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O priapismo cerebral de “A taça do mundo é nossa”


13 de dezembro de 2008

O PRIAPISMO CEREBRAL DE “A TAÇA DO MUNDO É NOSSA”

(Comentário sobre o filme “A taça do mundo é nossa”)

Nome original: Casseta & Planeta: a taça do mundo é nossa

            Produção: Brasil

            Ano: 2003

            Idiomas: Português

            Diretor: Lula Buarque de Hollanda

            Roteiro: Bussunda, César Cardoso

            Elenco: Beto Silva, Bussunda, Cláudio Manoel, Hélio de la Pena, Hubert, Marcelo Madureira, Reinaldo, Maria Paula, Deborah Secco, Tony Tornado, Carlos Alberto Torres, Jair de Oliveira, Raphael Primo

Gênero: comédia, crime, romance, guerra

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            O priapismo é uma doença que ataca o órgão sexual masculino. Essa doença provoca um estado de ereção duradoura do pênis. A ereção prolongada do pênis, numa crise priápica, pode transcorrer durante muitas horas. Uma ereção que se prolonga por muitas horas a fio pode se tornar extremamente dolorosa. Insuportavelmente dolorosa. Nos casos mais graves, o priapismo pode provocar a queda do órgão. E o homem priápico fica sem pênis.

            Já o priapismo cerebral é uma doença que ataca os seres cuja imaginação se torna predominantemente fálica. O cérebro dessa pessoa é como um pênis permanentemente ereto. Ele só pensa naquilo. O priapismo cerebral acaba por inviabilizar o raciocínio e reduz a vítima a uma condição similar a um sem-cérebro. Essa imaginação doentia enxerga uma metáfora sexual em qualquer fala, discurso, gesto ou situação. A metáfora sexual priápica é uma imagem de dominação e destruição do outro. O sexo não é, para essa imaginação, um ato de amor, mas um ato de subjugação, dominação, destruição, ridicularização.

O priapismo cerebral concebe o sexo de maneira pejorativa. O sexo é sacanagem, é safadeza, é pecado. Tanto o beato celibatário como o priápico cerebral concebem o sexo de forma pervertida. E a perversão de um alimenta dialeticamente a do outro. O sexo é o mal. Fazer sexo é fazer o mal. Como conseqüência, não se pode falar de sexo sem usar palavrões. Palavras propositalmente feias, ultrajantes, nojentas, que degradam o objeto e o expulsam do discurso formal. Na linguagem vulgar, fazer sexo é foder. Mas foder também significa subjugar, dominar, destruir o outro. Fulano está fodido: fulano está destruído, subjugado, dominado, ridicularizado, diminuído, arrasado, perdido. Quando se tem ódio de alguém, o usual é mandar que vá tomar no cu, o que também é uma modalidade de ato sexual.

O cérebro priápico está numa busca insana de situações onde possa ver o outro sendo fodido. Ele tem sua maior satisfação no ato de ver alguém sendo fodido. O priapismo cerebral está sempre à procura de atos falhos na linguagem coloquial alheia, por meio dos quais alguém revela, inadvertidamente, que está fodido. Quando alguém diz qualquer coisa com uma conotação vagamente sexual, o cérebro priápico dispara em gargalhada. Esse alguém se fodeu. Sempre há algo oculto, por trás do que se fala (por trás?).

O problema do priapismo cerebral não é o sexo em si. Não se trata de ser contra o sexo, o que não faz o menor sentido, mas contra uma imaginação sexual pervertida. Como qualquer pessoa, este escriba também faz sexo, também gosta de sexo e não vê nada de errado em que as pessoas façam sexo, nem que falem de sexo. Quanto mais sexo melhor. Faça amor, não faça guerra. A liberdade sexual é uma conquista humanista importantíssima. Uma liberdade revolucionária. Torna as pessoas conscientes de seus corpos, do seu poder de criar o prazer e da satisfação de uma relação humana plena. A liberdade sexual cria uma área de autonomia para a individualidade num mundo de relações fetichizadas.

O que acontece porém, quando o sexo se transforma ele próprio num produto da indústria cultural? O que acontece quando a mídia passa a insinuar metáforas sexuais em todos os seus conteúdos? O que acontece quando o homem passa a fazer sexo para satisfazer as mesmas demandas que satisfaz por meio da compulsão consumista?

A publicidade não vende mais produtos, vende o apelo sexual vinculado ao produto. O valor das coisas não está no produto em si, que é indiferente, mas na faculdade de agregar apelo sexual que a publicidade a ele associa. O subtexto de 99,99% da publicidade diz, às vezes implícita, às vezes explicitamente, algo como: “consuma tal produto e torne-se assim sexualmente desejável, a ponto desta mulher ou deste homem da propaganda desejarem fazer sexo com você”.

O sexo assim desnaturado produz uma eterna insatisfação. Não basta ao sexo ser apenas satisfatório. Tem que ser espetacular, como são espetaculares as imagens da publicidade. Fazemos sexo com pessoas comuns, mas precisamos imaginar que o fazemos com modelos de propaganda de cerveja. Da distância entre as pessoas normais e o objetos sexuais que a publicidade faz desejar, surge a sensação de incompletude, que precisa ser saciada por meio do consumo. Consumir é sinônimo de comer. Que é sinônimo de foder.

Há que se fazer essa distinção ao falar de sexo na indústria cultural. Até que ponto está se falando em liberdade sexual autêntica e até que ponto está se falando em uma modalidade de sexo fetichizado e desnaturado?

Essa discussão prévia serve de introdução para um comentário a respeito do filme “A taça do mundo é nossa”, produzido pelo grupo de humoristas do Casseta & Planeta (introdução?). O priapismo cerebral é a fonte do humor de “A taça o mundo é nossa”. O humor que apela para a interpretação diretamente sexual do discurso é um humor pobre de imaginação. Assim como é pobre o filme de terror que apela para efeitos especiais e monstros horrendos, porque não consegue criar sustos por meio da insinuação. Assim como a transmissão de futebol que apela para milhares de ângulos de câmera para mostrar uma mesma jogada, porque não há mais jogadas espetaculares a serem mostradas.

            Todos esses sintomas são sinais de uma decadência da imaginação na indústria cultural. É sob esse aspecto que um filme como “A taça do mundo é nossa” pode ser criticado. Não se trata pois de ser contra a imaginação sexual e erótica por trás do filme (por trás?). Trata-se de ser contra a banalização, a artificialidade, a imediaticidade, o caráter explícito do que é exibido.

Aparentemente, trata-se de um filme de humor. Mas o único humor que o filme consegue expressar é o de natureza diretamente sexual. Não se trata sequer de piadas de duplo sentido, já que não há sutileza alguma e o sentido que deveria ser oculto está na verdade imediatamente exposto. Não há inteligência, complexidade, articulação do pensamento, surpresa, uso hábil das palavras, todos os requisitos para um humor de qualidade. Há apenas a grosseria escancarada.

Aqui, mais uma vez, é preciso dizer que não se trata também de ser contra o humor. Pode-se aplicar ao humor o mesmo raciocínio que se aplicava a respeito do sexo. Pode-se dizer que existe o humor saudável e necessário, assim como o humor degradado. A ironia fina, o sarcasmo demolidor, a dialética precisa das frases de efeito, são componentes importantíssimos de um eficiente discurso humorístico. Mas não é o caso de “A taça do mundo é nossa.” É claro que nem todo humor precisa ser sofisticado ou “intelectualizado” (mas que teria muito mais graça, teria). O caso é que o humor não precisava ser tão burro.

Não se trata também de rejeitar o objeto do humor. Ao humor tudo deve ser permitido. Quando se impuser um tabu sobre o que o humorista pode falar ou não, onde estará a graça? A graça está precisamente em falar do que não se pode falar. O humor quebra o gelo do sagrado. O humor é também, como o sexo, uma zona de liberdade nas relações sociais (zona?). Quanto mais humor no mundo, melhor. É o lubrificante das relações sociais (lubrificante?).

A questão é: até que ponto faz sentido criticar um filme de humor? Trata-se de uma forma menor de arte. Uma arte rasteira, despretensiosa, para consumo rápido. Que significados pode revelar um filme desse tipo?

O filme do Casseta & Planeta revela, tão somente, o domínio endêmico do priapismo cerebral na cultura brasileira. Como de resto o faz o programa semanal da rede Globo de TV. Essa revelação contém um certo mérito, que não se pode deixar de reconhecer. Talvez um mérito que não compense seus inúmeros defeitos, mas mesmo assim um mérito. Afinal, o Tabajara F. C. sempre perde de goleada, mas não deixa de fazer um golzinho de honra de vez em quando.

Antes de falar sobre o mérito inserido no conteúdo do filme (inserido?), é importante também reconhecer o mérito do grupo pelo objeto de humor que escolheram. “A taça do mundo é nossa” é um filme de época. Está ambientado no ano de 1970, quando o Brasil da ditadura ganhou o tricampeonato mundial (uma espécie de penta daquela época…). O filme de época exige uma certa elaboração dos conteúdos, que não pode ser desprezada. Não é um simples episódio de Casseta & Planeta estendido, como o filme dos Normais é apenas um episódio de “Os Normais” estendido. “A taça do mundo é nossa” corre até o risco de não ser entendido por uma parte do público habitual do Casseta & Planeta. Aquela parte que não conhece história do Brasil.

A escolha do objeto é um ponto positivo, assim como o tratamento dado a ele. O mérito que há no conteúdo do filme está em expor, por meio do escracho, o quão ridículo é o Brasil. O humor de “A taça do mundo é nossa” é do tipo auto-depreciativo. O humor que zomba da nacionalidade. Esculhamba com a nacionalidade. Não deixa pedra sobre pedra. Dos militares aos comunistas, o escracho é total. Há uma certa sabedoria no ato de rir das próprias misérias. Quem se ofende com a grosseria (grosseria?) não tem a sabedoria para rir de si mesmo e de suas próprias idéias.

Mesmo com toda baixaria e falta de inteligência, o filme do Casseta & Planeta ainda traz algumas lições preciosas. A história da ditadura e da luta armada se transforma em comédia vulgar. Triste fim para as esperanças da revolução brasileira. Esse filme todos nós já vimos. O Brasil de 1970 se mostra igual ao de 2003. Ou vice-versa. O Brasil do Presidente Sassá Mutema se mostra tão ridículo quanto o dos generais de Casseta & Planeta. À direita e à esquerda, não escapa ninguém do escárnio.

Há que se ressaltar que a conquista a taça não resolve nada. Como a do penta não resolveu. O que o Brasil quer mesmo é ganhar o Oscar. E isso acaba de fato acontecendo no filme, por força de uma sucessão de eventos mirabolantes. Confessa-se, além da auto-imagem distorcida e depreciativa, a submissão à necessidade de uma aprovação vinda de fora, do Oscar. O Oscar é uma obsessão da cultura nacional. Nós o amamos e odiamos, até trocamos a taça do mundo por ele. Para o psicologuês vulgar, trata-se de um sinal de adoração por ícones fálicos.

A gente somos inútil. O Brasil é um país de fodidos. Somos fodidos e gostamos, diz o humor do grupo. No país onde se busca levar vantagem em tudo, levar vantagem é sinônimo de foder. Foda os outros antes de ser fodido. Já que não se pode ter qualquer liberdade verdadeira neste país fodido, temos pelo menos a liberdade de foder uns com os outros alegremente. Fodamos e sejamos fodidos, esse é o jogo.

Se não se pode vencer o sistema, junte-se a ele. Como Che Guevara (que vara?), que finge de morto para viver da venda de camisetas alimentada pelo mito de sua suposta morte. O mundo é dos espertos. A revolução é impossível como realidade, mas é atraente como produto. Vendamos a revolução! Vendamos a liberdade como fetiche. A caricatura de Che é uma ofensa a Che ou uma sátira aos seguidores pós-modernos de Che? Tanto faz. Uma se dá por meio da outra (dá?). Quem se ofende que se foda. Aliás, o que um comunista faria no cinema vendo um filme como este? A turma do Casseta dá o recado e explode o crítico que se atreve a criticar o filme, no debate após o filme, dentro do filme. Esse negócio de criticar filme é típico de gente que leva as coisas por outro lado (por outro lado?).

Na pseudo-ideologia priápica do grupo, revela-se uma espécie de auto-imagem do país condensada do senso comum brasileiro. O filme se estrutura em cima de uma certa interpretação da percepção que o brasileiro tem de si. Na apologia priápica casseteana, o Brasil é o país do sexo, do futebol e do humor, que são manifestações de uma atávica permissividade malemolente, na qual todo brasileiro se reconhece e se compraz.

O Brasil é o país onde nada é sério e se leva tudo no jeitinho. O jeitinho, é preciso dizer, possui um sinal histórico ambivalente. Há o jeitinho na versão das classes dominantes, que sem cerimônia colocam o público a serviço do privado, como extensão de seu patrimônio. Há o jeitinho que engendra a corrupção e o que engendra a resistência e a criatividade. Há o jeitinho das classes subalternas, que se viram para sobreviver nos meandros da informalidade econômica, social e cultural.

Em resumo, o brasileiro gosta de ser brasileiro, porque ser brasileiro é sinônimo de ser fracassado. Ser fracassado é ridículo e penoso, mas também é engraçado. Essa condição antropológica especial lhe autoriza a zombar de si mesmo. E nessa zombaria, tanto pode encontrar-se a motivação para a mudança como o pretexto para se eximir de ter qualquer atitude séria. E sem precisar ser sério, não precisa enfrentar as tarefas da construção do país. O Casseta & Planeta dá conta apenas da primeira parte dessa equação, a da zombaria.

O jeitinho não dá jeito em nada e continuamos todos na mesma. Para quem acha graça nisso, há muito com que rir em “A taça do mundo é nossa”. Este escriba não vai estragar nenhuma piada, porque é péssimo para contar piadas, como puderam perceber os leitores ao longo desse texto (longo?). Melhor deixar por conta dos profissionais do Casseta. Faço esse comentário a título de advertência, para que cada um saiba o que fazer e onde esconder o próprio cérebro na hora do filme.

Como disse antes, o problema do priapismo cerebral é que, assim como acontece no caso do mal peniano, ele pode acarretar a perda do órgão. O priapismo peniano tem uma origem física, enquanto que o cerebral é uma questão de escolha. Mas o que eu tenho a ver com isso? No final das contas, o que eu tenho a ver com o que as pessoas fazem, com o que gostam ou não gostam? Que se fodam!

Daniel M. Delfino

22/11/2003