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O culto ao nazismo nas bancas de jornais – Daniel Delfino


29 de abril de 2010

Uma rápida olhada nas bancas de jornal no mês de julho de 2009 revelou a ocorrência de um fenômeno editorial bastante significativo. Há um “boom” de publicações voltadas para a II Guerra Mundial, para o nazismo em especial, e para a figura de Hitler em particular.
Vejam-se os seguintes títulos:
– II Guerra Mundial – Edição Ilustrada – Campos de Concentração – A estratégia de extermínio de Hitler – Holocausto – Organização do Partido – Campos de concentração – Ed. Escala.
– Especial 70 anos da II Guerra – Grandes guerras – Tudo de novo no front – Dia D minuto a minuto – Ed. Abril.
– Coleção Battlefield – Aventuras na história – DVD – As maiores batalhas da II Guerra numa só coleção – A batalha da Grã-Bretanha – Ed. Abril.
– Stalingrado, um duelo mortal entre Hitler e Stalin – Aventuras na história – DVD – A batalha mais dramática da II Guerra Mundial – Ed. Abril.
– Hitler, simbologia e ocultismo – A história secreta do ditador – Anticristo, Lança de Longinus, Suástica, Nazismo, Forças Ocultas – Ed. Escala.
– Segunda Guerra – A história oficial e seus heróis anônimos – Ed. Universo dos livros.
– História revelada – A lança sagrada de Hitler – Os segredos do nazismo – Origem, filosofia, história, influência, simbologia – Ed. Universo dos livros.
– História ilustrada do nazismo – O poder e as conseqüências – 1933 – 45 – Vol. 2 – Ed. Larousse.
– Atlas II Guerra Mundial – Alemanha vs. Inglaterra – Livros Escala.
– História viva – 70 anos da Guerra Civil Espanhola – Ed. Duetto.
– Edição totalmente ilustrada – HOLOCAUSTO – A estratégia de purificação racial de Hitler – Ed. Escala.
– Hitler e os segredos do nazismo – Vol. 1 – Ed. Universo dos livros.
Aparentemente, isso pode significar uma simples curiosidade “inocente”, um interesse neutro pelo conhecimento histórico. Pode haver uma flutuação cíclica do interesse do público leitor, que vai de temas como o nazismo a outros fenômenos históricos, como as cruzadas ou o império romano. Entretanto, a continuidade dessa observação nos meses seguintes demonstrou a consistência do fenômeno. As publicações sobre o nazismo e Hitler continuaram “em cartaz”, e novas publicações apareceram.
Além disso, um exame mais cuidadoso dos títulos revela também que não se trata de simples curiosidade histórica ou interesse neutro. Títulos como “os segredos do nazismo”, “a mitologia”, “a simbologia”, “a filosofia”, “as sociedades secretas e o nazismo”; não têm nada de inocente ou neutro. São títulos pensados para tornar o objeto mais atraente. Disfarçadamente, o sensacionalismo esconde uma apologia do objeto, ajudando a alimentar o fascínio e o mistério.
Para completar, deparamo-nos com a quase total ausência de um contraponto ideológico a essa avalanche de lançamentos sobre o nazismo. Há um ou outro lançamento sobre Ernesto Che Guevara (ver por exemplo: Superinteressante – Aventuras na história – 50 anos da Revolução comunista – Cuba e Che – revista e DVD – Ed. Abril), e se bem que o Che sempre tenha sido um “fenômeno de vendas”, fato cujo significado ideológico também merece uma boa discussão, há uma esmagadora prevalência da direita sobre a esquerda nas bancas de jornal.
Estamos diante de um verdadeiro culto ao nazismo. É certo que não se pode julgar o livro pela capa. Seria preciso fazer o exame detalhado de cada uma dessas publicações para verificar a linha política que defendem. Certamente, nenhum autor ou editora cometerá a sandice de fazer uma apologia aberta do nazismo. Entretanto, independentemente do conteúdo, a simples aparição desse fenômeno editorial é ideologicamente significativo. As publicações podem até mesmo ser academicamente corretas ao mostrar as atrocidades que o nazismo cometeu, os campos de concentração, etc., mas isso funciona apenas como cobertura para uma apologia indireta do fenômeno. Há um gosto sádico no inconsciente coletivo sendo alimentado por esse tipo de mercadoria “inocente” irresponsavelmente cultivado pela indústria editorial. Para bom entendedor, meia palavra basta. É preciso saber tirar as conclusões políticas desse sinistro fenômeno ideológico em processamento nas profundezas da consciência social.
O aparecimento desse “boom” editorial, se não configura uma apologia explícita do nazismo, pode bem significar uma espécie de culto disfarçado. Se não há uma crítica e uma denúncia do nazismo, uma explicação do seu papel histórico de alternativa extrema da burguesia alemã em face da Grande Depressão, etc., a compreensão fica prejudicada. O leitor desavisado pode ser seduzido pelo apelo do visual, da simbologia, da sofisticada hierarquia do partido nazista, da disciplina, da ordem, da determinação “heróica”, do romantismo, etc.
Não basta a denúncia de que o nazismo exterminou milhões de judeus. É preciso explicar porque a burguesia alemã precisou do nazismo. Na década de 1930, o capitalismo desmoronava a olhos vistos e o desemprego atingia milhões de pessoas em todos os países ligados ao mercado mundial, desde os grandes impérios até as semi-colônias. Do outro lado havia o exemplo da União Soviética (mesmo sob o terror stalinista), com pleno emprego, industrialização e melhoria nas condições de vida. O movimento comunista internacional era uma ameaça concreta para a burguesia, pois mostrava uma alternativa palpável ao capitalismo em plena crise.
O nazismo cresceu explorando exatamente a divisão entre o stalinismo e a social-democracia. As duas principais forças da esquerda não se unificaram para combater a ascensão do nazismo e foram derrotadas nas disputas de rua no início da década de 1930. Hitler construiu um exército com bandos de lúmpens para espancar militantes de esquerda e aplastar sindicatos. Com isso o nazismo tornou-se alternativa para a burguesia alemã. A burguesia francesa e inglesa considerava a revolução socialista uma ameaça maior do que o próprio nazismo. Isso permitiu o rearmamento do imperialismo alemão, que precipitou a guerra.
O nazismo matou milhões de judeus, mas não apenas isso. A II Guerra provocou a morte de dezenas de milhões de trabalhadores de várias nacionalidades, além de outros tantos milhões de feridos e desabrigados, da destruição de recursos e forças produtivas, fábricas, infra-estrutura e cidades inteiras. Foi somente sobre a base dessa destruição que o capitalismo pôde se reerguer da crise mundial iniciada em 1929.
Resgatar essa história (há muitos outros detalhes a serem esclarecidos) é importante no cenário marcado por uma crise econômica que é a mais séria desde a Grande Depressão. Se a Depressão provocou uma destruição do tamanho daquela da II Guerra, algo semelhante pode estar se preparando no nosso presente. Por mais que os ideólogos do sistema digam que a atual crise “está superada”, nenhum dos problemas estruturais do capitalismo foram resolvidos (e nem podem sê-lo dentro dos marcos desse modo de produção). O capital fictício transbordando no mercado financeiro, o endividamento dos Estados, a emissão descontrolada de moeda, o desemprego, etc., são legados dessa crise que continuarão durante vários anos. A burguesia pode responder à insatisfação social por meio da guerra. Basta escolher o adversário: o Irã, a Coréia do Norte, a Venezuela, etc., ou ainda o terrorismo, as drogas, a violência, o crime, etc.
Por isso, não é coincidência o reaparecimento de golpes de Estado, como em Honduras. Assim como não é coincidência o fenômeno editorial do culto ao nazismo. Diante do recrudescimento das ações da direita, nenhuma concessão pode ser feita, sob qualquer forma em que apareça, mesmo as mais aparentemente “inocentes” como publicações sobre o nazismo, ou as ameaças contra uma estudante na Uniban. A disputa ideológica contra a decadência capitalista e suas doentias manifestações proto-fascistas precisa ser feita em todas as dimensões, apontando as alternativas contra as crises, as guerras, a miséria e a barbárie em todas as suas formas, uma alternativa que só pode ser o socialismo.

Daniel M. Delfino
15/11/2009