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Jornal 90: América Latina: a volta à “normalidade neoliberal”


22 de junho de 2016

Passados 15 anos de governos ditos “progressistas” ou neopopulistas na América Latina, eis que presenciamos o retorno da chamada “normalidade neoliberal”.5

Vários países de grande influência econômica fizeram parte desse processo: Venezuela com Chávez, Argentina com o casal Kirchner, Bolívia com Evo Morales, Equador com Rafael Correa, Chile com Michelle Bachelet, Brasil com Lula (e depois Dilma), Paraguai com Fernando Lugo, Honduras com Zelaya e Nicarágua com Daniel Ortega.

Sobretudo nos inícios de seus mandatos, esses governos eram vistos (cada qual à sua maneira) como supostos agentes de rupturas, alternativos aos governos neoliberais. Foram tomados, então, como um contraponto aos governos de duas décadas anteriores – que tinham desferido duríssimos ataques aos trabalhadores e aos funcionários públicos, contribuído para aumentar o desemprego, além de desregulamentar a economia e privatizar os recursos naturais e empresas estatais (muitas vezes com contratos fraudulentos e extremamente prejudiciais para suas populações).

Naquele período, o impulso ao crédito fácil e a juros baixos nos EUA e na Europa, o deslocamento de inúmeras empresas para a China, Índia e outras economias faziam com que o crescimento econômico mundial se desse através de taxas elevadas. A China crescia de forma muito acelerada.

Fosse a partir de rebeliões sociais, ou em prevenção a elas, setores das burocracias de Estado, ligadas ou não, ao movimentos sindicais, aliadas com setores da burguesia interna mais ligados às matérias-primas (agronegócio, exportadores de minérios etc.), respaldaram-se em setores de massas que, desgastados com tantos anos de ataques neoliberais, vislumbravam a possibilidade de alavancar suas condições sociais. Vemos, assim, que foram setores sociais que viam interesses comuns que conduziram, ou apoiaram, a ascensão desses governos.

De nossa parte, nunca nutrimos ilusões de que os chamados governos chavistas (ou os demais que, de alguma maneira, surgiram em sua esteira) fossem socialistas ou revolucionários, mas governos nacionalistas burgueses (no caso de seus expoentes mais radicalizados, como na Venezuela, Bolívia e Equador).

Dirigidos por burocracias de Estado e setores médios da sociedade (e aliados a setores da burguesia e pequena burguesia de seus países), esses governos nãos se propunham a romper, de fato, com os limites do capitalismo, recusando-se de fato a avançar em um poder dos trabalhadores e na expropriação da burguesia.

Devido aos limites colocados pela própria organização atual do capitalismo mundializado, apontávamos que não seria possível sequer manter projetos emancipadores sem a ruptura com 1) o capitalismo, 2) o mecanismo da dívida e 3) a ruptura com o imperialismo, num regime de democracia operária (que nenhum desses governos se propunha).

Hoje é visível que, apesar de escaramuças e enfrentamentos pontuais e parciais desses governos com o imperialismo, não houve uma ruptura, ou mesmo redução, da dependência estrutural desses países. Consolidou-se a conformação a um papel de fornecedor de matérias-primas e alimentos na divisão internacional do trabalho, que retoma a sua antiga função da época colonial como produtores de matérias-primas e consumidores de produtos industrializados.

O período em que houve o boom do valor das matérias-primas e alimentos propiciou as condições objetivas para esses governos realizarem projetos sociais e políticos (maiores ou menores a depender de cada país) que, mantendo (e até aumentando) a lucratividade do empresariado, permitiu alguma intervenção do Estado no sentido de direcionar parte (sempre muito menor que a do empresariado) para os trabalhadores – particularmente os setores mais precarizados, como forma de mantê-los sob controle.

Esses governos puderam se aproveitar de um contexto, até certo ponto excepcional, para realizar algumas reformas que trouxessem avanços democráticos mínimos. Mas, ao não serem estruturados em uma mudança social de fato, agora são passíveis de questionamento e reversão à medida em que a burguesia busca retomar de forma direta e mais incisiva a gestão do Estado.

Venezuela e Bolívia: o modelo chavista

O setor mais avançado desse projeto foi, sem dúvida, o chavismo (na Venezuela) que, depois de reaver o controle estatal sobre a gigante do petróleo PDVSA, pôde se apoiar no preço do barril de petróleo a 120 dólares para realizar um conjunto de reformas e políticas sociais na Venezuela que serviram de modelo para outros países.

Na Bolívia, Evo Morales (pressionado pela rebelião dos mineiros e demais setores indígenas e populares) avançou para um controle sobre as reservas de gás e uma renegociação dos contratos. No Chile e no Equador a busca se deu por um maior controle das reservas de cobre.

Já na Argentina e Brasil, os governos puderam se apoiar na agricultura de exportação (agronegócio) e, no caso do Brasil, na exportação de minérios. Empresas privadas conseguiram lucrar muito mais. Como a economia estava em crescimento, uma parte ainda que menor dos seus lucros podiam ser utilizadas para realizar programas sociais. Na esteira do crescimento econômico e das políticas sociais houve também o avanço de movimentos raciais, de gênero, LGBT e outros.

Durante esse período houve golpes (como o que retirou Chaves), mas que acabou sendo revertido pela mobilização popular. No caso de Evo Morales, ocorreram ameaças de greves de policiais e um constante trabalho da mídia para criar condições para a retirada desses governos (e pelo retorno à normalidade neoliberal). Da mesma forma se deu em todos os demais países, mesmo que fossem arremedos do chavismo.

O Brasil dentro disso

No Brasil, o processo se deu de forma diferente, pois foi um dos países em que menos enfrentamentos houve com a burguesia. Ao contrário, a eleição de Lula em 2002 foi bem aceita, uma vez que sua vitória era entendida como mal menor, frente a possibilidade de uma rebelião social da qual surgiam sintomas. Além disso Lula/PT se comprometia abertamente com a manutenção da estrutura e os interesses maiores do capital com a Carta ao Povo Brasileiro (na verdade “Carta aos Banqueiros”). Mesmo assim, desde 2005 a burguesia passa a colocar limites para o prosseguimento do projeto e, então, começam as denúncias sobre o mensalão, em que o PT tem presas todas as suas principais lideranças (José Dirceu, Genoíno, Palocci etc.). É o início da operação de desgaste, que, além de enfraquecer o governo petista, cria as condições para, em algum momento, poder fazer retornar a “normalidade liberal”.

A crise de 2008: Fim das condições materiais para os governos chavistas e afins

A partir de 2008, a crise mundial provoca um choque dos preços das matérias-primas, trazendo o recrudescimento da situação nesses países. Temos a tentativa de Golpe na Bolívia contra Evo Morales pela burguesia da região da Meia Luna e a Greve das Polícias contra Rafael Correa. Na Argentina uma rebelião de camponeses dirigida pelos grandes fazendeiros contra o governo de Cristina Kirchner mostrou a disposição da direita em realizar movimentos que mobilizassem a classe media como massa de manobra da burguesia. O Golpe em Honduras foi justamente o anúncio de que a burguesia visava parar ali o movimento de expansão desses governos de inspiração chavista.

Após 2009, a tendência de declínio das commodities se mantém

A burguesia mundial e os gestores do capital (os estados nacionais) conseguiram contornar a última grande eclosão da crise estrutural, que ocorreu em 2008, a partir de uma megaoperação de salvação dos bancos, fundos de pensões e empresas por parte dos principais estados nacionais. Essa megaoperação significou, segundo alguns analistas, o despejo de mais de 12 trilhões de dólares, parte importante que foram incorporados às dívidas dos estados nacionais. Desse modo, responderam com políticas anticíclicas, conseguindo naquele momento relançar suas economias.

As tensões seguiram aumentando pois, embora tenha se evitado a completa depressão da economia mundial, o crescimento econômico não recuperou mais os patamares anteriores e, portanto, houve uma queda no preço das matérias-primas e alimentos, fazendo com que as condições objetivas dos governos chavistas (e os demais, de conciliação) fossem se esvaindo. Ao mesmo tempo, o aumento da competitividade em nível internacional fez com a que soasse o sinal que uma ofensiva burguesa rumo ao retorno à “normalidade neoliberal”.

América Latina – Queda Acentuada do Crescimento Econômico

Logo a seguir, ocorre o Golpe Institucional no Paraguai que derrubou Fernando Lugo (2012). Esse processou conseguiu “legitimidade” por meio de eleições fraudulentas para implantar medidas antioperárias e antipopulares.

A partir de 2013 vemos um acirramento dessas tendências. Os governos da região não conseguem mais sequer manter seus orçamentos e passam a acumular déficits orçamentários e, portanto, a provocar a ruptura do setor que ainda os respaldava (o capital financeiro). No Brasil ocorrem os julgamentos do Mensalão em que as lideranças petistas são condenadas.

Os projetos reformistas, de setores médios (como a burocracias de Estado e das forças armadas) que visavam a redistribuição de uma parte da renda excedente, não alteraram a relação de produção entre as classes. À parte algumas nacionalizações, a estrutura social de classes e a absurda desigualdade permaneceram quase as mesmas.

Vitória de Macri, derrota de Evo e crise do governo Maduro

Nesse marco, os últimos acontecimentos apontam para mudanças na Argentina, em que o candidato neoliberal “puro sangue” – Mauricio Macri – venceu as eleições a já aplica um duro receituário retrógrado contra os trabalhadores. No Brasil, vimos forças de direita e ultradireita se articularem para depor a presidenta Dilma e avançar na agenda reacionária contra a classe trabalhadora. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o referendo para que pudesse se candidatar novamente e, sem a sua participação nas próximas eleições, aumenta-se a possibilidade de que a direita “pura e dura” possa voltar.

Na Venezuela, vemos a crise do governo Maduro, que enfrenta um lockout patronal e uma campanha golpista da mídia, além de uma Assembleia Nacional em que a oposição de direita é maioria e está buscando todos os meios para enfraquecimento, desestabilização e deposição do governo Maduro.

Contra qualquer Golpe! Nenhuma defesa dos governos de conciliação!

Por uma alternativa independente, revolucionária dos trabalhadores!

Isso mostra que esses governos, por seu caráter de classe pequeno burocrático-burguês, não eram e não são projetos socialistas. Tampouco foram projetos consequentes de enfrentamento ao capital, pois embora tenham feito enfrentamentos parciais ou pontuais com maior ou menor alarde, via de regra, seguiram respeitando os principais pilares da subordinação de suas economias à globalização capitalista, como os pagamentos de dívidas públicas astronômicas, a manutenção de modelos econômicos pautados na reprimarização das economias (com a não-industrialização ou mesmo desindustrialização), como no caso do Brasil, e a não superação das desigualdade real. As políticas sociais se mostraram limitadas e passíveis de cortes ao menor sinal de crise e, a fim e a cabo, a burguesia deteve seu poder econômico (assim como todos os setores que apoiaram o processo de impeachment, que não foram presos, nem julgados). Esses governos também mantiveram os meios de comunicação nas mãos da burguesia, que puderam, então, influenciar e fazer de massa de manobra grande parte da população.

Também não houve uma mudança das instituições políticas que continuaram funcionando praticamente como antes, permitindo que a burguesia colocasse seus representantes no Congressos.

Mas o maior dano foi no campo da consciência e referência dos trabalhadores. Como esses setores burocráticos desses governos se coligaram com setores da burguesia interna (e até do imperialismo), não queriam e não podiam mobilizar, nem permitir, a livre organização dos trabalhadores sob pena de serem por eles questionados. Contribuíram e provocaram nítidos retrocessos na consciência de classe de luta e organização dos trabalhadores e setores populares, de modo que, hoje, afastam-se das lutas políticas ou, em sua maioria, são massa de manobra das oposições da direita reacionária.

Os setores mais de direita, nessa conjuntura, aproveitam-se do débil quadro da economia (assim como dos casos de corrupção) para voltar ao poder, seja pela “via democrática” (eleições) ou pela via de manobras parlamentares e judiciais ou golpes militares e institucionais.

Diante disso, precisamos batalhar pela reconstrução de uma autêntica alternativa socialista e revolucionária dos trabalhadores, que tenha, de fato, uma sustentação nas lutas contra os ataques da “normalidade neoliberal” e, ao mesmo tempo, não deposite qualquer esperança na manutenção, ressurgimento ou reciclagem de projetos conciliadores com o capital, porque – como cada vez mais se mostra – sempre levam ao crescimento da direita e extrema direita.