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O filme-gibi do Hulk, o incrível Ang Lee e a teoria dos monstros


13 de dezembro de 2008

O FILME-GIBI DO HULK, O INCRÍVEL ANG LEE

E A TEORIA DOS MONSTROS

(Comentário sobre o filme “Hulk”)

Nome original: The Hulk

            Produção: Estados Unidos

            Ano: 2003

            Idiomas: Inglês, Espanhol

            Diretor: Ang Lee

            Roteiro: Stan Lee, Jack Kirby

            Elenco: Eric Bana, Jennifer Conelly, Sam Elliot, Josh Lucas, Nick Nolte, Paul Kersey, Cara Buono, Todd Tesen, Kevin Rankin, Mike Erwin, Celia Weston, Lou Ferrigno, Stan Lee, Regi Davis, Craig Damons

Gênero: ação, drama, fantasia, ficção científica, thriller

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            Como bom corintiano, não tenho a menor simpatia por qualquer coisa que seja verde. Entretanto, como cinéfilo e ex-leitor de gibis, não poderia deixar de apreciar um bom filme sobre o incrível Hulk. A obra do diretor Ang Lee (o mesmo de “O Tigre e o Dragão) une com perfeição a sétima e a nona artes, o cinema e os quadrinhos. Trata-se de um novo passo na transposição do universo dos quadrinhos para o cinema, transposição que tenho tentado analisar (vide “Somos todos mutantes”, meu texto anterior sobre os “X-Men” 1 e 2) e descrever em termos de uma tendência significativa da indústria cinematográfica atual.

Uma tendência de rejuvenescimento da linguagem e do conteúdo. No contexto dessa tendência, o “Hulk” representa uma boa surpresa. A solução de edição elaborada por Ang Lee, dividindo a tela do cinema em quadros e “virando as páginas” conforme as cenas avançam, procura transmitir exatamente a mesma sensação de se ler um gibi. Essa solução lança um desafio para qualquer novo filme sobre quadrinhos que se venha a fazer posteriormente, pois não há como escapar dela e ao mesmo tempo não há como imitá-la sem incorrer num plágio descarado. Trata-se de uma invenção necessária, pois alguém teria que ter essa idéia algum dia. Depois que a vemos na tela, torna-se uma idéia óbvia. E depois que Ang Lee a teve, percebe-se que todo mundo deveria ter pensado nisso antes.

            Essa originalidade dá uma amostra da genialidade de Ang Lee e de sua ousadia artística. Ousadia como aquela que demonstrou ao fazer os lutadores de “O Tigre e o Dragão” flutuarem no ar, transformando aquilo que seria um simples filme de kung fu em um poético balé marcial. Se essa realização já foi por si só chocante em face das obras anteriores do diretor (como “Razão e Sensibilidade” e “Tempestade de gelo”), que dizer então deste “Hulk”? Como um diretor de filmes de arte e dramas familiares complexos e cheios de sutileza se transforma subitamente num diretor de filmes-gibi?

A resposta é que os filmes-gibi de Ang Lee são também cheios de sutileza e complexidade. “Hulk” é um drama psicológico, mais do que um filme de ação. O drama do monstro verde é uma metáfora sobre emoções reprimidas e os perigos que acarretam quando descontroladas. Mais um produto da mente versátil de Stan Lee (sobre a qual já aludimos em “Somos todos mutantes”), o criador dos gibis do monstro. “Hulk”, o filme, explorando toda a prolixidade dos quadrinhos, foi construído por Ang Lee como uma metáfora para freudiano nenhum botar defeito.

            O confronto entre o dr. Bruce Banner e seu pai, o também cientista David Banner, está estruturado à perfeição como uma amostra do complexo de Édipo. A relação com a mãe era a fonte de estabilidade emocional para o pequeno Bruce. Mas o trauma posterior (não contaremos para não entregar a história) o privou dessa estabilidade. A solução encontrada foi reprimir as lembranças do incidente. Incidente que, como em todo Édipo, foi culpa do pai. Por culpa do dr. Banner, a bomba relógio emocional ficou estocada para o momento oportuno (ou seria inoportuno?).

A bomba estava plantada pelo pai também no D.N.A., mas isso é assunto para mais adiante. O que importa é que o dr. Banner passou sua vida ocultando suas emoções. O que tornou difícil seu relacionamento com a também cientista Betty Ross. A qual busca relacionamentos com homens distantes para entender porque foi momentaneamente “abandonada” pelo pai quando criança.

Pai que por sua vez, na figura do general Ross, representa o arquétipo da repressão e da autoridade. Desde o começo, o general não vai com a cara do dr. Banner. Como qualquer pai com ciúmes da filha, o general não quer saber de nenhum esquisito verde rondando sua filhinha. A repressão pela autoridade do pai na esfera familiar diz respeito à interdição das atividades sexuais da filha. A repressão sexual fica enfaticamente explicitada pela figura do militar. O militar é o símbolo do homem repressivo e reprimido, sexualmente, emocionalmente, socialmente e politicamente castrado. E assim passamos de Freud para Foucault. Logo chegaremos em Marx (como não poderia deixar de ser em uma resenha de minha autoria…).

A antipatia ideológica de Banner contra seu rival, um certo Glenn Talbot com jeitão  de canastrão, mistura-se ao ciúme das investidas deste sobre a dra. Ross, para atuar como um catalisador da transformação do cientista em monstro. O Hulk continua sendo o garoto inocente que quer preservar seus ideais românticos de cientista que trabalha para ajudar a humanidade. Quando alguém se atreve a insultar esses ideais e ainda por cima vir com ares de playboy cantar a sua musa, não há quem resista. A transformação do garoto desamparado em monstro destruidor é também uma face da transformação do nerd em herói, transformação que tanto agrada a Stan Lee. O Hulk é também a vingança dos humilhados e ofendidos.

O que há de mais interessante na personalidade do Hulk é que sua síntese permanece inconclusa. O monstro é pura força bruta, livre de qualquer constrangimento. Ele não hesita em se atirar sobre qualquer adversário, seja homem ou máquina, com a inteligência instintiva de uma criatura que não admite qualquer ameaça à sua existência. Ele não é nem herói nem vilão, como os típicos personagens Marvel em sua concepção clássica. Cabe a nós enquanto sociedade sabermos controlar nossa fúria, o Hulk interior que cada um carrega. Isso pode ser feito pelo carinho, como tenta Betty Ross (e há Hulk que resista a uma Jennifer Connely?), ou pela força, como gostaria o general Ross.

Chegamos assim a um esboço de uma teoria dos monstros. O Hulk de Stan Lee inscreve-se na linhagem tradicional dos monstros da ficção científica. Mr. Hide, o monstro criado pelo dr. Jekill; o monstro criado pelo dr. Frankenstein (monstro que o público insiste em chamar de Frankenstein); e os monstros da ilha do dr. Moureau são os antecessores literários clássicos do gigante verde. Em comum todos eles tem o projeto de seu criador de realizar melhoramentos na espécie humana.

O cientista típico retratado em todas essas histórias de monstro, como bom positivista, quer melhorar a espécie humana melhorando diretamente o corpo físico do homem. A solução tem que estar no indivíduo, o qual é resultado direto de seu D.N.A., que pode e deve ser manipulado no interesse da ciência. O cientista louco que cria monstros é um obstinado para o qual os fins justificam os meios. O positivista divide a realidade em compartimentos e não enxerga a totalidade. A solução individual pela qual o cientista louco quer curar o Homem de sua imperfeição (usualmente, tendo ele próprio como cobaia, a exemplo de David Banner), origina os monstros que acabam se tornando um exemplo perfeito da doença da sociedade.

As utopias da ficção científica fracassam exemplarmente porque os cientistas que as engendram tem em vista o homem como unidade biológica e não o conjunto da humanidade. Querem transformar o indivíduo sem transformar sua relação com a sociedade, o que significa transformar também a própria sociedade. Não basta libertar as emoções e os poderes de um simples indivíduo, pois é preciso modificar todo o contexto social em que esses poderes se manifestam.

No caso do dr. Banner, como vimos, são suas emoções que desencadeiam a aparição do monstro. O Hulk pode ser explicado também no contexto de uma teoria da dupla personalidade. É uma teoria bastante usual na dramaturgia do cinema estadunidense para explicar personagens que fogem ao controle. O público estadunidense ainda não assimilou Freud e sua teoria do inconsciente. Ela parece por demais chocante para seus preconceitos puritanos. A explicação para os atos violentos, os momentos de fúria, tem que recorrer a uma mística e fantástica “segunda personalidade”. Um outro eu maligno ou incontrolável que convive dentro do eu moral e racional. Uma espécie de possessão demoníaca secularizada. Banner diz que faz o que faz por que o Hulk tomou conta de sua personalidade. Ele se refere ao Hulk como “ele”, em terceira pessoa. E confessa que, quando desiste de tentar se reprimir, quando “ele” (que não é outro senão o próprio Banner) toma conta, ele gosta.

Mas a metáfora de Ang Lee vai além do drama psicológico. Alcança também o político. O primeiro adversário de Banner/Hulk é um certo Glenn Talbot, que quer privatizar a pesquisa que o casal Banner/Ross desenvolvem na universidade para vendê-la para os militares. A empresa de Talbot, a Atheon, é o protótipo do tipo de instituição que prolifera no complexo-industrial militar estadunidense neste início de século, germinando como ervas daninhas.

Como explica o próprio Talbot, os militares terceirizaram as atividades mais “interessantes” do negócio da segurança nacional. Transformaram-no numa oportunidade para cientistas inescrupulosos fazerem experiências em segredo e faturarem em cima das patentes criadas. A Atheon quer patentear a força do Hulk. A salvação da lavoura para a combalida economia estadunidense: a aliança entre a indústria farmacêutica e o complexo industrial-militar. Drogas e alterações genéticas para produzir supersoldados, o novo e visionário ciclo de acumulação capitalista.

A reboque dos interesses dos cientistas/investidores, que querem engarrafar o mundo em tubos de ensaio e colocá-lo em prateleiras de supermercado, vêm os militares. Quando a perspectiva das oportunidades financeiras geradas pelo fenômeno Hulk alcança os escalões mais altos, vem a ordem ao general Ross para transferir sua jurisdição sobre a criatura diretamente para a Atheon. A contragosto, o general obedece, como bom militar que é.

O militar representa aqui a boa consciência do sistema e o inocente útil da história. O soldado quer desempenhar uma função heróica de proteger a sociedade de ameaças político-sexuais, papel desempenhado nesse caso pelo Hulk. O general Ross é o protótipo do militar à moda antiga, que compreende o seu ofício como uma função artesanal e um bem público para a comunidade. A cessão do Hulk à Atheon rebaixa a patente do bem público na escala de valores. O Estado neoliberal quer privatizar o exército. O soldado que vê a si mesmo como um servidor público, como o general Ross, está ultrapassado, fora de moda.

Mesmo assim, ele é fiel à sua filosofia ultrapassada e às suas ordens. Ele caça o Hulk com obstinação e tenta de todas as maneiras destruí-lo. Assim como os soldados estadunidenses, obedientes aos ditames do capital imperialista, caçarão ameaças terroristas ao redor do mundo. Por falar em mundo, não por coincidência, o dr. Banner termina o filme buscando o anonimato nas selvas da… Amazônia!

Um sinal inequívoco de que os olhos do capital estadunidense estão voltados para esse estratégico banco genético de biodiversidade. Que ainda por cima é verde e está infestado de ameaças (“terroristas” das FARC, narcotraficantes, madeireiras piratas, etc…). A metáfora não poderia ser mais clara. Se preciso for, na continuação do filme, em “Hulk 2” e na nossa vida real, os marines virão caçar as ameaças aqui nos trópicos. Obedientes como somente bons soldados sexualmente reprimidos e puritanos podem ser. Inventar monstros no exterior é a maneira estadunidense de não ter que lidar com seus monstros interiores. Os estadunidenses inventam as fantasias que eles mesmos devem perseguir para apaziguar sua consciência. Devemos nos preparar para mais monstros verdes saltando pelas redondezas nos próximos anos…

Daniel M. Delfino

27/06/2003