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Jornal 77: Militarização da internet, vigilância e a organização mundial da repressão


7 de abril de 2015

Thais Menezes

O movimento socialista mundial aprendeu muito com seus clássicos ao longo da história, mas também deu prosseguimento ao entendimento da sociedade capitalista e de sua complexificação. O conceito de crise estrutural do capital, inaugurado por István Meszáros, tem grande destaque na medida em que identifica uma mudança de qualidade nas já antigas crises periódicas do capitalismo, que pós década de 70 têm como resultado um período de crises no qual a tendência geral é de queda da taxa de lucro. A crise estrutural do capital extrapola o campo econômico, se transforma em uma crise de natureza societal e se concretiza na crise ambiental, energética, alimentar, cultural, ideológica e política.
A máxima “Socialismo ou Barbárie” se torna cada vez mais assertiva. Ao passo que a classe trabalhadora e suas organizações não avançam na velocidade necessária para responder às urgências da humanidade, a barbárie avança. Níveis de exploração, violência e controle inimagináveis e uma situação permanente e mundializada de sofrimento é o que o capitalismo reserva para a classe trabalhadora.”
Com o avanço das telecomunicações, a complexificação e a difusão da internet a luta contra a barbárie capitalista ganham tanto mais facilidades quanto como obstáculos.
Já é batido dizer que com a internet temos maior informação. E quando se ressalta o ponto negativo disso sempre se fala da “baixa qualidade” e da falta de procedência de toda informação disponível na rede. Mas, ignora-se o que de pior nos trouxe a era da internet: a vigilância.
O funcionamento da sociedade capitalista em si, com uma imensa quantidade de produtos disponíveis em muitas de suas formas, tende a se estender cada vez mais pelos espaços virtuais (aplicativos de solicitação de serviços, produtos, propaganda, etc.). Mas, sobretudo, a luta pela manutenção de poder pela burguesia tende também a ocupar o espaço da internet com maior intensidade.
Da mesma forma que vemos os espaços públicos cada vez mais militarizados e vigiados, seria de uma estupidez sem tamanho que a burguesia deixasse o cyberterreno ser utilizado de forma livre. O mundo virtual, como extensão do mundo físico é expressão também material deste e por isso não ficará livre da dominação burguesa.

A militarização da internet. Para que proibir, se é melhor controlar?

Sim, uma rede entre governos e corporações espiona hoje tudo o que fazemos.
No passado se a espionagem era feita de forma direcionada (grupos específicos, potencialmente “perigosos”) e somente praticada por alguns países, como os EUA, Inglaterra e Rússia, hoje a situação mudou. A tecnologia tem avançado tão rapidamente que ficou relativamente barato para os governos investirem na monitoração e no armazenamento de informação em massa. Precisando de alguma ação específica sobre um grupo específico, basta recorrer aos dossiês que estão sendo acumulados, filtrá-los e os governos conseguem as informações de que precisam[1].
Como extensão do mundo físico, a internet nunca deixou e nunca deixará de expressar a indignação dos trabalhadores com o rebaixamento das condições de vida e o endurecimento dos governos, cada vez mais necessários em escala mundial na fase atual do capitalismo. Nos últimos vinte anos, a internet tem se tornado de certa forma um pesadelo para os poderosos. Em 2008, no Cairo, um ato em defesa da greve dos trabalhadores da indústria têxtil de Mahalla al-Kobra, organizado pelo Facebook, surpreendeu o governo Mubarak e como resultado gerou o monitoramento, a perseguição, a prisão e até a tortura dos administradores da página April 6 Youh Movement. O manual “Como protestar de forma inteligente”, distribuído no início do movimento que derrubou Mubarak, recomendava que não fossem usados o Twitter nem o Facebook para organizar iniciativas contra o governo. Logo depois, foram cortadas a internet e o serviço de telefonia móvel para tentar conter as mobilizações.
Não é, portanto, à toa que o governo norte-americano patrocina iniciativas dentro do universo hacker e nelas se infiltra. Jacob Appelbaum relata a participação do Comando de Sistema de Guerra Navais e Especiais, um braço civil da Marinha norte-americana, no Collegiate Cyber Defense Competition, campeonato universitário de ciberdefesa dos Estados Unidos, que envolve estratégias de hacking ofensivo e defensivo. Isso sem entrar no debate dos órgãos internacionais de espionagem.

Redes Sociais: os clientes são os governos e as empresas; o produto é você!

A militarização é de grande interesse dos governos e corporações e invade também nossa vida privada, vigiando as nossas conversas com amigos, família e pessoas às quais somos intimamente ligados, como diz Julian Assange: “é como ter um soldado embaixo da cama”.
Em vez de se proibir a livre manifestação dos trabalhadores pela internet, basta para os governos incentivar o uso das redes e monitorá-lo, de forma que nunca se percam as rédeas.
Hoje, toda a comunicação que fazemos por internet ou telefonia celular é interceptada por organizações militares de inteligência. Toda ligação telefônica, mensagem de texto (SMS), toda transferência de dados por conexão é armazenada. Corporações norte-americanas como o Facebook, por exemplo, alcançaram a capacidade de penetração quase que completa em populações inteiras de diversos países. O uso das redes sociais é fundamental para a formação de imensos dossiês armazenados pelos governos com o ajuda das empresas e contra nós, trabalhadores. O Facebook e o Google passam a ser braços auxiliares das agências de espionagem internacionais. Somos como produtos na vitrine para as empresas e governos. Como diz Jacob ApellBaum: a recompensa por fornecer tais informações são créditos sociais (amizades novas, autoestima, namoros, sexo).
Para auxiliar não só na repressão dos governos, mas também na manutenção dos lucros da classe proprietária, o Google funciona também formidavelmente. É de conhecimento de muitos que o seu uso permite que seja traçado um perfil do usuário, que possibilita que identifiquem com quem nos comunicamos, quais nossos interesses e quais nossas preferências pessoais gerais, incluindo posições políticas, sexualidade, etc. Basta notar que as propagandas ofertadas à você se alteram e aparecem de forma, cada vez mais, precisa e tenta se adequar aos interesses que manifestamos ao longo do nosso constante uso do sistema de busca. Chegamos ao ponto em que a publicidade não pode mais viver respeitando a privacidade.
Setores dentro do movimento Cypherpunk[2], que dominam bem este terreno, já encaram a internet nos dias de hoje como mais perigosa do que como uma chance de libertação. A discussão colocada é a da existência de uma fusão das estruturas estatais já existentes com a internet, resultando numa poderosa forma de vigilância para a manutenção do poder e da criação de novas formas de totalitarismo: “… engolindo sofregamente todo relacionamento expresso ou comunicado, toda página lida na internet, todo e-mail enviado e todo pensamento buscado no Google, armazenando esse conhecimento, bilhões de interceptações por dia, um poder inimaginável, para sempre em enormes depósitos ultrassecretos…” (Julian Assange)

A “Guerra ao Terror” e sua utilidade política

Após o episódio das Torres Gêmeas, em 2001, uma série de medidas, já há muito almejadas pelos setores mais influentes da burguesia mundial, saem do papel.
Com a cooperação de grandes empresas, a Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA) se envolveu em um escândalo ao ser descoberta utilizando-se de vigilância em massa sem ordem judicial após o 11 de Setembro. A prática transgrediu uma lei de 1978, a FISA (Lei de Vigilância para a Coleta de Inteligência Estrangeira).
O Patriot Act, por exemplo, é uma lei norte-americana, promulgada por George W. Bush, em resposta aos ataques às Torres Gêmeas, que atua no sentido de “unir as forças da América para interceptar e obstruir o terrorismo”. Além disso, existem as Cartas de Segurança Nacional (NSL), cartas que um órgao federal do EUA pode emitir exigindo a entrega de dados. Elas têm sido emitidas em quantidade crescente, nos últimos anos, sobretudo após 2001, para investigar tudo, menos o terrorismo.
Enquanto isso, a repressão cotidiana, as invasões permanentes e o controle de governos no Oriente Médio, além do genocídio institucionalizado, seguem sendo políticas permanentes do governo dos EUA e que se aprofundam a cada ano. Ataques legais de drones (robôs de guerra, monitorados à distância) já foram inclusive autorizados por Obama, como no escandaloso caso do assassinato do menino Abdulrahman al Awlaki, de 16 anos, no Iêmen, filho de Anwar al-Awlaki, membro da Al-Qaeda. A eliminação à distância se torna uma dura realidade. E a humanidade segue…

Conhecimento e proteção para os trabalhadores, conteúdo livre e criptografia

O acesso ao patrimônio cultural, tecnológico e científico da humanidade é de suma importância, não só para termos uma vida menos infeliz ou mais confortável, mas também para a luta pela derrocada, do que torna nossas vidas tão desconfortáveis e infelizes, esse sistema de exploração. O combate ao compartilhamento livre de conteúdo existe já há algum tempo e aparece por aí na tentativa de implantação de leis e no discurso “politicamente correto” antipirataria. Basta lembrar que os EUA se envolveram em uma grande batalha vitoriosa pela aprovação do tratado internacional chamado SOPA (Stop Online Piracy Act) e que o debate do ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement) ainda não se fechou na União Europeia. Outras ameaças do tipo continuam a rondar as discussões internacionais.
Qualquer tipo de tentativa dos trabalhadores em conhecer os bastidores da programação e do compartilhamento de informações que não esteja a serviço do lucro da patronal será condenada e se possível criminalizada. O discurso antipirataria, por exemplo, tem aparentemente o objetivo de proteger a indústria cultural. Mas, está muito além disso. É centralmente para combater o necessário e tentar nos afastar do conhecimento e da autonomia que os sistemas oferecem como o Peer-to-Peer, por exemplo (sistemas e compartilhamento descentralizado, como os torrents) e nos afastar da ideia comunitária que carrega o seu uso e difusão e da ideia de cultura como patrimônio gratuito da humanidade.
Da mesma forma, a criptografia, proteção das mensagens por cidadãos comuns, foi atacada na década de 1990, mas conseguiu resistir e hoje é utilizada por movimentos de hackers pelo mundo todo, inclusive para alcançar e disseminar denúncias de governos e empresas. Como destaque temos o caso do Wikileaks, no projeto Cablegate, que vazou 251.287 comunicados diplomáticos provenientes de 274 embaixadas dos EUA pelo mundo, causando o endurecimento contra a criptografia, a perseguição, prisão e até tortura dos envolvidos na denúncia.
Um universo paralelo, mas de muita importância tanto quanto nosso bom e velho mundo físico se desenvolve enquanto continuamos vivendo nossas vidas. É um mundo complexo de vigilância permanente que não podemos ignorar. O capitalismo ainda não foi derrubado, enquanto isso, suas formas de manutenção se aperfeiçoaram. É preciso termos uma atuação revolucionária à altura dos desafios de hoje, atualizada, que utilize de toda e qualquer ferramenta necessária.
Falar sobre este tema é uma alerta de que é preciso que tomemos parte desses fatos e desse debate. Esse debate interessa aos hackers, setor policlassista e em sua maioria limitado ao debate da liberdade dentro do capitalismo, mas precisa interessar também aos marxistas. Precisamos apreender o que de melhor existe da tecnologia e desenvolver técnicas de sobrevivência que auxiliem no avanço da organização e defesa dos trabalhadores. Fazemos esse chamado aos camaradas. Avancemos, por todos os campos que pudermos contra a burguesia internacional e suas organizações, até sua definitiva derrocada.

[1] Ver “The Spy Files”, denúncia do WikiLeaks de dezembro de 2011 em: <http://eikiLeaks.org/the-spyfiles.html>.

[2] Movimento que defende a utilização da criptografia e de métodos similares para provocar mudanças sociais e políticas. Criado no início dos anos 1990, atingiu seu auge durante as “criptoguerras” e após a censura da internet em 2011, na Primavera Árabe. Um de seus lemas é “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos”.