Desde março de 2019 o Espaço Socialista e o Movimento de Organização Socialista se fundiram em uma só organização, a Emancipação Socialista. Não deixe de ler o nosso Manifesto!

Economia e complexo militar na perspectiva marxiana – Artur Bispo dos Santos Neto


27 de março de 2013

Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.

 

Resumo: O presente texto tem como ponto de inflexão a peculiaridade do militarismo enquanto complexo parcial enunciador de algumas das categorias decisivas que constituem o modo de produção capitalista. Busca-se apontar as vicissitudes do complexo militar frente ao desenvolvimento do complexo econômico, entendendo seu desenvolvimento como essencialmente contraditório e desigual ao longo do processo de constituição das sociedades de classes. Por fim, salienta-se como o complexo industrial-militar emerge como uma alternativa circunstancial ao caráter destrutivo e perdulário do capital.

Palavras-chave: Trabalho; Guerra; Indústria; Capital.

Abstract: The current text has as inflection point the militarism peculiarity as decisive categories announcer partial complex which constitute the capitalist mode of production. The aim is to point out the vicissitudes of the military complex facing the economic complex development, understanding its development as essentially contradictory and uneven throughout the constitution process of the society of classes. Finally, it is noted that the military-industrial complex emerges as an circumstantial alternative to the destructive character and wasteful of capital.

Keywords: Work; War; Industry; Capital.

Introdução

A concepção materialista do mundo contrapõe-se diametralmente àquelas concepções que erigem a disjunção entre complexos parciais e totalidade social como esteio de suas perspectivas fetichizadas da realidade. Longe das perturbações refratárias que perpassam as diferentes concepções burguesas de mundo, nosso propósito aqui é salientar a relevância do critério histórico-ontológico na compreensão do complexo militar como um complexo essencialmente articulado aos complexos das classes sociais, da economia, da divisão social do trabalho etc. Este percurso tem sua démarche fundante na produção teórica de Karl Marx, Georg Lukács e Rosa Luxemburg, em que os trabalhos destes pensadores permitem desvelar a terra pátria do complexo militar, enquanto complexo profundamente articulado ao processo de expropriação forçada do excedente da produção.

E diferentemente do modo como a tradição filosófica tratou a categoria da totalidade, com Aristóteles e Hegel, Lukács dá um passo significativo, constituindo um verdadeiro tertum datum, porque não se circunscreve a perspectiva lógico-gnosiológica e não estaciona nos limites de seu pensamento anterior expresso em História e consciência de classe. A totalidade social não emerge como simples preceito axiológico, mas emana da própria relação que o homem estabelece com a natureza mediante seu trabalho. É pela mediação do trabalho que o homem opera um salto decisivo sobre as formas precedentes de ser, tanto inorgânica quanto orgânica, revelando-se como um ser eminentemente social e capaz de produzir e reproduzir sua existência material.
É mediante a práxis dos homens que se inscreve a realização do ser social como um complexo de complexo, em que os complexos se desenvolvem em estreita conexão entre sociedade e natureza, indivíduo e sociedade. O trabalho, como intercâmbio orgânico do homem com a natureza, possibilita a constituição da série intermediária dos complexos que vão além do trabalho propriamente dito. Embora seja a categoria fundamental que permite elucidar a totalidade social como uma categoria dinâmica e complexa, composta de numerosos e heterogêneos complexos parciais, o trabalho em-si não explica a totalidade da realidade social. A predominância da totalidade social não deve obnubilar a peculiaridade dos complexos parciais, pois eles também interagem e interferem no modo de ser da totalidade social. Cada complexo possui uma relativa dependência ontológica e uma determinação reflexiva para com a totalidade, pois “em cada um de tais processos é a reprodução da totalidade que, neste múltiplo sistema de interações, constitui o momento predominante” (LUKÁCS, 1981, p. 3).

Capitalismo e complexo militar

O desenvolvimento da história da humanidade não é um movimento linear e homogêneo, mas pautado pela presença de movimentos complexos envolvidos de avanços e recuos, continuidade e descontinuidade. Embora os elementos que gestam a sociedade de classes estejam postos nas sociedades precedentes, parece claro que sua emergência representa uma ruptura completa com o modo de vida que pautava o comunismo primitivo, pois desde então a natureza deixa de ser pertencente à comunidade para ser considerada como posse individualizada de uma determinada classe social. No centro dessa passagem está o desenvolvimento dos meios de produção que possibilita que o trabalho de um homem seja capaz de produzir mais do que o necessário para reprodução de sua existência biológica. A história das sociedades de classes é a penosa história da humanidade em que o desenvolvimento dos meios de produção e a recorrência aos meios coercitivos caminham de mãos dadas. Para consolidar seu poder sobre as outras classes sociais as classes dominantes precisam constitui uma série de complexos bem mais sofisticados (direito, política, educação, Estado etc.) que o complexo militar; por sua vez, nenhum direito pode efetivar-se sem os aparatos coercitivos do Estado.

O capitalismo inaugura, de um lado, uma nova relação do homem com a natureza mediante o desenvolvimento dos processos científicos e tecnológicos que possibilita o aprimoramento dos meios de produção; do outro, na gênese de sua revolução tecnológica situa-se a luta de classes entre expropriadores e expropriados, entre capitalistas e camponeses. A acumulação primitiva de capitais é uma das bases fundamentais que permite a passagem da manufatura para a maquinaria. A Revolução Industrial se constitui sobre a contradição entre, de um lado, subversão de todo o processo de produção que permite que a produção social ultrapasse o nível da escassez que permeava as sociedades precedentes; do outro, ela representa a primazia da máquina no processo de produção em que ocorre a subsunção da subjetividade do proletariado, que deixa de ocupar o papel de sujeito fundamental do processo de produção. Desse modo, os meios deixam de ser uma extensão do proletariado e este passa a ser uma extensão da máquina. A introdução da maquinaria no processo de produção vai representar demissão dos trabalhadores e a intensificação da exploração do trabalho. É indubitável que o desenvolvimento tecnológico propiciou, de um lado, a transformação do processo de produção; mas, do outro, trouxe consigo consequências sociais negativas para a classe operária; isso porque o controle absoluto do capital sobre o trabalho significa o aperfeiçoamento do processo de expropriação do tempo de trabalho do operariado.

No centro da Revolução Industrial impõe-se a luta de classes, em que o capitalista tenta aprimorar os mecanismos de expropriação do tempo de trabalho que o proletariado deve oferecer gratuitamente ao capital. Com ela se passa do processo de mais-valia absoluta para o processo de mais-valia relativa, ou seja, aquela forma de mais-valia engendrada pelo aperfeiçoamento dos meios de produção, em que uma não significa a exclusão da outra. É dessa maneira que o capital consegue recuperar as perdas sofridas diante das concessões oferecidas à classe trabalhadora pela redução da jornada de trabalho.

É somente numa perspectiva unitária e totalizadora da história que se supera as idiossincrasias que concebem a técnica como dotada de uma estrutura em-si e de uma autonomia absoluta. A técnica e a maquinaria não são entidades metafísicas que existem em-si mesmas. Elas são expressão do desenvolvimento do capital como uma nova totalidade social. É tão somente no contexto dessa totalidade social que os complexos parciais podem ser devidamente elucidados. É o mundo material que engendra as condições de possibilidades para que a ciência possa irradiar pelo mundo da economia e das relações sociais. A predominância do elemento econômico frente aos outros complexos parciais, não significa uma anulação dos outros complexos, pelo contrário, existem complexos que são fundamentais no processo de gestação das condições econômicas. É preciso sempre considerar a relação dialética que envolve os diferentes complexos entre si. A Revolução Industrial serve para revelar a relação existente entre o complexo da técnica e o complexo da luta de classes, o complexo econômico e o complexo militar. Escreve Lukács,
Exatamente como na própria economia, a técnica é uma parte importante, mas sempre derivada, do desenvolvimento das forças produtivas e, acima de tudo, dos homens (o trabalho) e das relações inter-humanas (divisão do trabalho, estratificação de classe etc.), do mesmo modo, as categorias especificamente militares, como tática e estratégica, não derivam da técnica, mas das mudanças que intervêm nas relações socioeconômicas fundamentais entre os homens. (1981, p. 87)

Embora se constituam como esferas distintas, é possível apontar elementos de reciprocidade entre complexo militar e complexo econômico. A interação dialética pode ser verificada no fato de que o complexo militar recorre ao uso de categorias que são próprias do complexo econômico como trabalho assalariado, divisão social do trabalho, liberdade, dinheiro, relações de troca, maquinaria e mercadoria. Para Marx, “As novas formas da produção material desenvolvem-se na guerra antes de se desenvolverem na produção do tempo de paz” (apud KORSCH, 2010, p. 6). Observa-se a interposição dialética de elementos militaristas sobre aspectos econômicos, ocorrendo no universo da guerra a emergência de formas mais intensamente evoluídas do que aquelas que permeavam a economia propriamente dita.

Entre as heterogêneas experiências sucedidas nas sociedades precedentes, o complexo militar se constitui como um complexo irradiante de categorias e elementos decisivos que são próprios da sociedade capitalista. O exército romano, por exemplo, apresenta-se como um ordenamento social que permite observar algumas das características imanentes ao modo de produção capitalista. Como assinala Marx: “No império romano, por exemplo, no apogeu do seu desenvolvimento, o tributo e as prestações continuavam a ser fundamentais. O sistema monetário propriamente dito só estava completamente desenvolvido no exército. E nunca se introduziu na totalidade do trabalho” (1983, p. 221). Certos aspectos da economia capitalista têm sua gênese nas relações engendradas no complexo militar. É o que demonstra

Marx numa carta a Engels de 1857:

A história de army elucida, com maior evidência que qualquer outra coisa, a exatidão da nossa concepção sobre a relação existente entre as forças produtivas e as condições sociais. A army é, em geral, importante para o desenvolvimento econômico. Por exemplo, entre os antigos o sistema assalariado se desenvolveu completamente, antes de tudo, no exército. Do mesmo modo entre os romanos o pecúlio castrense é a primeira forma jurídica pela qual se reconhece a propriedade mobiliária daqueles que não são pais de família. Do mesmo modo, o regime corporativo nas corporações de ofício. Igualmente, se encontra no exército o primeiro emprego das máquinas em larga escala. Até o valor particular dos metais e seu uso como dinheiro parece que originalmente se baseia… sobre sua importância bélica. Também a divisão do trabalho no interior de um determinado setor se realiza, primeiramente, nos exércitos. (apud LUKÁCS, 1981, p. 86)

A superioridade de o complexo militar diante do desenvolvimento das relações que perpassa a esfera econômica encontra sua razão de ser no processo de organização da própria economia escravista. Lukács (1974) ressalta que um dos limites fundamentais do processo de produção na sociedade antiga era a impossibilidade de reconciliação da escravidão com o emprego de máquinas. Como o trabalho era considerado coisa de escravo, não havia nenhum interesse na aplicabilidade dos inventos científicos ao mundo da produção. Por sua vez, como o exército era uma esfera da totalidade da vida social antiga que não pertencia ao mundo dos escravos, ele podia contar com a aplicabilidade dos inventos da ciência. A atividade bélica geralmente pertencia aos homens livres. Destaca Lukács: “A mecânica que não cabia na economia (e, por isso, também na ciência e filosofia oficiais) era, ao contrário, muito importante para a construção das máquinas bélicas” (1981, p. 87).

A exceção encontrada no complexo militar não altera em nada a estrutura da sociedade escravocrata, pois o complexo militar não poderia ocupar papel predominante no desenvolvimento da organização da existência material dos homens, haja vista que ele se circunscrevia à representação do poder coercitivo contra as classes dominadas. O fato de certos fenômenos econômicos poderem se manifestar no complexo militar, de forma mais desenvolvida do que na própria atividade econômica, não representa qualquer afirmação de autonomia absoluta do campo militar sobre as relações de produção, mas serve para ilustrar o caráter essencialmente contraditório dos complexos e como eles podem se manifestar historicamente de maneira desigual.

Essa conexão dialética entre complexo econômico e complexo militar é ainda mais acentuada na sociedade capitalista. Primeiro, é fundamental recordar que o capital vem ao mundo pondo em movimento uma nova forma de produção que é eminentemente cooperada, quer dizer, ele presume a organização e mobilização de um conjunto de trabalhadores para que ocorra a reprodução em escala ampliada. Como um exército, os trabalhadores precisam ser postos em movimento de uma forma combinada e articulada. Assinala Marx:
Do mesmo modo que a força de ataque de um esquadrão de cavalaria ou a força de resistência de um regimento de infantaria difere essencialmente da soma das forças de ataque e resistência desenvolvidas individualmente por cada cavaleiro e infante, a soma mecânica das forças de trabalhadores individuais difere da potência social de forças que se desenvolve quando muitas mãos agem simultaneamente na mesma operação indivisa, por exemplo, quando se trata de levantar uma carga, fazer girar uma manivela ou remover um obstáculo. O efeito do trabalho combinado não poderia neste caso ser produzido ao todo pelo trabalho individual ou apenas em períodos de tempo muito mais longo ou somente em ínfima escala. Não se trata aqui apenas do aumento da força produtiva individual por meio da cooperação, mas da criação de uma força produtiva que tem de ser, em si e para si, uma força de massas. (1985a, p. 259-260)

Da mesma forma que a infantaria consegue transpor a cavalaria, o trabalhador da manufatura ultrapassa o trabalhador isolado da corporação de ofício. A atividade combinada de diferentes trabalhadores entre si supera as idiossincrasias individuais mediante a divisão social do trabalho. O mecanismo específico da manufatura é o trabalhador coletivo, constituído de muitos trabalhadores parciais como se fosse um exército. A mobilização de um determinado quantum de trabalhadores depende da grandeza de capitais que o capitalista consegue mobilizar para comprar força de trabalho e meios de produção, quanto maior for esse capital maior será o quantum de trabalhadores e, consequentemente, menor será o custo social da produção (MARX, 1985a).

O trabalho combinado é extremamente favorável ao capitalista; primeiro, porque 12 trabalhadores simultaneamente dedicados à produção de uma determinada mercadoria produzem num dia mais do que um trabalhador em 12 dias, quer dizer, 144 horas de trabalho coletivo é maior do que 144 horas de trabalho individualizado; segundo, ao fazer doze trabalhadores produzirem num mesmo local de trabalho ocorre uma economia de meios de produção. O trabalho combinado sabe atacar o objeto mais unilateralmente, porque o trabalhador coletivo é dotado do dom da ubiqüidade, ele possui olhos e mãos à frente e atrás (MARX, 1985a). O que revela que o todo é maior do que a soma de suas partes.

Segundo aspecto de identificação entre capital e complexo militar, subsiste no controle absoluto que o capital exerce sobre o trabalho. O sistema do capital presume a existência de um sistema hierárquico em que, de um lado, se põe os seus comandantes, e do outro, os comandados. O ordenamento do sistema de produção presume um decisivo processo de cooperação do trabalho em que se instauram, de um lado, aqueles que assumem tarefas de controle do processo de produção mediante as atividades de vigilância e administração; e do outro, aqueles que compõem a massa do proletariado produtivo que como soldados rasos, destituídos de grandes habilidades, podem ser substituídos a qualquer momento do processo produtivo. Escreve Marx,

A subordinação técnica do operário ao andamento uniforme do meio de trabalho e a composição peculiar do corpo de trabalho por indivíduos de ambos os sexos e dos diversos níveis etários geram uma disciplina de caserna, que evolui para um regime fabril completo, e desenvolve inteiramente o trabalho de supervisão, já antes aventado, portanto ao mesmo tempo a divisão dos trabalhadores em trabalhadores manuais e supervisores do trabalho, em soldados rasos da indústria e suboficiais da indústria. (1985b, p. 44)

O espaço da fábrica mimetiza o cenário interior do mundo militar, sem que haja nenhuma relação de reconhecimento da autoridade fundada no mérito pessoal ou na história de vida de seus oficiais como no interior de um exército. O capitalista deve, enquanto máxima “personificação do capital”, incorporar o poder supremo de controle de todas as atividades sucedidas em seu interior. Esclarece Marx: “As ordens do capitalista no campo de produção tornam-se agora tão indispensável quanto às ordens do general no campo de batalha” (1985a, p. 263). Para fazer valer sua autoridade será fundamental a constituição de um código fabril que ultrapasse o código de caserna, em que cada falta será compensada por um desconto significativo no salário. A autoridade tradicional do chefe militar ou do feitor de escravos será substituída pelo manual de penalidades do supervisor ou suboficial. Desse modo, a violação da legislação fabril representa uma atividade mais rendosa para o capitalista do que sua própria observância. Aqui nota-se como o desenvolvimento do sistema sociometabólico do capital impõe a constituição de uma série de mediações sociais muito mais complexa do que a simples dominação de classe que advêm da força bruta do exército; ao seu lado se impõe a coexistência de uma série de complexos muito mais mediados como o complexo jurídico, político, educacional etc. No entanto, a existência de todos esses complexos, que revelam a superioridade do processo de sociabilidade da sociedade capitalista frente às sociedades precedentes, não implica que o sistema do capital tenha dispensada a recorrência ao auxílio do complexo bélico, pois a guerra constitui-se como apanágio fundamental ao processo de acumulação e expansão do capital.

Guerra e complexo industrial-militar

É sempre pertinente rememorar como a reconfiguração das táticas e estratégia militares, em que as armas de fogo desfrutam primeiro plano, desempenhou papel substancial no processo de acumulação primitiva de capitais. A cavalaria, na luta dos príncipes contra os camponeses na Revolução alemã de 1525, foi substituída imediatamente pela infantaria, pois sem a constituição de novos incrementos bélicos a superioridade numérica dos camponeses teria dado outro curso ao seu desfecho histórico. E acentuada relevância ocupam a pólvora, os sabres e os canhões no processo de colonização dos diferentes povos da África, América e Ásia. Escreve Marx:

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas Guerras do Ópio contra a China etc. (1985b, p. 285)

A barbárie é o fio condutor de todo o processo de constituição da acumulação de capitais, em que culturas milenares e populações antiguíssimas são varridas do mapa. Escreve W. Horritt: “As barbaridades e as atrozes crueldades das assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todo povo que pudesse subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal, em nenhuma raça, por mais selvagem e ignorante, por mais despida de piedade e de vergonha que fosse” (HOWIT, apud MARX, 1985b, p. 286). Sem o recurso militarista o capital jamais teria vindo ao mundo, como assinala Marx: “o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés” (1985b, p. 292).

Entretanto, existem os que teimam em afirmar que o capitalismo é produto de um desenvolvimento natural do estado de coisas – quando nada existe de natural no capital. A sua essência é completamente social, pois sem apropriação do trabalho e sem expropriação dos povos não existiria capital. Rosa Luxemburg0 assinala:

…, nos primórdios do capitalismo europeu, o militarismo desempenhou papel decisivo na conquista do Novo Mundo e dos fornecedores de especiarias das Índias; desempenhou também mais tarde, na conquista das colônias modernas, na destruição das comunidades sociais das sociedades primitivas e na apropriação de seus meios de produção, na imposição violenta do comércio aos países cuja estrutura social constituía um obstáculo à economia mercantil, na proletarização forçada dos nativos e na instituição do trabalho assalariado nas colônias. (1985, p. 311)

O capital é um sistema sociometabólico que apenas pode se reproduzir levando à ruína todas as demais formas econômicas de organização social da produção. Para isso, o complexo militar se constituiu como ferramenta indispensável.
A economia do tempo é essencial ao capital. O capital tem pressa, pois tempo é dinheiro; por isso toda economia primitiva será destruída impiedosamente. Desse modo, o capital põe abaixo, num curto período de tempo, sistemas de produção milenares. É sempre importante rememorar aquilo que fez o capital na segunda metade do século XIX com o que havia restado do modo de produção asiático, especificamente com as economias da Índia, China, Egito, Turquia, Marrocos etc. Escreve Luxemburgo:

É verdade que o desenvolvimento acelerado da economia mercantil do Egito, obtido graças ao auxílio do capital europeu, transformou o país em propriedade desse capital. Assim como na China e mais recentemente em Marrocos, o caso egípcio nos mostra como atrás dos empréstimos internacionais, das ferrovias, das obras de irrigação e de outras obras civilizadoras, o militarismo fica à espreita como executor da acumulação do capital. (1985, p. 300)

A força emerge de forma articulada à potência econômica, através dela velhas sociedades serão dizimadas e erguidas novos monumentos sobre o sangue de suas vítimas. Através da recorrência aos aparatos sofisticados de corrupção e traição de lideranças e da coerção ostensiva das forças militares, o capital conseguiu garantir novos processos de expropriação do trabalho nas diferentes regiões do mundo, alternando paulatinamente trabalho escravo com trabalho assalariado.

Numa perspectiva totalizadora, Lukács (1981) considera que a guerra parece representar um elemento de aceleração (algumas vezes também um freio) do desenvolvimento socioeconômico. Isso ainda é possível de ser assinalado acerca do conjunto das atividades bélicas desenvolvidas anteriormente ao século XX, em que as guerras ainda desempenhavam papel de reconfiguração da vida social das diferentes nações; particularmente quando lembramos o que representou a Guerra de Independência dos Estados Unidos e as Guerras napoleônicas, depois da Revolução Francesa. No entanto, isso não poderá mais ser afirmado no contexto do século XX, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial; pois com ela engendrou-se, de um lado, um elevado desenvolvimento do processo de produção, em que a sociedade do pós-guerra pôde desfrutar do universo da informática e da robótica, do aprimoramento das telecomunicações e dos transportes aéreos; do outro lado, tudo isso seria impossível sem o genocídio e o sacrifício de milhões de vidas ao processo de reprodução do capital. Se, de um lado, é possível elencar a existência de aspectos positivos; do outro, não deixa de ser descomunal o nível de ameaça que ela representa para o destino da humanidade. A Segunda Guerra Mundial trouxe à luz do dia o caráter essencialmente destrutivo do capital.

A guerra em grande escala revela o caráter paradoxal do capital, pois ela não apenas gera o desenvolvimento e o lucro, mas acima de tudo a destruição e a barbárie. É este o grande problema do complexo militar-industrial nesse começo de século XXI. Como a humanidade não suporta mais uma guerra em escala planetária, sem por em risco a existência de toda humanidade, o expediente de uma Terceira Guerra Mundial não pode se constituir como alternativa para debelar a crise de acumulação e expansão que afeta as esferas da produção, distribuição e consumo do capital desde 1970 (MÉSZÁROS, 2006).

Bellum omnium contra omnes é a essência do sistema do capital. A guerra declarada de todos contra todos subsiste em todos os nexos desse sistema sociometabólico. Tanto na gênese do capitalismo quanto na fase imperialista, quer dizer, tanto na fase de acumulação primitiva de capitais quanto na etapa econômica em que o capital precisa ampliar suas áreas de influência para conseguir desencalhar aquilo que foi produzido em grande escala. A guerra subsiste tanto no nível interno da produção, quando o capitalista precisa controlar como um general o processo de produção, quanto no nível da circulação, quando o capitalista precisa enfrentar a guerra da concorrência com os outros capitalistas no mercado mundial. Isso não implica de maneira alguma que a guerra seja capaz de explicar a totalidade das relações sociais, muito menos que a guerra se constituía como momento predominante, mas apenas que ela ocupa um papel relevante no processo de desenvolvimento do complexo econômico e na totalidade social.

Partindo deste pressuposto é que se pode avançar na consideração da relevância desse complexo parcial. É nessa perspectiva que deve ser entendida a máxima do bellum omnium contra omnes como princípio hedonista que reverbera por todos os poros da sociedade capitalista. A guerra de concorrência marca tanto a existência dos trabalhadores entre si quanto dos próprios capitalistas, em que o exército dos pequenos capitalistas fragmentados é literalmente destruído pelo exército dos grandes capitalistas coesos. Desse modo, a expropriação dos trabalhadores é sempre seguida pela expropriação dos capitalistas entre si. Por sua vez, a concentração e acumulação do capital, de um lado, não podem subsistir sem a concentração e acumulação da miséria, do outro (MARX, 1985b). Enfim, enquanto sistema sociometabólico fundado na anarquia do processo de produção que conduz à superprodução, o capital precisa recorrer à destruição de suas próprias unidades produtivas. A guerra e a destruição deixam de ser estranha ao dinamismo desse sistema de produção e circulação para se colocar como um de seus apanágios fundamentais. Através da destruição de determinadas cadeias produtivas o capital busca reorganizar o processo de concentração e reconstituição dos padrões de lucratividade e expropriação da mais-valia.

É neste contexto que se coloca a peculiaridade da emergência do complexo militar-industrial no decorrer do século XX, particularmente nos “anos dourados” do Estado de Bem-Estar Social. A articulação entre capitalismo de Estado e complexo militar-industrial se configuram num formidável casamento que têm como propósito resolver problemas estruturais de produção, distribuição e consumo do sistema do capital. Convém destacar que o Estado capitalista é o principal agente financiador e consumidor do aparato militar-industrial. Ao financiar esse setor da produção, ele consegue fazê-lo diretamente com os recursos públicos captados pela intermediação da expropriação da mais-valia dos operários e camponeses. É preciso destacar que quem paga a conta do militarismo – desse peso morto da sociedade de classes – é o Estado (LUXEMBURG, 1985). O complexo industrial-militar não é financiado pelos capitalistas, porque, primeiro, eles teriam que sacrificar parte de sua mais-valia destinada à capitalização; segundo, ela deixaria de revitalizar a própria crise de produção e consumo que circunda o sistema do capital no decorrer dos séculos XX e XXI. São os proletários e camponeses que financiam o complexo militar-industrial mediante o pagamento de impostos e tarifas ao Estado; como esclarece Luxemburg: “Mediante impostos indiretos e altas tarifas alfandegárias, os custos do militarismo são cobertos em grande parte pela classe operária e pelo campensinato” (1985, p. 313). A tributação indireta dos operários significa a transferência de uma parte do poder de compra da classe operária para o Estado. Assim, parte da soma de dinheiro obtida pela venda da força de trabalho, adquirida na forma de salário, vai parar nas mãos do Estado. O deslocamento de parte de capitais representa a diminuição do poder de compra dessa classe e a ampliação do poder financeiro do Estado. A extração de parte do valor do salário do proletariado para o complexo militar-industrial representa o subconsumo da massa operária e sua pauperização (LUXEMBURG, 1985), o que representa uma alteração na relação entre capital constante e capital variável.

Essa variação implica que o capitalista do setor da produção dos meios de subsistência da classe operária deve diminuir sua produção em detrimento do setor da produção bélica, que deve, por sua vez, ampliar a produção de armamentos e a contratação de novos soldados (Luxemburg, 1985). Tal variação serve para revitalizar o processo de rotação do capital. Além disso, é fundamental que o Estado invista no complexo militar-industrial, porque sem ele torna-se difícil a constituição de novos processos de acumulação e expansão do capital. Ao ser financiado com recursos do Estado capitalista, o complexo militar-industrial deixa de ser uma responsabilidade econômica direta da burguesia e passa a ser um mecanismo de aperfeiçoamento da extração e partilha da mais-valia dos trabalhadores expropriada pelo Estado, dinamizando o capital.

Ao mesmo tempo não se deve esquecer que o complexo industrial-militar foi o carro chefe das políticas sociais que permitiram o “pleno emprego” nas economias capitalistas avançadas, mediante o denominado Estado de Bem-Estar Social. O complexo industrial-militar se constituiu como uma solução eficaz, ainda que transitória, de intervenção dos elementos extra-econômicos sobre o mundo da economia, na medida em que o Estado tentou com uma cajadada “acertar dois coelhos”, quando, de um lado, conseguiu salvar os capitalistas, apresentando um novo mercado consumidor; do outro lado, tentou resolver o problema de parte do exército industrial de reserva, que no pós-guerra conseguiu ser reduzido dos percentuais de 20% para 5%.

A produção destrutiva do complexo industrial-militar constitui-se pela alocação significativa de recursos para um setor parasitário e completamente avesso às necessidades efetiva dos homens. A sua contínua expansão revela o caráter perdulário do capital e a ameaça permanente de barbárie que acomete a humanidade. Diante do caráter destrutivo e parasitário do capital, nessa etapa do modo de produção e reprodução do capital, é imprescindível ultrapassarmos todas as lutas defensivas para adentrar numa fase histórica de ofensiva do trabalho contra o capital (Mészáros, 2006). Essa luta ofensiva significa o cessar de todas as lutas que pedem o impossível, ou seja, reformar o sistema do capital.

Conclusão

Diante da barbárie que ameaça a humanidade, existe a possibilidade concreta de constituição do socialismo como verdadeira alternativa ao presente estado de coisas. Este tem sua gênese na expropriação dos expropriadores, como assinala Marx: “O que está agora para ser expropriado já não é trabalhador economicamente autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. […]. Lá, tratou-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui se trata da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo” (1985b, p. 293-294). A expropriação dos expropriadores é a negação da negação; quer dizer, é a negação do capitalismo enquanto negação do feudalismo. No entanto, essa etapa constitui-se somente como gênese duma transformação mais ampla do processo sociometabólico que plasma as relações socioeconômicas. É necessária que a ofensiva política do proletariado seja seguida pelo processo de reorganização da produção, tarefa possível de ser realizada apenas pelo trabalho associado. Nele, o preceito de cada um segundo suas capacidades será superado pelo mandamento de “cada um segundo as suas necessidades” (MARX, 1980, p. 72). Com isso a administração dos homens será superada pela administração das coisas. O que representa uma nova forma de sociedade em que a humanidade não precisará mais gastar seu excedente com o Estado, muito menos com armamentos e financiamento da indústria da guerra, porque finalmente o homem pode afirmar-se como princípio elementar de todo processo de produção e reprodução da riqueza social.

Artur Bispo dos Santos Neto é professor da UFAL e militante do Espaço Socialista

Referências

KORSCH, K. A guerra e a revolução. In. Internet: www.http//guy-debord.blogspot.com/…/karl-korsch. Acesso em 15/06/2011.
LUKÁCS, G. A reprodução. Trad. Sérgio Lessa. Texto mimeografado. Extraído de Per l’ontologia dell’essere sociale. Vol II. Roma: Editori Riuniti, 1981.
LUKÁCS. G. Estética. La peculiaridad de lo estético. 1. Cuestiones preliminares y de principio. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1974.
LUXEMBURG, Rosa. Acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Trad. Marijane Vieira Lisboa e Otto Erich Walter Maas. São Paulo:Nova Cultural, 1985.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro. Vol. I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Nova Cultural, 1985a.
________. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro. Vol. II. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Nova Cultural, 1985b.
________. Grundrisse: lineamentos fundamentales para la crítica de la economia política 1857-1858. Vol I. Trad. Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura, 1985c.
________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Maria Helena Barreiro Alves. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
_________. Crítica ao Programa de Gotha. In. MARX, K. – ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.
MESZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2006.