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Socorram-me subi no ônibus em Marrocos


13 de dezembro de 2008

SOCORRAM ME SUBI NO ONIBUS EM MARROCOS

(Comentário sobre o filme “Babel”)

Nome original: “Babel”

            Produção: Estados Unidos/México

            Ano: 2006

            Idiomas: Inglês, Espanhol, Francês, Japonês, Bérbere e Árabe

            Diretor: Alejandro González Iñárritu

            Roteiro: Guillermo Arriaga

            Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchet, Gael García Bernal, Adriana Barraza, Rinko Kikuchi

            Gênero: drama, thriller

            Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

 

Babel é o nome da torre cuja malfadada construção está narrada na Bíblia, no livro do Gênesis (cap. 11:2-9). Os homens tentaram construir uma torre alta o suficiente para alcançar o céu. Mas Deus ficou irritado com a prepotência de suas criaturas, por terem a ousadia de querer alcançar seus domínios. Para impedir que isso acontecesse, Ele confundiu suas línguas, para que não pudessem mais se entender (até aquele momento, todos na Terra falavam o mesmo idioma).

Essa explicação mitológica da Bíblia para a origem das diferentes línguas contém a admissão invertida de uma premissa dotada de importantes implicações antropológicas: se todos os homens falassem a mesma língua, seriam realmente capazes de alcançar o céu. Os homens se tornariam iguais a Deus, senhores do mundo. Essa idéia repugna o pensamento religioso, que considera qualquer castigo divino bastante adequado para a inadmissível arrogância de querer igualar-se a Deus. Esconde-se aí o segredo de toda a religião: a submissão humana. A tentativa de construir a torre foi um gesto prometéico esmagado pela História, em nome de Deus.

Para quem não se contenta com a submissão, mas pelo contrário, luta pela emancipação humana, a possibilidade de que todos os homens se entendam se coloca como uma necessidade crucial. A possibilidade de uma real comunicação é fundamental para que os homens se tornem senhores de suas vidas e deixem de se submeter às potências alienadas da religião, do moralismo, dos costumes, da ciência tecnicista, do mercado, do Estado, etc., construindo formas de relações autenticamente humanas.

Qual é o obstáculo que impede a comunicação entre os seres humanos no presente, no nosso mundo real?

O filme “Babel” nos mostra alguns desses obstáculos. Ao trazer à discussão o episódio bíblico, através da própria escolha desse título, os realizadores do filme propõem a tese de que vivemos hoje em nosso mundo numa espécie de Babel de línguas confusas, e que por isso os homens não se entendem, e são infelizes.

Para provar essa tese, “Babel” nos mostra uma série de episódios em que os mal-entendidos originam situações trágicas e patéticas. As tragédias poderiam talvez ser evitadas ou minoradas se os homens se conhecessem e fossem capazes de se entender, é nisso que acreditam seus realizadores. Nesse sentido, “Babel” cumpre um papel importante como obra de arte na tarefa de ajudar a dissolver os empecilhos que impedem a compreensão mútua no nosso mundo.

“Babel” se compõe de quatro histórias diferentes, que se passam em três países, Marrocos, México e Japão, em linhas de tempo ligeiramente deslocadas uma da outra. A conexão entre as diferentes histórias é acidental, improvável e quase absurda. O absurdo das situações extraordinárias retratadas situa-se perigosamente bastante próximo da “normalidade” do cotidiano. A normalidade está por um fio. Basta que os indivíduos se desviem um pouco da sua rotina para esbarrar nos improváveis e absurdos eventos presenciados.

No interior do Marrocos, dois filhos de um pastor de cabras brincam de tiro ao alvo com o rifle do pai, atirando contra um ônibus. Essa irresponsabilidade terá conseqüências homicidas. O tiro acerta uma turista estadunidense, transformando a viagem num pesadelo para o marido, desesperado para encontrar formas de socorrê-la naquele lugar precário. Ao mesmo tempo, a babá mexicana que cuida dos filhos do casal nos Estados Unidos comete a pequena irresponsabilidade de levar consigo as crianças para uma escapada até o México, para ir à festa de casamento de seu filho. Na volta, o sobrinho que dirigia o carro, num arroubo de macheza latina, tenta fugir do arbítrio e do autoritarismo da polícia no posto de controle da fronteira, transformando o passeio festivo num pesadelo no deserto. Enquanto isso, a investigação sobre a turista estadunidense alvejada no Marrocos vai parar no Japão, onde se descobre que o rifle usado no suposto “atentado” pertenceu a um caçador amador que deixou a arma de presente para o guia de seu último safári, que por sua vez o revendeu para o pastor de cabras. O japonês se torna suspeito de contrabando internacional de armas. A polícia o encontra através de sua filha surda-muda, que tenta entregar-se sexualmente para o policial, no auge do seu desespero por não ter um namorado, que por fim a levará à beira do suicídio.

Descritos assim de forma linear como no parágrafo acima, os acontecimentos não possuem a menor lógica. Expostos na tela do cinema, na devida (des)ordem temporal do encadeamento das cenas, esses mesmos acontecimentos readquirem a nossos olhos a estranha plausibilidade do real. Ao presenciarmos os episódios de “Babel”, identificamos claramente o nosso mundo real e seus absurdos. O real é indizível, impossível de ser totalmente contido em simples e toscas palavras, mas é ilustrável, passível de ser exibido e entendido em película de cinema.

            A arte é o terreno em que se pode construir a unidade entre os homens separados por línguas, costumes e culturas. “Babel” acrescenta mais um tijolo na prometéica torre de Babel da compreensão mútua que precisamos construir para superar nossa alienação. Entretanto, seus realizadores, como os dois garotos marroquinos, atiram no que vêem para acertar no que não vêem. Ao colocar em discussão a incomunicabilidade humana sob o aspecto das diferenças lingüísticas e culturais, aspecto destacado na própria escolha do título, os autores de “Babel” revelam inadvertidamente algumas das verdadeiras causas dessa incomunicabilidade: as relações de poder.

            O que impede a real compreensão entre os homens e perpetua os conflitos não é a diferença lingüística e cultural, mas as diferenças de classe. A divisão de classes se reproduz sobre a base de relações materiais de força que exigem precisamente a incomunicabilidade como corolário. A incomunicabilidade se expressa sob a forma de narrativas pré-concebidas ideologicamente moldadas para instrumentalizar o confronto necessariamente hostil com o diferente e viabilizar seu controle pela força. Uma dessas narrativas pré-concebidas é aquela que diz que os povos árabes são terroristas. Logo, se uma turista estadunidense leva um tiro no Marrocos, isso só pode ser um ato terrorista. Outra narrativa diz que os mexicanos são vagabundos, bêbados, viciados, bandidos, que entram nos Estados Unidos para roubar empregos e cometer crimes. Logo, se um jovem e uma senhora mexicanos levam duas crianças loiras no banco de trás, isso só pode ser um seqüestro.

            As relações de classe vigentes transformam ideologicamente os povos subalternos em terroristas e seqüestradores, legitimando a violenta repressão de que são vítimas. A brutalidade da polícia marroquina contra seu próprio povo, a atitude de atirar primeiro e perguntar depois, explicita a função do Estado burguês periférico: subjugar a população local em nome da necessidade de cumprir obedientemente o que dele espera a “comunidade internacional”, ou seja, os Estados Unidos. A presteza da polícia japonesa em localizar a origem da arma do crime se justifica pelo mesmo motivo. Essa é a raiz de todos os mal-entendidos expostos.

            Os cidadãos dos Estados Unidos ocupam a posição praticamente incontestada de protagonistas do drama mundial, e o fazem em grande parte graças ao poder do cinema. Graças ao cinema estadunidense, as platéias do mundo inteiro se acostumaram a rir do que eles riem, se assustar com o que se assustam, odiar o que odeiam, chorar pelo que choram, sentir o que eles sentem. Os estadunidenses são os heróis, e as platéias se identificam com eles, torcem por eles, querem ser como eles. São eles que contam, suas vidas são as únicas que importam.

            A televisão nos informa que a história da turista alvejada no Marrocos teve um “final feliz”: a mulher estadunidense acabou não morrendo. Final feliz para quem, cara pálida? E quanto ao garoto marroquino que foi morto num tiroteio no momento em que tentava escapar da polícia com seu irmão e seu pai? E o que fará com eles a polícia marroquina, bem como a polícia estadunidense com o jovem mexicano que fugiu, e a babá mexicana que foi deportada, etc. O que acontece com eles? Onde está o final feliz? Ora, são coadjuvantes, e o que acontece com eles não importa. É “secundário”. Tudo o que importa são os “protagonistas”, já que os astros Brad Pitt e Cate Blanchet estão na sua pele e fornecem com sua simples presença estelar a razão para que a maior parte do público vá ao cinema.

            “Babel” acerta ao mostrar o ponto de vista desses “coadjuvantes”. Mas aparentemente erra ao supor que o problema das diferenças humanas está na incomunicabilidade lingüística; suposição expressa na referência que o título traz ao episódio bíblico da confusão das línguas As línguas são convenções criadas arbitrariamente e desenvolvidas pelo uso e pelo costume. É para realçar o caráter acidental e arbitrário das diferenças lingüísticas que escolhemos o maior palíndromo da língua portuguesa para o título desse comentário.

O significado de “Babel” não está nessa bizarra coincidência do episódio ficcional do tiro com o palíndromo em português. O significado do filme é a ilustração de alguns exemplos das barreiras que separam os homens. Mais do que incomunicabilidade lingüística formal, o problema da humanidade está na incomunicabilidade substancial socialmente criada.

Pessoas que falam uma mesma língua podem muito bem não se entender. O que o casal estadunidense estava fazendo no Marrocos, em primeiro lugar? O deslocamento espacial não os ajudou a superar a distância que imperava em seu casamento, devido à perda de um filho que ambos não haviam encontrado meios de elaborar e assimilar psicologicamente em conjunto.

            E o que dizer da garota japonesa surda-muda? A sua incomunicabilidade com o pai, com o policial, com os jovens do sexo oposto, não está em sua deficiência auditiva e expressiva, mas na impossibilidade de enunciar um conteúdo que a sociedade japonesa não admite como comunicável: a necessidade sexual das mulheres. Eis um conteúdo que nenhuma sociedade, seja ocidental ou oriental, elaborou adequadamente. Que o digam um dos garotos marroquinos e a irmã com seu jogo erótico adolescente.

            Desde as relações de poder internacionais até as opressões moralistas mais sutis são aqui dissecadas. Esse episódio fará o jovem e precoce Youssef tornar-se adulto antes do tempo e assumir toda a responsabilidade, inclusive pela morte do irmão. Não seria nenhuma surpresa se ele se transformasse naquilo que os guardiões da ordem chamam impropriamente de “terrorista”, mas que seria mais adequado chamar de revolucionário.

Daniel M. Delfino

27/01/2007