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“Quarteto Fantástico”: Da corrida espacial à corrida pela fama


13 de dezembro de 2008

“QUARTETO FANTÁSTICO”: DA CORRIDA ESPACIAL PARA A CORRIDA PELA FAMA

(Comentário sobre o filme “Quarteto Fantástico”)

Nome original: Fantastic Four

            Produção: Estados Unidos, Alemanha

            Ano: 2005

            Idiomas: Inglês

            Diretor: Tim Story

            Roteiro: Mark Frost, Michael France

            Elenco: Ioan Gruffudd, Jessica Alba, Chris Evans, Michael Chiklis, Julian McMahon, Hamish Linklater, Kerry Washington, Laurie Holden

Gênero: ação, aventura, fantasia, ficção científica

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            O Quarteto Fantástico foi o primeiro grupo de heróis criado pela parceria entre o roteirista Stan Lee e o desenhista Jack Kirby, no início dos anos 60, na Marvel Comics. Na grande explosão criativa que logo se seguiria, viriam o Homem Aranha, Hulk, Tor, Homem de Ferro, Vingadores, X-Men, etc. As criações de Lee e Kirby naquele período abriram uma nova vertente nos quadrinhos estadunidenses, então dominados há décadas pela gigante DC Comics, dona dos heróis “clássicos” Super-Homem, Batman, Mulher Maravilha, entre outros. Os heróis da Marvel, ao contrário daqueles da DC Comics, não são perfeitos e infalíveis, mas humanos, cheios de defeitos e dilemas.

            Esse “estilo Marvel” de quadrinhos mostrou-se mais sintonizado com a década de 60, com toda a efervescência social e cultural que agitava os Estados Unidos. A editora experimentou grande crescimento e popularidade, ao contrário do que acontecia com os heróis “quadrados” da DC Comics, que refletiam anacronicamente uma cultura estadunidense ainda sem fissuras, sem rachaduras na superfície, o que era objetivamente falso num país socialmente fraturado de alto a baixo. A rigor, a DC somente recuperaria terreno nos 80, quando Frank Miller trabalhou com Batman e John Byrne com o Super Homem, mas isso já é outra história.

(Do ponto de vista de uma História mais geral dos quadrinhos estadunidenses, a retomada criativa dos anos 60 era uma espécie de recomeçar do zero, num terreno devastado pelo macartysmo dos anos 50. A chamada “caça às bruxas”, que também grassou no cinema, expurgou o sexo, a violência e o terror dos quadrinhos, sob o pretexto de proteger as frágeis mentes dos jovens estadunidenses da perigosa intrusão de “valores antiestadunidenses”, em nome da moral e dos bons costumes da religião cristã, contra o comunismo, o ateísmo, o satanismo, a imoralidade, etc. Essa é a história sobre a qual Frank Miller, o melhor autor de quadrinhos daquele país, não se cansa de repisar, como explicação para o atraso dos “comics” estadunidenses. Tanto em termos literários como estéticos, o mangá japonês e os quadrinhos europeus estão anos-luz à frente.)

            Essa caracterização geral dos heróis da Marvel precisa ser contextualizada para cada caso particular. No caso do Quarteto Fantástico, o estilo Marvel era ainda bastante incipiente, pois como foi dito tratava-se ainda da primeira parceria da dupla Lee e Kirby. O Quarteto foi a fórmula que os dois encontraram para explorar as possibilidades narrativas abertas pela novidade então palpitante da corrida espacial. Na versão dos quadrinhos, o Quarteto adquiriu seus poderes através da exposição a “raios cósmicos”, o que se apresentava como mais uma das possíveis ameaças do desconhecido.

            Na nova versão para o cinema, aquele contexto de agitação social e cultural já não existe. Do mesmo modo, o entusiasmo pela corrida espacial arrefeceu, dissolvido por considerações mais práticas, como a “guerra ao terrorismo” (na verdade, guerra por petróleo). Se nos anos 60 a ciência era a porta para experiências transformadoras, no século XXI ela é apenas a abertura para a fama. No novo contexto, a experiência encetada pelo Quarteto se destinava a estudar as possíveis alterações genéticas provocadas pela exposição de organismos vivos às tempestades solares, com vistas a possíveis aplicações práticas em terapia gênica. Nada mais “up-to-date”. Pelo menos, esse foi o peixe vendido ao financiador da experiência, o milionário Victor von Doom. Para este, não é de descoberta que se trata, mas de dinheiro.

Se os demais filmes com heróis da Marvel ainda se beneficiam do conteúdo humano de seus personagens, o filme do Quarteto carece dessa substância. Os quatro fantásticos não enfrentam dilemas como os do Homem Aranha (que precisa pagar as contas, além de salvar o mundo), do Hulk ou dos X-Men (perseguição racial). Não há mais grandes explorações na pauta, grandes descobertas a serem feitas. Inclusive não há um grande vilão a ser combatido. Assim, durante a maior parte do filme, os membros do Quarteto apenas aprendem a lidar com seus poderes.

            Na falta de um contexto mais épico e aventuroso, o filme volta-se para os dilemas pessoais dos membros do grupo, mas sob um ângulo tradicional e limitado, conforme o melodrama estadunidense clássico. Reed Richards é o cientista genial, porém falido; sua inabilidade para expressar suas próprias emoções coincide com a inabilidade nos negócios. Susan Storm é o “sonho de consumo” de todo cientista ou nerd: linda, loira, corpo escultural e ainda por cima, também cientista. Johny Storm é o adolescente tardio, esportista radical e conquistador barato. Ben Grim é o homem do trabalho duro, amigo de Richards e também o mais bem resolvido dos personagens, em sua vida pessoal, pelo menos até o acidente que dá ao Quarteto seus poderes.

            Se na versão dos quadrinhos Victor von Doom é o ditador da fictícia “Latvéria”, no filme ele é o empresário milionário que na juventude chegou a ser colega de universidade de Richards e hoje é seu rival na disputa por Susan Storm. Reedita-se aqui o que foi acima definido como melodrama estadunidense tradicional, a história do perdedor-a-quem-é-dada–uma-segunda-chance-para-superar-os-obstáculos-e-reconquistar-o-amor, a fórmula básica de 99% dos filmes estadunidenses, matriz peculiar da cultura do país. De modo geral, tudo que uma vez deu errado terá que ser consertado e dar certo no final. O acerto de contas está traçado pelo destino, fadado a acontecer custe o que custar. Aqueles que foram humilhados e estão por baixo darão a volta por cima.

Reed e Susan foram namorados na faculdade; eles terão que voltar a ficar juntos. Victor von Doom, hoje milionário, é financiador e patrão de Richards, mas terá que ser superado. A relação entre Reed Richards e Susan Storm é o tipo de relação estereotipada em que o intelectual é incapaz de expressar e dar livre curso às suas emoções. Susan Storm, apesar de no começo estar ligada a von Doom, no que fica caracterizado como “apenas para fazer ciúme”, ainda é a mulher paciente pré-anos 60, que espera por seu homem.

Nesse modelinho bastante banal de drama, o caso mais problemático é o de Ben Grimm. Transformado em Coisa, ele não pode aceitar com facilidade seus novos “poderes”. Adquirir um corpo de pedra é bastante interessante nos quadrinhos, especialmente no aspecto visual. Mas no cinema, onde se busca outro tipo de plausibilidade, torna-se um obstáculo sério para quem tem um casamento a manter. Bem Grimm terá a chance de reverter a transformação e retomar seu corpo de volta, mas como dita a fórmula padrão do cinema estadunidense e sua fixação pela predestinação calvinista, ele descobrirá que aquilo que aconteceu “tinha” que acontecer, e que somente a aceitação de sua nova forma poderá salvar seus amigos.

            Quanto a Johny Storm, a sua transformação em Tocha Humana não passa de diversão. Um novo brinquedo radical com o qual ficar famoso, impressionar as mulheres e ganhar dinheiro. Nada mais típico da “jeunesse doreé” estadunidense contemporânea, alienada e inconseqüente. Ainda assim, não chega a ser um personagem desagradável. Suas brincadeiras infantis com Grimm são o alívio cômico do filme.

Enquanto a “novelinha” do Quarteto se desenrola, a ameaça que o grupo deverá combater surge bastante lentamente, conforme Victor von Doom se transforma no Dr. Destino. Durante alguns momentos de inteligência nos 40 anos da saga do Quarteto nos quadrinhos, alguns artistas como John Byrne chegaram a explorar o Dr. Destino como ditador de um país europeu. No mundo globalizado, apesar do eixo do mal de Bush, isso já não cola mais. Assim, von Doom é um simples empresário inescrupuloso. O mal não está mais no estrangeiro, nem no próprio sistema, mas nas falhas pessoais de caráter de indivíduos desviados. Susan Storm somente abandona von Doom quando ele se prova um irresponsável, já no decurso da experiência espacial fracassada.

O empresário inescrupuloso é a maçã podre que infecta o cesto, que deverá ser devidamente extirpada pelos mocinhos para que tudo volte a funcionar. É nesse plano que o filme se move. No mais, temos alguns efeitos especiais espetaculares como sempre. É claro que temos o confronto final entre os heróis e o vilão e o gancho óbvio para uma continuação, com o Dr. Destino despachado num contêiner para a… Latvéria…

Daniel M. Delfino

21/07/2005