Desde março de 2019 o Espaço Socialista e o Movimento de Organização Socialista se fundiram em uma só organização, a Emancipação Socialista. Não deixe de ler o nosso Manifesto!

Os 25 anos da queda do Muro de Berlim e o debate para reconstrução da alternativa socialista


26 de dezembro de 2014

lenin

Este texto é uma contribuição individual, não necessariamente expressa a opinião da organização e por este motivo se apresenta assinado por seu autor.

Daniel Delfino

 

A comemoração de uma vitória que não houve

Em novembro de 2014 foi realizada na Alemanha uma grande celebração para comemorar os 25 anos da queda do muro de Berlim, com a presença de vários chefes de Estado e grande destaque por parte da mídia burguesa internacional. O discurso oficial é de que a queda do muro representou uma vitória da causa da “liberdade” contra a opressão. A cidade de Berlim se localiza no meio do território da antiga Alemanha Oriental, mas durante décadas foi cercada por um muro que a dividia entre uma metade capitalista e uma metade dita “socialista”. Parte de Berlim era uma “ilha” capitalista cercada pelo muro num mar de países “socialistas”. Foi para isolar o “socialismo” do contágio ocidental capitalista que parte da cidade foi cercada pelo muro, que impedia a passagem de pessoas que moravam numa metade para a outra.

A queda do muro foi também a queda do regime “socialista” na Alemanha Oriental e o grande passo para a reunificação das duas Alemanhas, que se completou em 1990, quando Berlim voltou a ser a capital da Alemanha reunificada. No mesmo momento, caíam também os regimes “socialistas” em todo o leste europeu: Polônia, Tchecoslováquia (que se separou em dois países, República Tcheca e Eslováquia), Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia (uma federação cujas seis repúblicas componentes se separaram, inclusive com guerras entre si) e Albânia. No ano seguinte, em 1991, caiu finalmente a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, primeiro e maior dos países “socialistas” (uma federação composta por 15 repúblicas, das quais a Rússia era a maior, que também se separaram). A queda do muro de Berlim representa, portanto, o fim dos regimes “socialistas” e a “vitória” do capitalismo, por isso a burguesia faz questão de comemorá-la. Trata-se de um acontecimento simbólico que os capitalistas e seus ideólogos colocam no centro de sua narrativa da história, para reafirmar a vitória do modo de produção e da forma de sociedade que defendem.
Essa comemoração da “vitória” do capitalismo sobre o socialismo até parecia plausível em 1989-91, mas 25 anos depois, agora em 2014, com o sistema capitalista mundial sem conseguir sair da crise desde 2008, envolto em sérios conflitos entre as grandes potências, que ameaçam transbordar para o terreno militar, pressionado por protestos e lutas populares em vários países, levando ao aumento da miséria, desigualdade e catástrofes; essa comemoração não passa de um imenso ato público de cinismo. Entretanto, apesar dessa “vitória” do capitalismo estar longe de ser definitiva, a crise que se abateu sobre o movimento socialista com a queda daqueles regimes ainda não foi superada, décadas depois, e isso merece uma análise mais detida.
Não consideramos a União Soviética e seus satélites europeus (mas podemos também incluir os não europeus, como China, Cuba, Vietnã e Coréia do Norte) como realmente socialistas, por isso usamos aspas ao chamá-los de “socialistas”. Mas apesar de não terem sido realmente socialistas, o fim do regime que existia naqueles países produziu um retrocesso na luta mundial pelo socialismo, e isso exige uma explicação.

Uma vitória da qual ainda não nos recuperamos

A Revolução Russa de 1917, que daria origem à URSS, foi o acontecimento mais importante da história da humanidade, pois através dela pela primeira vez foi dado um passo para acabar com a sociedade de classes, a partir da tomada do poder político por uma classe dominada, o proletariado, ao lado dos camponeses, em um país inteiro e de grande importância no cenário mundial. Essa vitória foi tão gigantesca que os seus efeitos se estenderam por sete décadas, até 1989-91, mesmo que em menos de duas décadas, já por volta de 1930, os retrocessos tenham anulado quase totalmente os efeitos de tal vitória no interior da própria URSS. De certa forma, o socialismo foi derrotado na URSS já na década de 1930, mas os efeitos dessa derrota só foram notados na década de 1990. Durante esse intervalo de várias décadas, o que sobreviveu na URSS (e se espalhou pelos seus satélites) era uma espécie de arremedo ou fantasmagoria do socialismo, que não tinha chances reais de sobreviver nem de superar o capitalismo.
Mesmo assim, essa fantasmagoria foi tomada como sendo realmente o socialismo, tanto pelos seus adversários capitalistas (que assim puderam difamá-lo enquanto existiu e depois comemorar a sua queda, como fizeram na época e fazem até hoje em 2014, como acabamos de ver em Berlim, ou semanalmente na revista Veja), como pelos defensores do socialismo no restante do mundo, o que é muito mais grave. Considerar a URSS como socialista ou como modelo trouxe prejuízos imensos na compreensão das tarefas reais colocadas na luta pelo socialismo. A falta de uma compreensão real do que era a URSS e de porque o socialismo foi derrotado naquele país ainda impede a retomada de uma ofensiva socialista, mesmo que o adversário capitalista esteja em crise.
Sem ter essa compreensão, o movimento socialista não consegue oferecer uma alternativa aos milhões de trabalhadores e jovens que estão em luta contra os efeitos do capitalismo no mundo inteiro. As lutas se seguem, os protestos se multiplicam, contra a violência policial nos Estados Unidos, contra a violência do narco-estado do México, contra a violência às mulheres na Índia, contra o genocídio dos palestinos por Israel, etc.. Tudo isso tem levado milhões de pessoas às ruas no mundo inteiro, mas se trata de lutas contra os efeitos do capitalismo, e estes efeitos vão perdurar enquanto não se destruir a causa dos problemas, o próprio capitalismo. Essas lutas, por sua vez, jamais vão atacar as causas do problema, ao invés de apenas os seus efeitos, como fazem hoje, enquanto não tiverem uma alternativa real para colocar no seu lugar. E essa alternativa não se coloca, entre outras coisas, porque o socialismo ainda é confundido com o regime que existia na URSS e seus satélites.
Muitos percebem os problemas do capitalismo e até se colocam em luta contra eles, mas não acham que seja possível a abolição total desse sistema e a sua substituição por outro, porque dizem que isso já foi tentado, mas “deu errado”. E a prova de que essa tentativa deu errado são os exemplos de “socialismo” do século XX. O senso comum dos trabalhadores ainda chama as experiências do século XX de socialistas (e é claro, os seus adversários também o fazem, com o objetivo de desacreditar o socialismo), e o movimento socialista ainda não conseguiu desfazer essa confusão. Por isso dissemos que a Revolução Russa foi uma vitória incontestável, mas da qual ainda não nos recuperamos. O gigantismo da vitória de 1917 ainda se impõe sobre nós como um desafio a ser superado, exigindo um passo adiante na história, que continue de onde a Revolução Russa foi derrotada.

Elementos para um debate necessário

O debate sobre as experiências do século XX e porque não levaram ao socialismo precisa ser feito em profundidade por todas as organizações e militantes socialistas, pois sem isso a crise da alternativa socialista jamais será superada. Entretanto, de modo geral, as organizações socialistas permanecem aferradas a concepções que vigoraram durante todo o século XX como se fossem dogmas religiosos. O conservadorismo teórico da imensa maioria das organizações socialistas as impede de retomar o método marxista, materialista e científico, para analisar a realidade e tirar as políticas necessárias para a ação. Não será porém este pequeno texto que irá trazer “a resposta certa” onde tantos militantes honestos e abnegados estão errando. Essa resposta somente será produzida por um imenso e urgente esforço coletivo. Entretanto, não poderíamos concluir o texto sem deixar de apresentar algumas hipóteses que consideramos centrais para este debate coletivo. Tentamos apresentar essas formulações da maneira mais resumida possível, de modo que cada afirmação contida abaixo necessita de precisões. Mas trata-se de um pontapé inicial, portanto vamos aos tópicos:

a) socialismo e capitalismo

– o socialismo não fracassou no século XX, ele apenas foi iniciado, e tão logo foi iniciado em alguns países, foi combatido mortalmente pelo capitalismo, até que aquelas experiências iniciais, completamente deformadas e desfiguradas, fossem enterradas várias décadas depois em 1989-91 (China, Cuba, Vietnã, Coréia do Norte, que já nasceram desfiguradas, estão em processo, mais ou menos completo em cada caso, de restauração capitalista);
– quem fracassou foi o capitalismo, que depois de séculos de existência submete a humanidade à fome, miséria, doenças, violência, guerras, discriminações; além da exploração cotidiana, que rouba nossa força de trabalho em troca de um salário, que é sempre menor do que o valor produzido pelo nosso trabalho, um salário com o qual só temos acesso a um simulacro de vida, não a uma vida autenticamente humana;
– o capitalismo não tem mais nada a oferecer à humanidade a não ser o aprofundamento da barbárie. O controle capitalista sobre as forças produtivas, que impede o intercâmbio e a cooperação da ciência e da tecnologia, retido nas mãos das corporações e governos, é um imenso atraso para a humanidade. Basta pensar nos programas de computador e equipamentos eletrônicos que são incompatíveis entre si e não se comunicam, simplesmente porque são de fabricantes diferentes. A propriedade privada dos meios de produção bloqueia o desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, e impede a redução do tempo de trabalho e a multiplicação do tempo livre para vivências autenticamente humanas;
– por mais graves que sejam as crises, o capitalismo não vai cair por si mesmo, ele precisa ser derrubado por uma ação consciente, que deve ser feita em nome do projeto de uma nova sociedade. Essa derrubada tem que ser feita por meio de uma revolução, já que os detentores do poder, as classes beneficiadas pelo capitalismo, não vão abrir mão dos seus privilégios e vão reagir contra qualquer tentativa de mudança usando a força contra aqueles que querem mudar o sistema, mobilizando a violência do Estado e outros meios que estiverem à sua disposição;
– chamamos esse projeto de uma nova sociedade de socialismo, que não é uma utopia, um plano ideal de sociedade desenhado na cabeça de alguns gênios, ele é o resultado do processo real de transformação, a partir de cada luta concreta pela superação dos problemas da sociedade atualmente existente;
– suponhamos por exemplo uma região afetada pela falta d’água, como a Grande São Paulo no momento. Uma solução socialista seria a formação de comitês de moradores de cada bairro para administrar a água existente, socializando a empresa de distribuição, para garantir que não falte água para consumo humano. E assim por diante em relação ao transporte público, hospitais, etc. Necessariamente, todos os ramos de produção, indústrias, etc., teriam que ser socializados, isto é, expropriados, e colocados sob controle dos trabalhadores. A reunião de todos esses comitês e organismos de controle social em uma única forma de poder político substituiria o Estado como o conhecemos, o Estado capitalista representativo, pela democracia direta dos trabalhadores.
– essa substituição, repetimos, só é possível pela via revolucionária. É preciso abolir o antigo Estado, e todas as suas instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, polícia, etc.), e substituí-lo por novos organismos surgidos da luta dos trabalhadores;

b) socialismo e revolução mundial

– a revolução socialista deve ser feita em cada país, abolindo as instituições de cada estado nacional conforme exemplificamos acima, mas a construção do socialismo propriamente dito só pode ser feita em escala mundial, pois requer a socialização das forças produtivas da humanidade inteira, de modo que os produtores da riqueza, os trabalhadores, se apropriem da tecnologia, para produzir mais e trabalhar menos, e possam assim desfrutar de tempo livre para se humanizarem;
– isso quer dizer que a revolução socialista tem que ser pensada como uma revolução mundial, que deve acontecer tanto nos países mais atrasados como nos países mais avançados. A revolução socialista requer a socialização da riqueza mundial, da ciência e da tecnologia produzidas ao longo da história, para uso coletivo da humanidade. O que tivemos no século XX com o nome de socialismo foi infelizmente apenas a socialização da miséria de alguns países pobres;
– quando os trabalhadores tomaram o poder na Rússia em 1917, liderados pelos revolucionários socialistas, estes não pensavam em construir uma Revolução Russa, no sentido de especificamente russa, mas viam a sua luta como uma parte dessa Revolução Mundial em andamento, a ser desenvolvida no espaço local. Eles estavam “cumprindo a sua parte no plano” internacional da revolução. No restante do mundo é que não aconteceu o mesmo e o “plano” não foi cumprido;
– os revolucionários tomaram o poder na Rússia, no curso de uma grave crise econômica, social e política provocada pela 1ª Guerra Mundial, que ainda estava em curso. Essa crise provocou revoluções e quase revoluções em vários países, não apenas na Rússia, onde foi vitoriosa. Mas na Alemanha, Itália, Hungria, essas revoluções foram derrotadas (quando se estuda essa parte da história, as revoluções provocadas pela I Guerra nos demais países para além da Rússia são convenientemente esquecidas ou secundarizadas pelos historiadores burgueses). Com isso, a Revolução Socialista, ou seja, a Revolução Mundial, ficou isolada e paralisada na Rússia, e se transformou em Revolução Russa;
– durante os primeiros anos após a Revolução os revolucionários se mantiveram no poder na Rússia, transformada em URSS, à espera da Revolução Mundial, que não veio. Ao se manter no poder, eles acabaram involuntariamente se transformando em “modelo” para a revolução socialista internacional. E esse modelo tinha vários problemas, pois a Rússia era um país imenso e importante, mas ainda pobre, pouco urbanizado e industrializado, de maioria camponesa e analfabeta;
– a URSS não poderia ter chegado sozinha ao socialismo, não só por causa dos seus limites materiais como um país atrasado, mas porque o socialismo requer uma revolução mundial, é sempre importante repetir. Mesmo um país imperialista tecnologicamente avançado não poderia alcançar o socialismo sozinho, sem o intercâmbio com o restante do mundo. A URSS, além de partir de uma realidade de atraso e de ter permanecido isolada, enfrentou uma série de outros problemas na sua tentativa de transição ao socialismo. Um desses problemas foi a burocratização, que não havia sido prevista pelos revolucionários;

c) socialismo e burocracia

– os capitalistas russos e internacionais não permitiram que os revolucionários russos e os trabalhadores fizessem sua “experiência” socialista em paz, eles formaram exércitos contra revolucionários para destruir tal experiência, com os métodos mais brutais, levando a uma guerra civil duríssima. Essa guerra só terminou em 1921, deixando a Rússia (que já tinha sofrido com a I Guerra) quase destruída. Para que se tenha uma ideia, o PIB baixou a cerca de 15% do que era antes da guerra;
– boa parte dos operários que eram convictos do socialismo e lutaram pela revolução foram mortos na guerra civil. Os que não morreram se tornaram administradores mais ou menos improvisados da nova sociedade, que teve que ser reconstruída quase do zero. A socialização da miséria não foi uma opção, mas o único caminho que restou aos revolucionários, que permaneceram no poder à espera de uma Revolução Mundial, que afinal não veio;
– mesmo que não houvesse a guerra e a destruição, a Rússia já não tinha as condições materiais e humanas para desenvolver o socialismo, mas poderia avançar para formas democráticas de gestão social, formas proto socialistas ou pseudo socialistas, mais humanas do que as que vigoram no capitalismo, à espera da revolução mundial;
– entretanto, no período da guerra civil, vigorou um estado de emergência, que era justificado enquanto se esperava a revolução em outros países. Nessa situação de emergência, todo o controle passou para as mãos do partido e de uma nova burocracia, composta das poucas pessoas habilitadas às funções gerenciais. Essa burocracia incluía em bom número uma vasta camada de antigos e novos oportunistas, remanescentes do antigo estado czarista russo e ex-militantes convertidos em burocratas;
– essa burocracia era a única que tinha condições intelectuais de administrar a produção e o Estado, mas isso se transformou em fonte de privilégios sociais, e posteriormente, de poder político. A centralização de todos os poderes nas mãos do partido e da burocracia se deveu a uma situação de emergência provocada pela guerra civil. Mas com o fim da guerra civil, a situação de emergência se prolongou, a centralização de poderes jamais foi revertida, a democracia operária jamais voltou. Ao invés de uma gestão social das forças produtivas socializadas (que já não eram as mais avançadas), tivemos uma gestão burocrática, o que fez toda a diferença. A ditadura do proletariado (sobre a burguesia) se converteu em ditadura (da burocracia) sobre o proletariado;
– já na década de 1930, consolida-se na URSS uma contra revolução burocrática, em que a burocracia dos gestores assume definitivamente o poder político. Stalin, representante político da burocracia, já havia afastado do poder Trotsky e os remanescentes do partido revolucionário, já nos últimos anos da década de 1920. Aos poucos, são liquidadas as conquistas sociais da revolução de 1917. Acabam as assembleias dos soviets, acabam as várias instituições e fóruns de controle social das mais diversas atividades, acabam as associações livres e democráticas das mulheres, dos jovens, dos artistas, etc.;
– com a consolidação do stalinismo, aquela possibilidade de um regime proto socialista, mais democrático e humano, se fechou. Os trabalhadores já não retém mais qualquer vestígio de poder, e estabelece-se um estado policial e terrorista (repressão da KGB contra qualquer pensamento divergente, campos de trabalho forçado, culto da pessoa de Stalin, etc.), que não tinha nada a ver com o socialismo. Tragicamente, foi essa caricatura que acabou levando o nome de “socialismo” dali por diante, e ainda hoje;

d) socialismo e estatismo

– essa exposição pode levar à conclusão de que os revolucionários não deveriam ter tomado o poder na Rússia, já que o país não tinha condições materiais de chegar ao socialismo. Nada mais errado! Os revolucionários fizeram o que deveriam fazer. Mesmo derrotada ao final, a revolução foi um tremendo avanço para a história russa e mundial. No mínimo, a existência da URSS, ainda que gravemente deformada pela burocratização, serviu como um contrapeso ao capitalismo mundial, obrigando a burguesia a fazer concessões, que resultaram em melhorias sociais para várias gerações de trabalhadores no mundo inteiro, que ainda hoje nos beneficiam. Essas melhorias servem como parâmetro de bem estar social ainda hoje, e justamente por isso a burguesia está lutando para revogá-las, agora com o caminho aberto pela ausência do obstáculo socialista;
– os limites materiais do atraso russo se impuseram ulteriormente, mas esse curso não estava pré determinado. O resultado poderia ter sido completamente inverso e bem sucedido. A revolução poderia ter triunfado em outros países, e tirado a Rússia do isolamento. Isso não era nenhum delírio, era na verdade uma probabilidade bastante razoável no final da I Guerra, e todos os que viviam o calor dos acontecimentos contavam seriamente com ela. E a disputa política entre os revolucionários e os burocratas no interior da própria URSS, por sua vez, poderia ter influenciado os rumos da Revolução Mundial, como veremos a seguir;
– a expansão da revolução para outros países não aconteceu, a transição ao socialismo estava condenada pelos limites materiais da URSS atrasada, mas isso não apareceu dessa forma por aqueles que vivenciavam o processo. Ao contrário, a vitória da revolução transformou a URSS numa potência, e foi isso que saltou aos olhos do mundo a partir da década de 1930;
– mesmo tendo passado pela destruição da 1ª Guerra Mundial, pela guerra civil que destruiu o que restou do país, pelas irracionalidades da gestão burocrática, pela destruição da 2ª Guerra Mundial, processos esses que custaram vidas humanas na escala de dezenas de milhões, além dos prejuízos materiais incalculáveis, uma sucessão de hecatombes como não houve em nenhum outro país do mundo; mesmo com tudo isso, a Rússia saiu da condição de país camponês e analfabeto em 1917 para condição de potência em poucas décadas, chegando à liderança da corrida espacial, lançando o primeiro satélite artificial, o Sputnik, em 1957 e o primeiro astronauta em 1961;
– esse salto gigantesco da antiga Rússia atrasada para a URSS convertida em potência mundial (potência industrial, militar, científica, cultural, esportiva, etc.) só foi possível por conta da vitória da revolução, que trouxe o fim da anarquia da produção capitalista, centralizando a atividade econômica nas mãos do Estado. A planificação estatal da economia foi o único elemento positivo que sobreviveu da vitória da Revolução de 1917, mas apenas ele foi o suficiente para dar uma sobrevida ao regime durante as várias décadas do século XX;
– essa sobrevida prolongou os efeitos da revolução até a última década do século, juntamente com outros elementos de ordem política. Entretanto, a economia estatizada nas mãos da burocracia não poderia nem se manter por si mesma eternamente, nem avançar para o socialismo, sem que uma nova revolução política e social derrubasse a burocracia e restabelecesse o controle social dos trabalhadores. Uma vez que essa revolução dentro da URSS não aconteceu, o curso natural foi a restauração do capitalismo;
– o controle socialista da produção não é o mesmo que controle estatal. O estado na URSS não estava sob controle dos trabalhadores e sim da burocracia. A socialização é algo que vai muito além da expropriação, que é apenas uma mudança jurídica na propriedade das empresas. Uma empresa estatizada pode muito bem continuar sob controle de gestores com interesses próprios, diferentes e opostos aos dos trabalhadores. O socialismo não é o mesmo que “estatismo”, ele exige que os trabalhadores exerçam de fato e coletivamente o controle sobre a gestão de cada atividade produtiva. E esse controle existiu somente nos primeiros anos da Revolução Russa, sendo logo depois assumido pela burocracia;

e) socialismo no pós-II Guerra

– ao mesmo tempo em que a URSS dava esse salto para tornar-se uma potência mundial, o capitalismo vivia a sua pior crise, a Grande Depressão da década de 1930, que produziu o nazi fascismo e a 2ª Guerra Mundial. Para todos os observadores, era o capitalismo que estava morrendo e o socialismo prosperando na URSS. Nesse cenário, não é acidental que a URSS tenha aparecido como modelo para os trabalhadores do mundo inteiro que lutavam contra o capitalismo. Trabalhadores e militantes socialistas do mundo inteiro olhavam a URSS como exemplo e seguiam o Partido Comunista russo como liderança mundial incontestável. Além disso, trata-se de um mundo em que não existia internet, e a informação era escassa, não se tinha conhecimento dos graves problemas da deformação burocrática, por isso era muito mais difícil, praticamente heróico, que os socialistas do restante do mundo não se tornassem “seguidores” da URSS stalinizada;
– essa liderança foi ainda mais reafirmada quando a URSS arcou com o maior peso em vidas humanas e sacrifícios materiais da luta para derrotar o nazi-fascismo na 2ª Guerra, e emergiu como superpotência mundial. O “socialismo” foi assim “transplantado” para o leste europeu (Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia e Albânia), não por meio de revoluções autônomas dos povos desses países (que não deixaram de ser ensaiadas, inclusive em países até mais decisivos, como a própria França e a Itália, mas foram também sufocadas), mas pela ocupação do exército vermelho soviético, situação que perdurou até 1989-91;
– ao invés de usar essa liderança sobre o movimento socialista para impulsionar a revolução internacional (como era o “plano” original), a burocracia stalinista a usou para submeter os partidos comunistas do mundo inteiro ao seu controle férreo, já desde a década de 1920. Ao invés de instrumentos da revolução internacional, os partidos comunistas transformaram-se em instrumentos da política externa da URSS e da busca de uma convivência pacífica com o imperialismo capitalista mundial;
– Stalin decretou que o socialismo já tinha sido atingido em um único país, a URSS (uma aberração do ponto de vista do marxismo, pois como dissemos acima, o socialismo tem que ser mundial), e pouco depois, declarou que o país já era comunista (uma aberração teórica ainda pior). Muito da confusão até hoje reinante entre os conceitos de socialismo e comunismo tem a ver com a propaganda enganosa do regime burocrático stalinista. A conseqüência política prática da teoria do “socialismo em um só país” de Stalin é que não era mais necessário lutar pelo socialismo e pela Revolução Mundial. O mundo inteiro se tornaria socialista ao desejar imitar o exemplo do sucesso da URSS. Na verdade, essa “teoria” era uma mera desculpa para que a URSS abandonasse os esforços pela revolução mundial. A III Internacional, ou Internacional Comunista, que reunia os PCs do mundo inteiro, foi dissolvida por uma canetada de Stalin, em 1943;
– com isso, o stalinismo abriu mão da luta pela revolução internacional para derrotar o capitalismo, mas os capitalistas não abriram mão da luta para destruir a URSS e os socialistas, e o fazem até hoje. Em nome dessa luta, instalaram ditaduras brutais, como as que vigoraram na América Latina, reprimindo os trabalhadores, garantindo a exploração cotidiana e a opressão, assassinando, torturando e perseguindo milhares e milhares de lideranças operárias, camponesas e estudantis;
– do outro lado, o movimento socialista internacional, submetido ao stalinismo, adotou a estratégia da “revolução por etapas”. Isso significava o apoio à “burguesia progressista” nos países atrasados, para fazer primeiro a revolução nacional e democrática (1ª etapa), e depois a revolução socialista (2ª etapa). Na verdade, essa estratégia nunca funcionou, pois levou os partidos comunistas de matriz stalinista do mundo inteiro a fazer aliança com os setores supostamente “progressistas” da burguesia, alianças que nunca avançaram para a revolução;
– essa política levou à derrota as lutas dos trabalhadores no mundo inteiro, durante as décadas de 1950, 60 e 70. Um dos exemplos foi o do Brasil, em que o PCB apoiou o governo burguês de Jango, ao invés de desenvolver uma política de independência de classe e de luta pelo poder. Isso levou à trágica derrota que foi o golpe civil e militar de 1964 e a ditadura, da qual, de certa forma, ainda não nos recuperamos;
– essa estratégia etapista divulgada no discurso público era o disfarce nominal para a política real de convivência pacífica entre a URSS e o imperialismo adotada ao fim da 2ª Guerra. Onde a estratégia stalinista de aliança com a burguesia não foi seguida e os trabalhadores avançaram para a luta pelo poder, e conseguiram vitórias, (como na China, Cuba, Vietnã, Coréia do Norte), essa luta também não conduziu a revoluções socialistas, mas a regimes burocráticos decalcados do stalinismo soviético. Assim como nos países do leste europeu ocupados pelo exército vermelho, nessas revoluções não houve um papel protagônico da classe trabalhadora organizada (como tinha acontecido no início da própria revolução russa), e sim a ação de partidos-exército, que substituíram os trabalhadores;
– e no leste europeu, quando os trabalhadores quiseram se tornar protagonistas do seu “socialismo”, foram esmagados pelos tanques de Moscou. Isso aconteceu sucessivamente em Berlim em 1953, na revolução dos conselhos na Hungria em 1956, na primavera de Praga em 1968, no levante do Solidariedade na Polônia em 1981;

f) socialismo e o trotskismo

– fora do controle do stalinismo, a principal corrente do movimento socialista foi o trotskismo, que foi sempre minoritário e ainda assim se dividiu em inúmeras tendências (e permanece assim até hoje) desde o assassinato de seu fundador por um espião de Stalin em 1940. O trotskismo teve o mérito de manter de pé os pontos fundamentais do marxismo revolucionário, como o internacionalismo e a independência de classe. Graças à persistência heróicas das organizações trotskistas, sobrevivendo contra o cerco do imperialismo e do stalinismo, a perspectiva do socialismo revolucionário chegou ao século XXI. Se hoje existe algum acúmulo de onde podemos partir para retomar a luta pelo socialismo, é graças ao trotskismo, um mérito histórico que tem que ficar registrado;
– todas as correntes trotskistas, porém partilham de um erro comum, que tem origem no próprio Trotsky (cujo assassinato não permitiu que reavaliasse sua posição), a definição da URSS (estendida a seus satélites) como “estado operário burocrático”. Com base nessa definição, o trotskismo atuou como se o problema da URSS e do socialismo fosse apenas a ausência de uma direção revolucionária, que retirasse a burocracia do poder através de uma revolução politica, e recolocasse a construção do socialismo de volta nos trilhos;
– essa definição de “estado operário burocrático” está errada por desconhecer a contra revolução burocrática da década de 1930 e a liquidação quase total das conquistas sociais da revolução de 1917. A URSS deixou de ser um estado operário, pois a classe operária perdeu qualquer vestígio de poder, e passou a ser um estado burocrático, ou um estado de transição interrompida. Nesse caso, a tarefa não era apenas uma revolução politica para retirar a burocracia do poder, mas uma revolução social e politica, que recolocasse a classe operária no controle da produção e do estado;
– a compreensão das tarefas como limitadas à construção da direção revolucionária e à revolução politica já estavam equivocadas quando existia a URSS e o stalinismo como direção política do movimento socialista. Persistir nesse erro hoje é ainda mais dramático. Quando o stalinismo desmoronou, muitas correntes trotskistas raciocinaram como se a liderança do movimento socialista fosse “cair no seu colo” automaticamente. Ao invés disso, o movimento retrocedeu e se dispersou. A história não daria esse presente aos revolucionários. O movimento teria que ser reconstruído praticamente do zero;
– para que exista uma direção revolucionaria, é preciso que haja um movimento revolucionário a ser dirigido, o que não há. E a revolução a ser feita não é apenas política (pois não há mais uma burocracia stalinista a ser derrubada), mas a revolução como um todo, social, política e ideológica. O obstaculo não é apenas a direção burocrática stalinista (que não existe mais), mas a burguesia e o imperialismo;

g) o fim do stalinismo

– depois da II Guerra novas gerações de trabalhadores nasceram e cresceram na URSS e nos países “socialistas” sem viver as lutas históricas e os progressos das décadas de 1920, 30, 40 e 50. Ao contrário, viveram a estagnação das décadas de 1960, 70 e 80. Para esses trabalhadores, o regime dito “socialista” era tão explorador quanto o capitalismo, com o agravante da opressão política da ditadura do partido único da burocracia;
– esta burocracia, por sua vez, não conseguia dar dinamismo à produção interna. Sem o incentivo da competição econômica capitalista, que obriga os trabalhadores a ter emprego ou morrer de fome, a burocracia não conseguia criar um incentivo político para que os trabalhadores continuassem gerando mais valia para as empresas estatizadas. Não havia também incentivo à inovação, criatividade, proatividade, manutenção, prevenção do desperdício, etc. Com essas características, a economia soviética entrou em estagnação e não conseguiu sustentar a competição com os países capitalistas no mercado mundial. A competição foi dramaticamente agravada pela corrida armamentista, que desviava recursos vitais para a produção de armamentos;
– as reformas de mercado que foram introduzidas na década de 1980 para tentar modernizar a economia da URSS tomaram uma dinâmica própria, que levou às reivindicações de democracia e ao fortalecimento da oposição popular. Uma vez iniciado, o processo levou à queda dos regimes burocráticos. O imperialismo apareceu de fora como representante da “democracia” contra as ditaduras dos partidos “socialistas”. O consumismo dos países capitalistas apareceu para os trabalhadores do leste europeu como a promessa de uma felicidade há tanto tempo negada;
– quando os regimes ditos “socialistas” caíram pressionados pela oposição interna e externa, os trabalhadores não defenderam esses regimes, pois não eram efetivamente seus, não eram estados operários. Ao contrário, aos milhões os trabalhadores tomaram parte entusiasmadamente nos movimentos que derrubaram os regimes “socialistas”, imaginando que o capitalismo lhes daria a liberdade negada pela burocracia. Os ex-burocratas, por sua vez, se converteram em burgueses, saqueando o patrimônio dos antigos estados “socialistas” com métodos mafiosos, na farra das privatizações;
– depois de décadas de domínio da burocracia, nada restou da consciência socialista entre os trabalhadores do bloco soviético, apenas uma vaga lembrança de Lênin e de Stalin como heróis da luta contra o czarismo e o nazifascismo. No restante do mundo, como dissemos no início, a queda dos estados “socialistas” foi apregoada como a vitória do capitalismo e a prova da inevitabilidade desse sistema. Seria o “fim da história”;
– os antigos partidos comunistas e socialistas no restante do mundo, que já haviam abandonado a luta pela revolução, tiveram o álibi definitivo para abandonar qualquer luta contra o capitalismo. Tornaram-se sócios e co gestores do sistema (como o PT no Brasil). Ao abandonar a luta ofensiva para mudar o sistema (luta que nunca haviam realizado de fato), essas organizações abriram caminho para derrotas nas lutas defensivas. As décadas de 1990 e 2000 presenciaram imensos retrocessos materiais e políticos da classe trabalhadora mundial. Privatizações, abertura comercial, desregulamentação, especulação financeira, terceirizações, retirada dos direitos trabalhistas, arrocho salarial, reestruturação produtiva, demissões, deram a tônica dessas décadas. Sem a perspectiva da superação do capitalismo, a resistência contra esses ataques ficou desarmada;

h) o pós-stalinismo

– o fim do stalinismo desbloqueou as forças da classe trabalhadora mundial, libertando-a do imenso peso que eram os regimes burocráticos. Mas essa vitória não apareceu como vitória dos trabalhadores no primeiro momento, e sim como vitória do capitalismo, apropriada pela burguesia. Na verdade, foi o efeito retardado da derrota do socialismo revolucionário na URSS na década de 1930, que só apareceu seis décadas depois. Para que o fim do stalinismo tenha algum efeito positivo e para que as forças da classe trabalhadora mundial se coloquem novamente em movimento em direção ao socialismo, é preciso superar os erros e aprender com as lições do século XX;
– a história não acabou, como dizem os defensores do capitalismo. O sistema continua atravessado por suas contradições e crises, que levam novas gerações de trabalhadores à luta no mundo inteiro. Essas novas gerações não tem o peso da derrota e da desorientação provocadas pelo fim do “socialismo” na década de 1990. Mas também não tem o acúmulo de experiência e organização das antigas gerações;
– estamos vivendo os momentos iniciais da reconstrução da alternativa socialista. O mesmo trabalho hercúleo que foi feito pelos revolucionários do final do século XIX e início do XX para que o movimento dos trabalhadores assumisse o projeto socialista, e que levou às revoluções que foram realizadas no século passado, terá que ser feito novamente;
– os movimentos de luta que surgem hoje, que estão colocando milhões de pessoas nas ruas, como citamos, não são espontaneamente socialistas, são limitados a suas demandas imediatas, e não se colocam como objetivo derrubar o capitalismo. Os processos de luta que se levantam globalmente contra os efeitos do capitalismo (e não contra o próprio capitalismo) são a matéria prima para a construção do movimento socialista, mas não são ainda o próprio movimento socialista;
– para que os movimentos de luta avancem rumo ao socialismo, é preciso que os revolucionários travem uma batalha política no interior desses movimentos para desenvolver a partir de dentro deles a consciência da necessidade de superação do capitalismo. É preciso que a classe operária se coloque como sujeito capaz de reestruturar toda a vida social, e não apenas tomar o poder político, e é preciso que construa os seus organismos de luta e de poder, e não apenas o partido revolucionário;
– a tarefa dos socialistas revolucionários não é apenas construir as suas organizações revolucionárias, mas reconstruir os organismos de luta dos trabalhadores, os sindicatos (ou oposições sindicais, onde estes estiverem completamente burocratizados, como no Brasil), movimentos associações, grêmios, coletivos, etc., como organismos de independência de classe, anticapitalistas e antigovernistas;