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“A Queda”: Contradições do nazismo


13 de dezembro de 2008

“A QUEDA”:

CONTRADIÇÕES DO NAZISMO

            Nome original: Untergang, der

            Produção: Alemanha, Itália, Áustria

            Ano: 2004

            Idiomas: Alemão, Russo

            Diretor: Oliver Hirschbiegel

            Roteiro: Joachim Fest, Traudl Junge

            Elenco: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara, Corinna Harfouch, Ulrich Matthes, Juliane Köhler, Heino Ferch, Christian Berkel, Matthias Habich

            Gênero: drama, história, guerra

            O filme alemão “A Queda” vem oportunamente apresentar os momentos finais da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, no momento em que comemoramos, em 8 de maio último, os 60 anos do fim dos combates na Europa. “A Queda” é baseado em livros de personagens que acompanharam de perto os eventos finais do conflito, na condição de elementos próximos de Hitler e com ele refugiados no seu bunker em Berlim. Esses personagens, como a secretária Traudl Junge, constituem o eixo narrativo do filme. Ainda que, inevitavelmente, a história gire em torno do próprio Hitler, permitindo que o ator Bruno Ganz roube a cena no papel. Sua interpretação constrói um personagem extremamente verossímil e fascinante.

            O que demonstra uma coragem notável, pelo fato de que o nazismo é tratado como o próprio mal absoluto pelo cinema e pelo senso comum em geral. O mal absoluto ganha contornos concretos nessa produção. O que o filme possui de qualidade histórica, lhe falta, porém, em acessibilidade cinematográfica. Assistí-lo não é uma experiência das mais suaves, com suas quase três horas de duração, no ritmo arrastado típico do cinema europeu e da meditativa estética alemã. Suave ou não, a experiência proporciona uma aproximação bastante proveitosa das questões que envolvem Hitler, o nazismo e a Segunda Guerra.

Na leitura predominante sobre a Segunda Guerra Mundial, o conflito foi causado pelo nazismo alemão, pelo fascismo italiano e pelo “militarismo” japonês. Os três componentes do Eixo são tratados como os únicos “culpados” pela guerra, cujo maior “crime” teria sido o extermínio de seis milhões de judeus em campos de concentração. Essa leitura está correta em alguns de seus elementos fundamentais: não se discute que o nazismo seja o paroxismo do mal e que o holocausto judeu seja um crime inominável.

Mas a leitura não está completa. O nazismo e o fascismo são movimentos político-ideológicos de contornos bem definidos, que podem ser classificados dentro de uma mesma família. Às vezes, diz-se “nazi-fascismo”, ou inclui-se o nazismo como “parte” do fenômeno do fascismo, definido como um “movimento” mais geral, iniciado por Mussolini na Itália, que incluiu também os regimes da Espanha de Franco, do Portugal de Salazar, da Hungria de Horty (do Estado Novo de Vargas?), etc.; ainda que a Alemanha de Hitler tenha se mostrado o mais formidável deles.

Esse grupo de regimes pode ser identificado por um programa comum a ser implantado em face do fracasso generalizado da democracia liberal-burguesa européia nas primeiras décadas do século XX. Nazi-fascismo, social-democracia e comunismo (stalinista) disputavam encarniçadamente os despojos da democracia liberal-burguesa, enfrentando uns aos outros e aos supérstites daquele regime, estilhaçado pelas catástrofes da I Grande Guerra e de crises como a de 1929.

Mas o que é o tal “militarismo” japonês? Porque ele se encaixa no Eixo? Por afinidade ideológica ou por conveniência tática? Qual é a natureza comum desses regimes? E qual é a sua diferença essencial em relação aos Aliados? Será a “democracia”? E quanto à União Soviética de Stalin, um regime tão terrorista quanto o de Hitler? O que explica sua presença na lista de Aliados? A agressão alemã? Há uma diferença fundamental entre a I e a II Guerra Mundial, no sentido de que na II o “bem” e o “mal” podiam ser nitidamente discernidos? Até que ponto ambas não passam de gigantescas confrontações interimperialistas? Pela presença da URSS no segundo conflito?

O quadro dos grandes confrontos da era de catástrofes que foi a primeira metade do século XX somente se torna inteligível, como qualquer período da História, à luz dos movimentos da luta de classes, que explicitam concretamente o papel objetivamente progressista ou regressivo de cada movimento político ou tendência ideológica em disputa pela hegemonia. O filme “A Queda” traz elementos que ajudam a clarificar o caráter de classe do regime de Hitler e das forças envolvidas na Segunda Guerra de modo geral.

Voltemos, pois, ao filme. A princípio, trata-se de mais uma reflexão sobre a facilidade com que as pessoas se deixaram seduzir pelo nazismo. Traudl Junge é uma jovem bávara que conseguiu o emprego de secretária particular de Hitler, encarregada de datilografar os discursos do Führer. Chama atenção, na cena em que ela é selecionada, a maneira como as mulheres ocupam posições claramente subalternas. O mundo dos anos 40 era ainda totalmente machista. Aos mais afoitos, adiantamos que para Hitler uma secretária era apenas uma secretária, não tinha as mesmas funções que lhes atribuía Bill Clinton.

A secretária ficará com o Führer até o fim, testemunhando a agonia de seu regime, no claustrofóbico ambiente do bunker. Nas horas finais, a sede do regime nazista se resume a um bando de generais bêbados e secretárias batendo papo com os guardas, nos corredores em que Joseph Goebbels e sua esposa regiam um coral infantil formado por seus seis filhos, enquanto o Führer, em seu gabinete, alimentava Blondi, sua cadela pastora-alemã. Em outra cena, Hitler discute métodos de suicídio na sala de estar, surrealisticamente. Nesses momentos, ele centraliza as atenções como se fosse um grande pai de família, de cujo humor depende a estabilidade da casa. O humor da casa não anda lá muito bom, já que papai-Hitler tem freqüentes crises histéricas com as derrotas que se multiplicam na guerra.

Têm-se criticado o filme por supostamente humanizar Hitler em cenas como essas. Ora, essa crítica é totalmente vazia. Hitler era um ser humano, ou seria por acaso um alienígena ou um vegetal? Ele era humano, do contrário não seria explicável. Himmler o considera louco, por decidir permanecer em Berlim, quando o Exército Vermelho soviético já punha em cerco a capital do Reich. Fegelein, assistente do chefe da SS, explica essa loucura com sua naturalidade de boêmio-aventureiro: “O que se pode esperar de um abstêmio, não-fumante, vegetariano (senão que enlouqueça)?”

Hitler não era louco, no sentido patológico, psiquiátrico, mas era bastante perturbado. As bombas caíam sobre o bunker e não o impediam de fazer planos com as maquetes para a reconstrução de Berlim ao lado de seu amigo, o arquiteto Albert Speer, o único que entendia suas intenções de criar uma “civilização superior”. O sonho de Hitler, tal como este o entendia, era de natureza estética. A transformação das cidades alemãs em ruínas facilitaria a sua reconstrução. O fascínio pelas ruínas gregas clássicas guiava o ideal estético de Hitler e Speer, que desejavam ressuscitar o esplendor helenístico no “Reich de mil anos”.

A única coisa que se pode dizer em defesa de Speer é que, como encarregado pelas construções e infra-estrutura do governo, recusou-se a pôr em prática a política de terra devastada ordenada pelo Führer. E por essa desobediência, Hitler recusou-lhe o aperto de mãos de despedida. Hitler não era louco, repito, mas era fanático. Speer falhou com ele por se recusar a destruir a Alemanha e acabar com as chances de sobrevivência do povo alemão. Hitler, que estava disposto a sacrificar o povo inteiro para perseguir seu ideal estético de sociedade, desprezou Speer como um artista e idealista. “Numa guerra como essa não há civis”, ele chegou a dizer. Explicava-se a destruição do povo alemão como uma espécie de ditado da natureza, no espírito do mais rasteiro darwinismo social. “Compaixão pelos fracos é um pecado contra a lei da natureza”, ele diz.

Temos, portanto, um homem perturbado e fanático, mas não um louco. Alguém que fazia de seus preconceitos pequeno-burgueses uma “filosofia da História”. Uma “teoria” capaz de explicar o mundo e o papel da Alemanha (a pátria da “raça ariana”). Essa teoria, o “Nacional-Socialismo”, não passa de um grosseiro amálgama de preconceitos e rancores do senso comum: anti-semitismo, anti-intelectualismo, chauvinismo, xenofobia, darwinismo social; mas seduziu o desesperado povo alemão, com sua visão trágico-romântica da História. Esse conceito, o “Nacional-Socialismo”, é totalmente vazio, ainda que, pronunciado em alemão, o nome pareça bastante imponente.

Magda Goebbels diz que não vale a pena viver num mundo sem o “Nacional-Socialismo”, e isso justifica o seu suicídio e o de seus seis filhos. Com essa atitude da matrona nazista, o “Nacional-Socialismo” parece ganhar a nossos olhos a dignidade de uma “causa” pela qual vale à pena morrer heroicamente. Goebbels e a mulher se suicidam com a proverbial frieza germânica, assim como foi executada a morte dos filhos. Ao cobrir o rosto das crianças, uma a uma, frau Goebbels lhes descobre os pés. Não há um cobertor de mentiras amplo o bastante para ocultar a História, parece dizer o filme sutilmente com essa cena, exibida também com a metódica mecanicidade germânica.

Mas o que é afinal esse “Nacional-Socialismo”, sem o qual não se pode viver? Eu sou nacionalista, porque amo meu país, e sou socialista, porque sou humanista. Logo, eu sou “Nacional-Socialista”? Eu sou nazista? Nazista? Pronunciado assim no seu apelido diminutivo, “nazismo” assume imediatamente a feição de um adjetivo para crueldade e autoritarismo, de conotação obviamente negativa. Mas prossigamos na análise. O socialismo é uma causa internacionalista, logo, o “Nacional-Socialismo” seria uma exceção no movimento, um socialismo apenas para a nação alemã. Ele seria “um tipo de socialismo”, com a diferença de ser exclusivamente nacional.

            O nazismo é um socialismo? Mais do que uma contradição, essa definição é um absurdo. Não foi por simpatia ao socialismo que os grandes industriais alemães financiaram as SS e as SA, as milícias paramilitares nazistas compostas de marginais, vagabundos, aventureiros e lúmpens uniformizados. Foi com esses elementos, e contando com a providencial divisão fratricida da esquerda alemã entre social-democratas e comunistas, que os nazistas disputaram o espaço político da moribunda República de Weimar, na base da briga de rua. Não foi por simpatia ao socialismo que Hitler, já no poder, massacrou, baniu e perseguiu a esquerda, enquadrou os sindicatos e garantiu aos grandes industriais alemães um novo ciclo de acumulação capitalista, calcado no expansionismo e na corrida armamentista dos anos 30.

            Foi a burguesia alemã que entregou o poder a Hitler, para impedir a ascensão da esquerda. Preferiu-se a ideologia irracionalista do “Nacional-Socialismo” ao socialismo real, qualquer que fosse a forma que ele pudesse tomar na Alemanha. Com a agravante de que o líder desse movimento era um homem perturbado e fanático, mas também orgulhoso e estúpido. Incapaz de vencer a guerra que havia precipitado, só lhe cabia desempenhar o papel de herói trágico na pantomima wagneriana que imaginava estar protagonizando. “A Queda” retrata à perfeição a determinação trágica de Hitler.

            Testemunhamos penosamente esse personagem wagneriano de segunda categoria oscilar entre a esperança de vitória e a admissão da derrota. Nunca se sabe no que o Führer realmente acredita. Ele faz questão de manter o teatro até o fim. No meio do massacre, Hitler diz que “é preciso recuperar os campos petrolíferos”, como se ainda estivesse em condições de exercer a função de um estrategista racional, coisa que nunca foi. Hitler estava tão acostumado a ter poder que tinha o hábito de proferir bravatas as mais insanas como se pudesse realizar o que prometia.

Esse hábito se tornou uma segunda natureza e acaba por reduzí-lo ao bufão patético que era, como quando promete aos fanáticos aviadores que o seguiam milhares de jatos para uma nova força aérea. Algumas cenas se repetem como um disco riscado: a qualquer momento, o general fulano-de-tal vai desferir o ataque salvador, rompendo o cerco russo e salvando o III Reich; o que se revelava sempre uma esperança quimérica.

            Cabe a Junge sintetizar bem o clima daqueles momentos: “um pesadelo do qual não se consegue acordar”. O clima de pesadelo interminável está explícito no olhar sempre assustadiço e incrédulo da secretária, realçado pelos belos e expressivos olhos da atriz; e em cenas como a do telegrafista que termina perambulando sozinho num bunker fantasma. De sua parte, Eva Braun, a amante de Hitler, que só assume o casamento às vésperas do suicídio, ri histericamente o filme inteiro, como que para não encarar a realidade. Um exercício de fuga da realidade, é no que se converte a vida da entourage do Führer em suas horas finais.

O próprio Hitler só consegue explicar o fracasso como uma traição da parte dos generais. “Devia ter fuzilado os generais, como Stalin fez”. Os oficiais da Wehrmacht (o exército regular alemão), representantes da velha aristocracia prussiana, como Weidling, provavelmente não apreciavam muito aquele cabo austríaco ignorante, mas cumpriram germanicamente seu dever. E o Führer se lamenta por não tê-los fuzilado, justamente aos generais, que àquela altura são os únicos elementos com algum grau de compromisso com a racionalidade!

            A racionalidade não era o forte de Hitler, nem do regime nazista, com sua confusa sobreposição de hierarquias e estruturas: governo, Partido Nazista, Wehrmacht, SS e SA, milícia popular, juventude hitlerista, etc.; todos desfilando em seus vistosos figurinos. Nas horas finais, os civis eram fuzilados sob a acusação de deserção. O pequeno Peter Kranz, herói ultra-tardio e efêmero da juventude hitlerista, viu seus pais serem mortos pelos mesmos homens a quem seguia dias antes.

O regime de Stalin não era tão irracional, mas era igualmente brutal. Stalin de fato fuzilou os generais do Exército Vermelho, por medo de competição política. Com isso ele decapitou a resistência soviética, que quase sucumbiu à “Operação Barbarossa” alemã. No momento de que tratamos, porém, isso já era passado. O Exército Vermelho havia tomado novo impulso. Testemunhamos aqui os momentos finais da contra-ofensiva soviética. Os russos não têm uma face humana identificável na maior parte do filme e são sentidos apenas por meio das bombas que caem implacáveis. Os soldados só se tornam visíveis no final, dançando a balalaica pela vitória.

            Terminados os combates, a secretária e o pequeno Peter passam, temerosos, pelo cerco de soldados russos. Têm-se tentado censurar Junge por ter permanecido até o fim fiel ao regime. É preciso dizer, porém, que a “heroína” do filme se comporta da maneira mais natural que se poderia esperar nas circunstâncias. Como exigir de uma secretária que perceba a barbárie que era o regime nazista e abandone o Führer no meio do filme, ou melhor, da guerra?

            Claro, não embarcamos aqui no discurso de defesa usado em Nuremberg, em que os nazistas se justificam dizendo que estavam apenas “cumprindo ordens”. Goebbels é muito claro a respeito: “o povo alemão escolheu seu destino, não foi forçado a nada”. Mas uma secretária não é uma oficial da SS, ou seja, não tem o mesmo grau de responsabilidade. No quadro traçado pelo filme, Junge é uma espécie de representante do povo alemão comum. Para o “povo alemão comum”, o nazismo era a forma de governo do país, e era-se fiel a ele como se seria a qualquer outro. Para o cidadão alemão comum, o regime do país era nazista, mas poderia ser stalinista ou monarquista, e mesmo assim esse “alemão comum” o defenderia. O Estado moderno de modo geral sempre pôde contar com um certo grau de chauvinismo espontâneo das massas, como contou na I Guerra.

            O que queremos dizer aqui é que o povo alemão é tão culpado de ter aderido ao regime na II Guerra como o foi na I Grande Guerra. É um pouco mais, porque o regime do país era nazista. Não relativizamos a afirmação de que o nazismo é o paroxismo do mal, mas a completamos pela ponderação de que o imperialismo do Kaiser estava poucos “graus de maldade” abaixo. Assim como o imperialismo britânico, o francês, o estadunidense ou o japonês daquelas mesmas décadas. O nazismo é uma forma um pouco mais degenerada, um imperialismo com hidrofobia.

Hitler, o cão raivoso-mor, entre um latido e outro, diz que “as decadentes democracias ocidentais serão vencidas pelos disciplinados povos do leste”, como se estivesse enunciando uma profunda verdade geopolítica, coisa que não tinha nenhuma habilitação para fazer, na sua condição de absoluto diletante. Chegamos assim ao ponto aludido do lugar do nazismo na luta de classes. Com toda a contradição interimperialista que havia, os Aliados estavam no mesmo campo de classe do nazismo. “A Queda” deixa isso inequivocamente claro. Goebbels não aceita se render para os comunistas. Himmler já sugerira render-se aos aliados, antes de deixar Berlim. Para os nazistas, os Aliados eram apenas adversários, decadentes, mas aceitáveis; enquanto que russos eram o mal absoluto, o nada.

Os russos estavam sob o tacão de um regime, dissemos acima, tão terrorista quanto o próprio nazismo. O stalinismo era um aborto monstruoso do socialismo. No entanto, com todos os retrocessos das décadas de 1920 e 30, o povo russo ainda se achava em alguma medida mobilizado para a defesa de seu país. Em suas veias ainda ardia a chama da Revolução de Outubro. Sob esse ponto de vista da defesa das conquistas da revolução, apenas a Segunda Guerra trouxe a conclusão da guerra civil revolucionária. Os Partidos Comunistas lideraram a resistência ao nazismo na maior parte da Europa. As revoluções que se seguiram à libertação nacional foram também traídas pelo stalinismo, mas isso já é uma outra história…

Daniel M. Delfino

26/05/2005