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“Entreatos” (Debate sobre os filmes da campanha de Lula em 2002)


13 de dezembro de 2008

ENTREATOS (DEBATE SOBRE OS FILMES DA CAMPANHA DE LULLA EM 2002)

            Nome original: Entreatos

            Produção: Brasil

            Ano: 2004

            Idiomas: Português

            Diretor: João Moreira Salles

            Roteiro:

            Elenco: Lula, José Dirceu

            Gênero: documentário

            Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            Uma das maneiras de se avaliar um filme é pelas reações dos espectadores no momento da exibição. É este aspecto que predomina na presente avaliação, que se refere a uma sessão “avant-premiere” do documentário “Entreatos” realizada na USP em 22/11/2004. Numa audiência composta por estudantes de ciências humanas da USP, a reação a um filme que mostra a campanha eleitoral de Lulla em 2002 seria uma reação inevitavelmente cínica. Uma platéia que acompanha de perto os acontecimentos diários da política observa com um cruel senso crítico o passo a passo da campanha de 2002. O olhar dominante nessa platéia é o de quem procura, nas cenas da campanha, os lapsos verbais e desvios que anunciam preliminarmente os rumos que seriam tomados pelo futuro governo Lulla então em gestação.

            Depois de 2 anos de governo do PT, esse público “especializado” já tem uma visão formada sobre esse governo e ao confrontar suas impressões com o registro da campanha em que este se elegeu, diverte-se com o que parecem ser confissões inadvertidas daquilo que estaria por vir. Realiza-se uma espécie de “arqueologia da catástrofe”. Aos primeiros sinais que anunciavam os rumos do governo do PT, ou seja, do ponto de vista dessa platéia, os seus equívocos, a reação era de riso. Gargalhadas insanas eclodiram em vários momentos da projeção.

            Uma parte das gargalhadas pipocou em reação irônica a essa visão retrospectiva da origem dos atuais desencontros. Mas uma boa parte se deveu a um aspecto humorístico inerente ao personagem Lulla. Não há, a rigor, como separar os momentos de comicidade “cínica”, não-programada pelos realizadores do filme, daqueles que se originam do humor espontâneo do personagem. O qual se desejava retratar em todas as suas inevitáveis facetas.

            Seja facetas cômicas, trágicas ou tragicômicas, a câmera registra todas. A presença constante da câmera gera uma intimidade “a la Big Brother”. A câmera é uma espécie de inconveniente com a qual o político, tanto quanto as celebridades do “show business”, tem que conviver. É um mal necessário ao seu ramo de trabalho. Há sempre câmeras em torno de Lulla, fotográficas e filmadoras. Ele mesmo se queixa disso. Inevitavelmente, ele é sempre um personagem, na medida em que está sempre encenando para alguma câmera. E Lulla tem consciência disso. Diante da necessidade permanente de encenar, uma certa comicidade espontânea é também inevitável.

O que indica que a abordagem que chamamos de “cínica” talvez não seja a mais adequada para este objeto. E que com certeza não é a única abordagem cabível. Há mais de um discurso possível a ser encontrado nos “Entreatos”. No caso presente, um certo cinismo acabou sendo inevitável, em vista do fato de este escriba se alistar entre aqueles que vêem mais erros do que acertos (a desproporção é esmagadora) no governo Lulla. Essa abordagem inevitavelmente predominou na busca das cenas e elementos do filme que seriam considerados dignos de nota.

Algumas frases soaram sinistramente premonitórias. Por exemplo, há um momento em que Palocci está receitando remédios para a congestão nasal de Lulla. Alguém da equipe presente no avião pergunta: “você confia em médico do PT?”. Em vista da política econômica aplicada com rigor medicinal pelo Dr. Palocci, descobrimos o motivo da desconfiança e consideramo-la bastante justificada.

Numa coletiva à imprensa estrangeira, alguém pergunta a José Dirceu se a sua experiência em Cuba teria algo a contribuir para o governo do PT. Dirceu, antes tido como “aquele que faz a cabeça de Lulla” dá a resposta que se tornou célebre, de que Lulla é quem fez sua cabeça. Mas antes disso, o próprio Lulla reitera a pergunta do repórter, dizendo que até hoje “nós do PT” queremos descobrir para quê serviu a experiência guerrilheira de Dirceu. A maneira sumária de desqualificar as experiências da esquerda pré-PT é chocante pela arrogância e pela ironia, ainda que seja explicável pelo desejo de fornecer uma piada e criar familiaridade com os pontos de vista dessa imprensa estrangeira. Num momento posterior será sintomática a maneira como outras alternativas de luta social por via não-eleitoral serão desqualificadas.

            As admissões mais surpreendentes prosseguem. “O mais importante não é o que você diz, mas como as pessoas interpretam o que você diz”, ensina o segredo o próprio Lulla, citando o que parece considerar uma consumada máxima de sabedoria política. Parecer é mais importante do que ser. O filme aborda com competência clínica o ridículo carnaval de uma campanha eleitoral. Ser candidato é sujeitar-se a um circo. Gravar programas, fazer comícios, fazer promessas, esse é o jogo.

A presença de Duda Mendonça a todo o momento dá a impressão de que o filme, mais do que tratar de Lulla, trata de como se faz uma campanha eleitoral. A todo momento, os passos da campanha são orientados e coreografados por Duda. A noção de que tudo não passa de um circo fica evidente quando da apresentação do debate final antes do 2º. turno.

Temos então uma genial “desconstrução” cinematográfica do debate. A filha e funcionária de Duda Mendonça alimenta a equipe do candidato com as impressões colhidas de imediato em grupos de controle de espectadores selecionados para dar o “feedback” instantâneo da estratégia adotada. Espectadores estes cuja opinião serve de amostragem da percepção do público do desempenho do candidato, para que este seja ajustado instantaneamente. À maneira de um filme de ficção, temos o momento de suspense em que o “mocinho” ameaçou vacilar diante do adversário. Mas tudo “deu certo” no final…

Para que sejamos brindados com uma amostra do clima que cercava a eleição, temos a frase de um eleitor que passa de moto diante do carro e diz a Lulla: “você é a última esperança!”. O próprio Lulla é menos dramático. Ele brinca com aqueles que esperavam a vitória já no primeiro turno. No final da tarde do 1º. dia de votação, o QG da campanha estava coalhado de oportunistas de plantão, à espera de uma possível festa da vitória. Todo brasileiro tem um quê de penetra. A esse respeito evoca-se o testemunho, numa outra cena, do curioso penetra que pegou carona no avião da campanha. Quando porém ficou certo que haveria 2º. turno, todos os penetras desapareceram. Lulla ironiza o clima de velório, como um alegre morto que ressuscita e não se importa com a tristeza alheia, porque sabe que as coisas não terminaram.

            Mas isso ainda são curiosidades superficiais da campanha. O filme revela mais interesse quando apresenta elementos que permitem tentar definir as feições do futuro governo. Lulla confessa que tem medo de ser engolido pela máquina do governo. Não lhe agrada por exemplo a idéia “daqueles militares atrás dele dando palpite”, como dão a FHC. Mas alguém lembra, tranqüilizadoramente, que a função deles é meramente ritual. Quer dizer que os militares não servem para nada? “Ah, bom”. Parece que alguém se esqueceu de avisá-los, pois acabam de derrubar um ministro. Incontinências verbais como essa são inevitáveis num filme de campanha eleitoral. Se ao menos a equipe de Serra tivesse registrado essas e outras pérolas, teríamos no mínimo uma disputa mais apertada…

            Mas esse risco está afastado. Lulla já venceu. Podemos ficar “tranqüilos”. Duda Mendonça informa a Dirceu, quando a vitória é anunciada: “está acabado”. Essa é a visão do marqueteiro, para quem o trabalho termina com a campanha eleitoral. O que os políticos fazem na “entresafra” entre as eleições não lhe interessa. Dirceu responde, obviamente, “está acabado não, está começando”.

            Usa-se aqui o exemplo desse deslize em relação aos militares para ressaltar o fato de que um filme como esse só se tornou possível porque a equipe do PT tinha a certeza de sua vitória na campanha. Numa disputa em que o candidato adversário tivesse reais chances de vencer, a tensão seria muito maior e não seria concebível a presença de uma equipe de filmagem estranha a registrá-la. O que não significa porém que “Entreatos” seja uma supérflua coletânea de momentos festivos. Trata-se de um filme que vai muito além disso e que como toda realização estética significativa propicia momentos de uma legítima reflexão, para além da cínica “arqueologia da catástrofe”.

O momento decisivo a esse respeito é o que foi captado em um jatinho numa viagem de volta do Amapá, numa cena de cerca de quinze minutos, que constitui o núcleo dramático do filme. Lulla debate animadamente com assessores e nos apresenta em estado puro o seu “pensamento político”. Em certo momento ele diz que acredita na recuperação do ser humano. O ser humano no caso é José Sarney. É um dado triste, prossegue Lulla. “O único líder de expressão nacional sou eu”. Ele diz isso não em tom de jactância, mas de lamentação.

            No debate em pleno vôo, essas observações ora problemáticas, ora pertinazes se sucedem. Alguém pode tentar desculpar o Presidente pelo fato de estar em campanha, estar exausto, estar debatendo política 24 horas por dia, não poder organizar previamente suas falas. Mas é justamente para isso que serve o documentário, para captar falas que não sejam uma “armação” como a do debate.

Lulla diz que Lech Walesa (líder sindical dos anos 80 que foi Presidente da Polônia nos 90) era pelego desde o começo. Quando de sua estada na Europa, ele viu Walesa receber milhões em contribuições para sua causa, porque estava lutando para derrubar o comunismo. E ele próprio, Lulla, não recebeu nada. Por que? O tom nesse momento é de queixa. Pode-se interpretar a queixa de Lulla da seguinte maneira, com o risco inerente ao procedimento interpretativo de se pôr palavras na boca de quem não as disse: “Eu também deveria ter recebido contribuições. Eu também estava lutando para derrubar o comunismo no Brasil. Será que ninguém percebia?” Lulla era o cavalo de Tróia anti-socialista dentro do movimento de esquerda brasileiro.

            O debate prossegue acalorado. O MST é classificado como um movimento guerrilheiro, porque nos seus acampamentos havia bandeiras de Che Guevara. O membro da equipe se refere à campanha de 1994, quando os acampados do MST receberam a comitiva de Lulla e o puseram contra a parede: “de que lado vocês estão afinal de contas?”. O MST, legítimo representante do campesinato brasileiro, historicamente espoliado, colocou de forma frontal a questão da lealdade de classe. Lulla estaria com eles ou com os latifundiários/grileiros? A resposta dos dirigentes petistas? “Saímos dali correndo”, diverte-se um assessor, como se estivessem na ocasião escapando de um hospício.

            Lulla endossa essa percepção quando diz que a tese dos intelectuais ligados ao MST é absurda. Esses intelectuais querem fazer um longo trabalho de base para, em 30 anos, converter 30% da sociedade ao socialismo. E só então chegar ao poder. A tese é absurda, diz Lulla, porque em 30 anos ele não vai mais estar vivo. Ou seja, o que importa é vencer a eleição agora. Mas e o socialismo? “Ora, depois veremos o que se faz com o socialismo”. Mais uma vez, estamos colocando respostas na boca de quem não as disse. Mas a continuação lógica do diálogo admite esse desdobramento.

Lulla estava questionando os métodos do MST, ou seu objetivo final? Não o sabemos. E qual é o seu próprio objetivo? Será o mesmo do MST? Não o sabemos, pois essa questão foi deixada na ambigüidade do não-dito. E só temos que lamentar a infelicidade de, neste documentário, não podermos interrogar diretamente o objeto a respeito. Não se trata de uma questão que não existe, pois o tema foi trazido à baila de outra maneira. O diálogo no avião projeta a futura relação entre o PT e o governante Lulla. O partido existe para fazer cobranças e exercer o papel de “consciência crítica do governante”, explica o então candidato. Mas “o partido não pode abandonar o governante”, diz Lulla, como que já se antecipando ao que iria acontecer.

Diante desta frase, tragicamente premonitória, já não há mais muito o que dizer. Podemos encerrar melancolicamente o comentário com essa confissão. A frase ganha conotação quase macabra nos dias de hoje com as saídas consumadas de nomes históricos do PT como José Graziano já no primeiro ano do mandato, Ricardo Kotscho e Frei Betto recentemente, Carlos Lessa (que não era do PT mas representava uma divergência na linha do governo), e anuncia um futuro não muito promissor para a heróica Ministra Marina Silva. Para não falar nos dissidentes do PSOL. Ou do PSTU…

Daniel M. Delfino

23/11/2004