ferramenta bastante útil, mas também perigosa) e os cientistas de se engajar numa rebelião contra a corporação.
    Cameron também subverte outro padrão típico da cultura estadunidense, retirando as mulheres do seu papel subalterno tradicional e dando-lhes funções decisivas, o que aliás é um dos traços mais marcantes da sua filmografia. Em todos os seus filmes há personagens femininas fortes, que não ficam atrás dos protagonistas masculinos, seja em inteligência ou desenvoltura. Em “Avatar”, temos a cientista-chefe e até a piloto de helicóptero, mas o destaque fica para a guerreira nativa, capaz de desafiar as tradições de seu povo para unir-se ao estrangeiro por quem se apaixonou.
    Há outros traços “politicamente corretos” e pós-modernos em “Avatar”, como a concessão que se faz à religião, quando a “mãe natureza” se envolve pessoalmente no combate, enviando um exército de criaturas para enfrentar os humanos, ainda que se faça um esboço de explicação científica para a experiência mística de comunicação com a divindade-natureza vivenciada pelos Na'vi. A mesma concessão à religião, as mesmas boas intenções e o mesmo paradoxo de técnica X natureza comentado duas seções acima já foram vistos antes em “Final Fantasy”, tentativa pioneira e infeliz de substituir atores reais por CGI que fracassou estética e comercialmente. Prova de que é preciso algo mais do que boas intenções e propostas politicamente corretas para que um filme possa funcionar. “Avatar” oferece esse algo mais, expondo uma ilustração um pouco mais radical das contradições sociais.
    “Cedo ou tarde, sempre temos que acordar”, aprende o fuzileiro. A operação de exploração mineral em Pandora é uma metáfora de todas as invasões imperialistas no planeta Terra. Repete-se ali o mesmo processo que se desencadeou sobre a América, a África e a Ásia, onde se destruíram povos, culturas e ecossistemas em busca de riquezas efêmeras, com a diferença de que, na batalha de Pandora, os nativos venceram. E o público que lotou os cinemas do mundo inteiro para dar a “Avatar” o recorde de bilheteria torceu pela vitória dos nativos. Eis uma novidade ideologicamente significativa, que sinaliza a vitória política do ambientalismo.
    Entretanto, qual é a conclusão a que a vitória dos nativos pode nos levar? Devemos abandonar a tecnologia e voltar a viver como os índios? Será que “caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira…” devem ser o nosso ideal de felicidade e realização humana? Todo o progresso técnico realizado até hoje deve ser jogado fora, pois representa um pecado contra a inviolabilidade da mãe-natureza? Toda a ciência, a arte, a cultura, a humanização do mundo, o conforto, são inseparáveis dos males que o homem provocou?

    Trabalho alienado e natureza
    
Para responder a essas perguntas, é preciso recorrer a uma perspectiva histórica concreta. Não existe tecnologia (nem arte, nem religião, etc.) que não esteja envolvida no contexto de determinadas relações sociais. O problema das agressões da nossa tecnologia contra a natureza não está na tecnologia em si, mas no propósito social que dirige a sua utilização. A tecnologia é apenas uma ferramenta a serviço de uma lógica social, que determina o que deve ser produzido e de que forma, e em proveito de quem. A lógica que dirige a utilização da tecnologia em nossa sociedade é a da acumulação de capital.
Portanto, não é “o homem” abstrato que agride a natureza, mas quem o faz é o homem histórico e concreto, o homem envolvido em relações de produção social e historicamente determinadas, o homem envolvido nas relações capitalistas (para as quais inconscientemente se dirige a condenação moral estetizada em filmes como “Avatar”). A relação destrutiva com a natureza (e portanto auto-destrutiva) posta em prática pelo homem é uma decorrência das relações de trabalho alienado. O paradoxo técnica X natureza que viemos debatendo se enraíza em contradições muito profundas, que requerem uma adequada contextualização antropológica e filosófica do trabalho alienado.
O trabalho é a atividade que diferencia o homem dos demais animais. O homem se torna humano por meio do trabalho, que se define como atividade previamente ideada, ou seja, consciente. Ao contrário dos demais animais, cuja atividade é inconsciente, instintiva, repetitiva e imutável, o homem altera o mundo com seu trabalho e ao fazer isso altera também a si mesmo. Por ser a única espécie capaz de alterar o mundo e a si mesmo, só o homem possui uma História propriamente dita, que é na verdade um desdobramento da história natural. O surgimento da espécie humana, com sua capacidade de trabalho, é um desenvolvimento de propriedades inerentes ao mundo natural, mas ao mesmo tempo representa o surgimento de um mundo novo, humano.
O trabalho constrói biologicamente o corpo do homo sapiens, com seu caminhar ereto, polegar opositor e cérebro superdesenvolvido, e cria o gênero humano como ser capaz de atribuir uma finalidade aos objetos e um sentido para as próprias ações. Ao satisfazer suas necessidades naturais (comer, vestir-se, abrigar-se, procriar) por meio do trabalho, o homem cria novas necessidades sociais, pois as satisfaz de modo humano. As características humanas do homem, a socialidade, a historicidade, a liberdade, a universalidade, a consciência, a linguagem, são produto do trabalho.
O trabalho é a forma especificamente humana, social e histórica, de metabolismo com a natureza. Cada ser humano está em relação com a natureza por meio de seu corpo físico, cuja existência precisa ser mantida, mas essa relação não se dá de forma imediata, pois é social e historicamente mediada pelo trabalho. O uso de recursos naturais para produzir alimentos, vestimentas, moradias, utensílios, etc., não é feito separadamente por cada indivíduo, mas coletivamente por meio da formação social da qual este indivíduo faz parte. Ou seja, o homem somente se relaciona com a natureza indiretamente, por meio de sua relação com os outros homens, com o meio social no qual desempenha algum tipo de papel produtivo e de onde recebe uma cultura.
A humanidade do homem não está dada de modo imediato na realidade histórica, ou seja, cada homem não está imediatamente unificado com a sua humanidade, da forma como estão os animais. Cada animal é imediatamente idêntico a sua espécie e capaz de fazer tudo que a espécie é capaz. O homem, ao contrário, se encontra separado de sua espécie, da sua humanidade, seu ser genérico, por conta da condição histórica da divisão da sociedade em classes e do trabalho alienado.
Assim que o trabalho se torna capaz de produzir um excedente em relação às necessidades sociais, surge uma classe social que se apropria desse excedente. Ao longo da história desenvolve-se uma luta entre as classes proprietárias e as classes trabalhadoras pela posse desse excedente do trabalho social. O controle do excedente pelas classes proprietárias transforma o trabalho numa atividade alienada, ou seja, estranha para a maior parte dos seres humanos. O homem se separa de seu ser genérico, sua humanidade, ao não poder determinar o que fazer com seu tempo de trabalho e ser forçado a trabalhar para outro. O homem se aliena da atividade do trabalho, dos produtos do trabalho, da sua relação com os outros homens, que aparecem todos como elementos externos e opressivos sobre o indivíduo; e se aliena também da natureza.

Capitalismo e destruição da natureza

Se a relação com a natureza se dá primordialmente por meio da relação social e histórica de trabalho, o trabalho alienado leva a uma relação também alienada com a natureza. Na sociedade de classes, a natureza se apresenta ao homem como ambiente externo e objeto estranho a ser controlado, dominado, usufruído e descartado, conforme os interesses da classe dominante. A natureza deixa de ser o “corpo inorgânico do homem”, como a definiu Marx, e se torna propriedade privada. Na condição de propriedade privada, a natureza pode ser usada e abusada de maneira irresponsável, pois a necessidade coletiva é desconsiderada em favor dos interesses privados.
    Na sociedade capitalista, que é a forma mais recente da sociedade de classes, a natureza mais do que nunca aparece como estranha ao homem, como puro objeto de manipulação, fonte supostamente inesgotável de matéria-prima e repositório dócil para os infinitos subprodutos da ação humana (lixo e poluição). O capitalismo simplesmente ignora que a natureza não é inesgotável nem pode suportar indefinidamente os dejetos que lhe atiramos. A lógica do capital considera apenas o curto prazo, o balanço trimestral das empresas, a cotação diária da bolsa de valores, e simplesmente despreza a sobrevivência da espécie. Como disse um autorizado representante da burguesia, o economista inglês John M. Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.
    O trabalho excedente apropriado pela burguesia é a fonte da imensa acumulação de riqueza social que tem se multiplicado desde o início da Revolução Industrial, ponto de partida do capitalismo propriamente dito. Parte dessa riqueza social apropriada pela burguesia é consumida improdutivamente em luxo e parte tem que ser necessariamente reinvestida na continuidade da produção.
    Acontece que não basta ao capitalista apenas manter a produção nos mesmos patamares do ciclo anterior de realização do capital, pois ele é forçado a produzir sempre mais mercadorias com o emprego de menos força de trabalho, para reduzir seus custos, aumentar seu lucro e vencer os concorrentes na competição por mercado. Essa é a única forma de realizar mais capital. A reprodução ampliada do capital é a força motriz que comanda as ações de burgueses e conseqüentemente também dos proletários na sociedade capitalista. Essa é a fonte material da ideologia do crescimento econômico (que não é sinônimo de desenvolvimento humano), do culto cego ao progresso e à novidade, que impulsiona um modo de vida voltado para o imediato e desprovido de sentido, em que os objetos se tornam sujeitos e os homens objetos.
    Essa lógica social da reprodução ampliada origina uma espiral infinita de aumento da produção de mercadorias. Esse aumento da produção não leva em consideração as necessidades humanas e sim a possibilidade de lucro. A sociedade capitalista cria o paradoxo de uma gigantesca capacidade produtiva usada para gerar objetos absolutamente inúteis, como bombas atômicas e bens de luxo, ao mesmo tempo em que mais de 1 bilhão de pessoas passa fome.
    Como se não bastasse o absurdo social desse desperdício e do desvio de capacidade produtiva, isso ainda é feito de uma forma tal que compromete a capacidade da natureza de suportar o impacto das ações humanas. O consumo de matérias-primas e de fontes de energia, o esgotamento da fertilidade do solo, o acúmulo de lixo, a poluição da terra, do ar e das águas chegaram a um nível tal que já ameaça a continuidade da vida. O efeito estufa, a elevação do nível dos mares, as secas e inundações, as tempestades e furacões, a escassez de água potável, as ondas mortais de frio e calor, a desertificação, a extinção em massa de espécies animais e vegetais, a multiplicação de vírus e bactérias mortais, etc.; tudo isso são conseqüências da ação irracional do capitalismo sobre a natureza.
    
    Superação da alienação    

    Na natureza, a cada ação corresponde uma reação igual e contrária. Os desastres naturais não são resultado de castigo divino, mas reações naturais aos desequilíbrios provocados pelo capitalismo. Esses desastres atacam justamente as populações mais vulneráveis, os pobres, os pequenos camponeses, os moradores das periferias das metrópoles, os segmentos mais desprotegidos da classe trabalhadora, que somente acessam uma fração insignificante das riquezas geradas pelo trabalho social.
    Os desequilíbrios não podem ser corrigidos sem uma ruptura com a lógica do capital. O capital é uma força social inerentemente incontrolável e submete ao seu controle todas as demais relações sociais. Não é possível impor restrições às atividades das grandes corporações capitalistas. Não existe Estado ou legislação capaz de impedir essas corporações de seguir explorando a natureza de forma irracional. Não existe pressão dos consumidores capaz de forçar as empresas a produzir de forma ambientalmente responsável A competição entre as empresas e a corrupção das instituições que teriam o papel de fiscalizar suas atividades abrem as portas para novas transgressões a cada remendo imposto pela pressão social.
    Para restaurar o equilíbrio natural e reverter os graves danos já causados é preciso ao mesmo tempo reverter a lógica que dirige o emprego das forças produtivas sociais, direcionando-as para o atendimento das necessidades humanas. É preciso estabelecer racionalmente o que a humanidade precisa produzir e de que forma isso pode ser produzido sem afetar a capacidade do planeta de seguir fornecendo indefinidamente os recursos de que necessitamos. Ao invés de produzir a infinidade de objetos inúteis em que estamos entulhados, o trabalho social passaria a produzir aquilo de que os seres humanos realmente precisam para viver. Isso por si só já teria grande impacto na reversão dos danos ambientais.
    Mas isso só é possível com o fim do trabalho alienado, ou seja, com a conquista do controle dos trabalhadores sobre seu tempo e seus instrumentos de trabalho. Para isso é preciso romper com a propriedade privada dos meios de produção e com a divisão da sociedade em classes. Somente uma humanidade sem classes pode se relacionar de forma racional com seu trabalho, direcionando seu tempo e recursos para produzir aquilo que realmente é necessário e considerando o equilíbrio da natureza e a continuidade da vida. Ao mudar a relação do homem com o trabalho, muda-se também a relação com a natureza.
    Para a natureza é indiferente que o planeta seja habitado por seres inteligentes ou por bactérias, pois o planeta seguirá seu curso em torno do sol, quer sejam os homens os seus passageiros ou sejam os microorganismos. Para o homem, entretanto, a preservação de certas condições indispensáveis para a sua sobrevivência, como ar respirável, água potável, terras férteis, temperaturas suportáveis, etc., deve ser resultado de sua ação consciente e coletiva. Essa ação passa necessariamente pela revolução social, pela superação da lógica do capital e pela construção do socialismo, único regime capaz de devolver ao homem o controle sobre seu trabalho, sua humanidade e sua relação racional e sustentável com a natureza.    
 

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