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Rebelião popular na Turquia reafirma continuidade da nova situação mundial


20 de junho de 2013

turquiaNo dia 31 de maio a polícia de Istambul, cidade localizada na parte européia da Turquia, realizou uma violenta operação de desocupação no parque Gezi, situado na região da histórica praça Taksim, no centro da cidade. A polícia expulsou manifestantes que protestavam contra a derrubada do parque para construção de uma mesquita e de um shopping center. Nos dias seguintes, o parque foi ocupado novamente por uma manifestação muito maior e uma onda de protestos se espalhou por toda a Turquia. Dezenas de millhares de pessoas foram às ruas nas principais cidades, inclusive a capital Ankara. Os manifestantes avançaram de uma simples questão urbanistica, a manutençao do parque, para a reivindicação da mudança do governo, pedindo a renúncia do primeiro ministro Recep Tayip Erdogan.

Istambul é uma das maiores cidades da Europa, com cerca de 15 milhoes de habitantes, e também uma das mais antigas, portadora de cultura e história riquíssima e multimilenar, já tendo sido capital dos Impérios Bizantino e Otomano. A praça Taksim contém monumentos a Mustafa Kemal Ataturk, lider nacionalista que fundou a Turquia moderna após a queda do Império Otomano, numa revolução que se concluiu em 1923. O simbolismo dos acontecimentos é evidente, pois uma das bandeiras de Ataturk contra o antigo governo Otomano foi justamente o Estado laico, enquanto que uma das principais politicas do atual primeiro ministro Erdogan é a islamização. Sem alterar formalmente o caráter laico do Estado, Erdogan introduziu elementos da religião islâmica na legislação, como a restrição do consumo de bebidas alcóolicas, a reafirmação da proibição do aborto e do divórcio, a multiplicação de mesquitas em detrimento de escolas laicas, etc.

Os protestos de 2013 repudiam explicitamente a islamização, mas também a política neoliberal de Erdogan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP na sigla em turco). Juntamente com uma mesquita, estava sendo prevista a construção de um shopping center na área hoje ocupada pelo parque Gezi. Há décadas os dirigentes buscam integrar o país na União Européia e para isso o governo de Erdogan se aplicava na realização de reformas, ou seja, ataques aos trabalhadores, retirando direitos para atrair indústrias ao país e transformar a Turquia numa plataforma de exportações. Graças a essa política, o PIB cresceu aceleradamente desde 2001, chegando a picos de 8% em 2010 e 2011, em plena crise mundial (dados de matéria da AFP, 11/06/2013). A Turquia é listada entre os grandes países emergentes (como Brasil, China e outros), fazendo parte do G20. A população do país é de 75 milhões de habitantes, segundo o site do instituto de estatística governamental (http://www.turkstat.gov.tr/PreTablo.do?alt_id=39). A taxa de desemprego oficial é de 10,5% da população economicamente ativa.

O “sucesso” da economia turca deu ao AKP a força política para minar o poder do Exército, autor de golpes de Estado em 1960, 1971, 1980 e 1997, destinados a preservar a herança do velho nacionalismo turco (kemalismo). Oficiais kemalistas foram afastados, o Exército perdeu influência política e a ameaça dos golpes foi descartada. O AKP estava agora em busca do atestado de eficiência econômica (neoliberal) para garantir o ingresso na União Européia. Mas, no meio do caminho havia um parque…

As manifestações contra a reforma do parque Gezi persistiram durante semanas, em mais de 70 cidades do país, apesar da violenta repressão policial. Bombas de gás, canhões d’água e balas de borracha mediram força contra pedras e coquetéis molotov. Depois de verdadeiras batalhas entre a polícia e manifestantes, o parque Gezi acabou desocupado no dia 11 de junho. Registraram-se até o momento 3 mortes, mais de 5000 feridos e 3000 presos, e o centro de Istambul foi transformado em praça de guerra. O primeiro ministro reagiu de maneira extremamente arrogante durante todo o processo, recusando-se a negociar e admitir que seu governo pudesse ser contestado, com o argumento, típico da democracia representativa, de que havia vencido as últimas três eleições. Mesmo com a repressão e as ameaças, as manifestações continuaram, sendo convocadas por uma frente improvisada que reuniu desde partidos da oposição burguesa até organizações da extrema esquerda, grupos ambientalistas, centrais sindicais, grupos estudantis, entidades culturais, etc., mobilizando amplas camadas da população.

A repercussão extremamente negativa da repressão policial e a continuidade dos protestos levaram o governo a anunciar na quinta-feira dia 13 a possibilidade de realizar um referendo para decidir sobre a reforma do parque Gezi, na esperança de desmobilizar a população. Com isso, o governo estaria entregando os anéis para não perder os dedos. A defesa do parque contra os projetos da especulação imobiliária, por mais que seja importante, reduziu-se a uma questão simbólica, pois o que estava no fundo das manifestações era uma ampla e generalizada insatisfação da população contra os rumos do país. Era isso que o governo Erdogan não podia admitir. A notícia do referendo levou a uma desmobilização apenas parcial dos setores que convocavam as manifestações. Os protestos continuaram na semana seguinte, e qualquer que seja o desfecho, os movimentos sociais saem desse embate com a confiança revigorada e a certeza de que podem enfrentar o governo.

Esse renascimento da força dos movimentos sociais levou imediatamente a uma comparação com as lutas da Primavera Arabe contra as ditaduras e com as lutas dos países mediterrâneos como Grecia e Espanha contra as medidas de austeridade da “Troika” (União Européia, Banco Central Europeu e FMI). As comparações são até certo ponto justificadas, pois a Turquia está exatamente a meio caminho entre a Europa e o Oriente Médio e compartilha as tensões desses dois mundos. Apesar de ser uma estrela entre os ditos emergentes, a Turquia partilha os problemas de todos os países periféricos, em que o preço a ser pago pelo crescimento econômico é o aumento do autoritarismo e da repressão.

A repressão nos locais de trabalho, o autoritarismo das chefias, o assédio moral, a intensificação do trabalho e da exploração, necessários para a sobrevivência do capitalismo em momento de crise, são paralelos ao crescimento do conservadorismo e do autoritarismo em geral na sociedade. O crescimento das políticas islamizantes na Turquia pode ser comparado com o das seitas evangélicas no Brasil. Ao mesmo tempo, o partido AKP de Erdogan servia como modelo para os partidos religiosos que herdaram o poder após a Primavera Árabe em países como Egito e Tunísia, com seu conservadorismo discreto, seus ternos de executivo ao invés dos turbantes, diferente da retórica inflamada de fundamentalistas tradicionais, como os aiatolás radioativos do Irã.

Com as revoltas populares de 2013, o “modelo turco” de modernização mostra que também tem pés de barro. A onda de protestos na Turquia surpreendeu não apenas o arrogante Erdogan, mas o mundo inteiro. Além de candidato a ingressar na União Européia, a Turquia é também aliado tradicional dos Estados Unidos desde a Guerra Fria. Há décadas o governo pratica uma sangrenta repressão contra a minoria kurda, que aspira por autodeterminação (herança do nacionalismo turco, que já produziu o genocídio dos armênios entre 1915 e 1917). Considerada uma fortaleza de estabilidade, o país seria também a base para a intervenção imperialista na vizinha Síria, em situação de guerra civil há dois anos. Todas essas políticas pró-União Européia e Estados Unidos, amplamente impopulares, estão sendo também desafiadas nas manifestações. Ou seja, os maifestantes de 2013 repudiam não apenas a islamização de Erdogan, mas também a velha herança nacionalista de seus antigos adversários, os militares kemalistas.

Esse exemplo recente vindo da Turquia mostra uma das características da nova situação mundial inaugurada em 2011 justamente pela Primavera Árabe e os novos movimentos de protesto como Indignados e Ocupar, que é a impressionante continuidade dos protestos, a sua persistência ano após ano, país após país, uma surpresa após a outra (o que logo mais não será tão surpreendente assim…), e a retomada do internacionalismo sob uma nova roupagem, com os movimentos de um país influenciando diretamente os outros, sejam vizinhos ou não. A rebelião da juventude árabe, européia e agora turca, que envolveu também setores da classe trabalhadora, dá sinais de que não vai se esgotar. Ao contrário, se transforma pouco a pouco numa só rebelião mundial. Nos protestos contra o aumento da passagem em São Paulo e outras cidades brasileiras, os manifestantes gritavam: “Isso aqui vai virar uma Turquia!”

Enquanto travamos nossas lutas aqui no Brasil, declaramos nossa solidariedade à juventude, aos explorados e oprimidos na Turquia. Entendemos que o referendo sobre o parque Gezi não passa de uma manobra do governo para conter as manifestações. A luta deve continuar por todas as reivindicações! Abaixo a repressão policial! Pelo direito de luta e de manifestação! Defendemos as lutas na Turquia, mas entendemos também que as reivindicações não poderão ser atendidas pelo atual Estado, comprometido com os interesses do capital e o projeto da União Européia. Por isso, defendemos a derrubada do governo por uma revolução socialista e a formação de um novo tipo de poder, construído pelos trabalhadores, pelos jovens e oprimidos, baseado em suas organizações de luta.

Viva a luta dos trabalhadores de todo o mundo! Viva o socialismo!

 

Espaço Socialista, Junho de 2013