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A polêmica do feminismo em Mad Max


20 de maio de 2015

furiosa

 

Daniel M. Delfino

A trilogia “Mad Max” antiga se compõe de um bom primeiro episódio, um segundo filme que se converteu em um verdadeiro clássico e um terceiro em que absolutamente nada se aproveita. O que fez do segundo episódio (que tem o subtítulo “The road warrior” no original e “A caçada continua” em português) um clássico foi o fato de que alterou completamente o cenário e o contexto do primeiro filme e situou o protagonista num mundo pós-apocalíptico. Um mundo em que as pessoas guerreiam por gasolina, matam, roubam e enganam sem qualquer escrúpulo, e o herói do filme não é diferente.
Mad Max 2 causou impacto quando do seu lançamento, em 1981, como um filme pós-apocalíptico num mundo ainda pré-apocalíptico. Hoje vivemos num mundo pós queda do Muro de Berlim e pós “fim da história”, um mundo em que se proclamou a barbárie neoliberal como a forma definitiva de sociedade humana. Nesse mundo já portanto pós-apocalíptico em que vivemos, mais um filme pós-apocalíptico como o novo episódio de Mad Max, que tem o subtítulo de “A estrada da fúria”, já não causa mais o mesmo impacto. Já estamos habituados à violência e amoralidade, que não causam mais o pavor e a angústia que causavam na época do segundo episódio.
É claro que o diretor, o mesmo George Miller da trilogia original, tentou causar impacto, e usou todos os recursos do cinema de hoje para produzir um filme ainda mais violento, megalomaníaco, grotesco e vertiginoso que o original. Para quem tem o senso de humor apropriado para este tipo de produção (é o caso deste autor), trata-se de uma excelente pedida. De resto, a receita do cinema para qualquer continuação é mesmo aumentar a dosagem dos elementos que fizeram sucesso no filme anterior, e isso vale também para uma continuação produzida décadas depois.
Mais do que uma simples continuação turbinada, “A estrada da fúria” parece se inscrever numa espécie de tendência de reciclagem de clássicos que está na moda do cinema atual. Recentemente, George Lucas filmou uma segunda trilogia “Star Wars”, com décadas de intervalo em relação à primeira, contando (e estragando) a origem do vilão Darth Vader, convertido em um garoto mimado. Spielberg filmou um novo episódio de “Indiana Jones”, muito aquém do encanto os três primeiros. Também foi contada num filme medíocre a origem de Hannibal Lecter, clássico vilão do “Silêncio dos Inocentes”. A série “Alien”, cujos dois primeiros episódios são igualmente clássicos e excepcionais, também teve uma releitura sem nenhuma imaginação em “Prometheus”. E “O Exterminador do futuro”, outro clássico apocalíptico dos anos 1980, também segue tendo novos episódios, com alguma periodicidade.
Em todos esses casos, há uma tentativa de explorar a aura e o apelo de personagens e cenários clássicos, mas sem a mesma criatividade que gerou esses clássicos, o que resulta em banalidades que profanam e mancham a fortuna crítica dos filmes originais. Na maior parte dos casos, é melhor ignorar e rejeitar essas tentativas de recriar filmes e histórias clássicas e ficar com a boa memória dos originais. Numa sociedade que perdeu a capacidade de imaginar o futuro, a indústria cultural está condenada a reciclar o passado.
Mas isso apenas parece ser o caso de “A estrada da fúria”, pois há um elemento que tornou este filme digno de comentário, a suposta presença de uma propaganda feminista. E quem detectou o indício de feminismo foram ativistas estadunidenses defensores do machismo. Num site chamado “Return of the kings” (O retorno dos reis), um apedeuta chamado Aron Clarey (que também responde pela alcunha de “capitão capitalismo”, que já dá uma ideia do tipo de sistema social e ideologia que defende) conclamou os “homens de verdade” a não assistirem o filme. Segundo este gênio da estupidez patriarcal e neoliberal, o novo Mad Max é uma armadilha que seduz os homens com cenas de tiroteios e explosões, mas na verdade entrega um roteiro em que a personagem de Charlize Theron se sobressai em relação ao protagonista Max. Portanto, cuidado homens! Sua masculinidade está ameaçada!
Para além da questão de que a premiada sul africana é muito melhor atriz do que Tom Hardy, no papel que já foi de Mel Gibson, e portanto merece aparecer mais, o infame blog conseguiu seus imerecidos 15 minutos de fama e de merecidamente se tornar motivo de deboche e escárnio por conta do ridículo das posições que defende. Além disso, o blog machista conseguiu evidentemente o efeito contrário, pois o marketing do filme foi alavancado pela polêmica, conforme veículos de mídia burgueses, mas também setores do jornalismo e da crítica cultural mais próximos da esquerda, entraram na brincadeira e trataram de promover o novo Mad Max por conta justamente dos seus méritos feministas.
Apesar do aspecto anedótico e hilariante dessa polêmica, não podemos deixar de alertar para o perigo de sites como “Return of the kings”. Não se trata apenas de um site, mas de um movimento de defesa dos “direitos dos homens”, e não dos direitos humanos no sentido a que estamos acostumados, mas do “homem” no sentido sexual, oposto às mulheres. Os ativistas desse movimento defendem que homens e mulheres são biologicamente diferentes e portanto os seus papéis sociais também tem que ser diferentes, condenando a homossexualidade, a transsexualidade, o divórcio, a escolha de não ter filhos, o direito das mulheres exercerem as mesmas profissões, etc. O site “Return of the kings” diz besteiras como essa: “o socialismo, o feminismo, o marxismo cultural e o combate por justiça social pretendem destruir a unidade familiar, decrescer a taxa de fertilidade e empobrecer o Estado por meio de benefícios sociais”.
Esse movimento dos “direitos dos homens” ardilosamente usa a mesma linguagem e os códigos do feminismo hoje predominante para combater o próprio feminismo. Segundo o movimento, os homens brancos heterossexuais estão sendo supostamente demonizados pelas mulheres, negros e LGBTs, e portanto precisam se defender à altura. As bases teóricas do feminismo e dos demais movimentos de minorias hoje predominantes criaram essa armadilha. O feminismo, o movimento negro, movimentos indígenas, LGBTs, etc., tem baseado suas reivindicações no direito de serem reconhecidos em suas identidades. Essa política de identidades se alicerça numa ideologia liberal funcional ao capitalismo, que reconhece plenamente os direitos das minorias, desde que não se coloquem como classe oposta ao sistema do capital.
O conteúdo essencialmente liberal dos movimentos de minorias, a sua falta de alicerces históricos, classistas e anticapitalistas, se volta contra eles, pois, nos termos em que se fundamentam, o movimento de “direitos dos homens” é um produto legítimo da mesma fonte. Se cada grupo social tem o direito de defender sua identidade, os homens brancos heterossexuais também o tem. Se o problema dos conflitos sociais é a identidade étnica, sexual, religiosa, etc., dos grupos em que se subdivide a população de cada país, então o grupo dos homens brancos heterossexuais também se qualifica como um grupo com uma identidade do mesmo caráter.
Para refutar o movimento de “direito dos homens”, é preciso ir além da política que se baseia em “identidades” (com sua fundamentação liberal, pós moderna, irracionalista e relativista) e buscar argumentos históricos, classistas e anticapitalistas. Os homens brancos heterossexuais não têm direitos enquanto grupo, têm privilégios. São formados com a ideia de que é natural que as mulheres façam as tarefas domésticas, cuidem das crianças, idosos e doentes, estejam em postos de trabalho subalternos, sejam vistas e tratadas como objetos sexuais para o prazer do homem, etc. Tudo isso é naturalizado na formação do homem, o que faz com que se comportem de maneira inevitavelmente machista. É preciso muita luta para remover essa formação opressiva.
A opressão das mulheres é real e as feministas têm todo o direito de reivindicar a igualdade. As diferenças entre homens e mulheres se originaram em bases biológicas, mas isso aconteceu na pré-história. Hoje já não somos trogloditas (com exceção dos autores do “Return of the kings”), e vivemos milênios de opressão das mulheres que foram historicamente construídos. Há todo um aparato de práticas e ideias de dominação, acrescentados pelas diversas sociedades de classes, que há milênios oprimem as mulheres. Essas formas de dominação precisam ser superadas, e para isso é preciso superar a própria sociedade de classes.
O que os defensores dos “direitos dos homens” subentendem como essência da masculinidade, e que julgam necessário defender contra o feminismo, é a pura força bruta. Para eles, não haveria nada de errado em Mad Max se fossem apenas tiroteios, explosões, pancadaria. Se não houvesse a personagem de Charlize Theron e sua tribo de guerreiras, portadoras da esperança de um futuro menos bárbaro, estaria tudo certo. O homem “oprimido pelo feminismo” (!!!) poderia festejar no cinema o macho em estado puro, ou seja, o individualismo, a competitividade e a violência!
Ao adotar essa posição, os ativistas dos “direito dos homens” estão justamente bloqueando qualquer possibilidade de melhorar a vida dos homens reais. Afinal, o machismo é um sistema historicamente construído e reforçado de opressão sobre as mulheres, mas que tem como subproduto uma opressão suplementar sobre os próprios homens, que são também, de certa forma, vítimas (claro que num grau muito menor do que as mulheres). Os homens são “vítimas” do machismo no sentido de que, para se qualificar para exercer o papel de “homem”, no sentido de “macho”, os indivíduos do sexo masculino são obrigados a mutilar a si mesmos, reprimir emoções e sentimentos, tornar-se agressivos, individualistas, competitivos e brutos.
O conjunto dos caracteres “masculinos” exigidos para que o indivíduo se qualifique como homem, e assim adquira o “direito”, que é na verdade o privilégio, de oprimir as mulheres, pesa também sobre os homens. O sistema de dominação patriarcal cria uma separação entre indivíduos de ambos os sexos, impedindo que compartilhem características psicológicas, emocionais e intelectuais comuns, empobrecendo a ambos. Numa sociedade emancipada, as características que são tratadas hoje como atributos exclusivos de um ou de outro gênero, separadas em pares opostos como razão e emoção, inteligência e sensibilidade, reflexão e impulsividade, desejo e amor, etc., poderão ser desenvolvidas livremente por indivíduos de qualquer sexo e na proporção em que escolherem, sem que sejam socialmente forçados a optar por um pólo em oposição ao outro.
Não é isso que reivindicam os ativistas dos “direitos dos homens”. O que querem é continuar sendo seres emocionalmente e humanamente empobrecidos, para seguir oprimindo as mulheres, em nome da família, da propriedade privada e do Estado. Portando, abaixo o “Return of the kings”, bem vindo Mad Max e viva a Imperatriz Furiosa!