Desde março de 2019 o Espaço Socialista e o Movimento de Organização Socialista se fundiram em uma só organização, a Emancipação Socialista. Não deixe de ler o nosso Manifesto!

Jornal 41: Fevereiro/Março de 2011


24 de abril de 2011
Baixar em PDF
Baixar em PDF

Leia as matérias online:

 

CRISE, REBELIÃO SOCIAL E A NECESSIDADE DA ALTERNATIVA SOCIALISTA

 

O mundo vive hoje as conseqüências da grave crise econômica iniciada em 2008. A recuperação já é comemorada pela burguesia desde 2009, por causa da volta dos lucros das empresas. Mas trata-se de uma recuperação claudicante, incerta, ameaçada pelo gigantesco endividamento do Estado, pela instabilidade no comércio mundial e pela disputa cambial entre as nações exportadoras, que precisam rebaixar o valor de suas moedas para torná-las competitivas. Além disso, cresce a instabilidade social e o descontentamento popular por conta das medidas lançadas pelos governos burgueses para administrar a crise.

A dívida pública dos Estados Unidos chegou a US$ 3,5 trilhões, contra cerca de US$ 1,4 trilhões do conjunto dos países periféricos. O total da dívida pública e privada da América Latina representa 22% do PIB do continente, contra 400% da Inglaterra, 263% de Portugal, 169% da Espanha, 168% da Grécia, 148% da Alemanha, 100% dos Estados Unidos e 979% da recordista Irlanda (ALAI, 31/01/2011). Para aplacar esse déficit gigantesco, estão sendo feitos cortes orçamentários nos gastos sociais, tais como aposentadorias, pensões, seguro-desemprego, saúde pública, educação, salários dos servidores, direitos trabalhistas, etc.

Essa política está sendo aplicada tanto pelos países imperialistas como pelos países dominados, mesmo que em menor medida em alguns destes. Os trabalhadores dos países imperialistas, que desfrutavam de condições salariais e sociais melhores, estão sendo os mais diretamente atacados no momento e também têm se colocado em mobilização para resistir.  Estados Unidos, Japão, Europa, enfrentam altos índices de desemprego, crescimento da pobreza e queda dos indicadores sociais. Como conseqüência, greves gerais e grandes marchas paralisaram países como Grécia e França, espalhando focos por todo o continente europeu, e outras manifestações de revolta  e inquietação social se espalham no conjunto do mundo desenvolvido.

 

            A GUERRA CAMBIAL E AS TENSÕES INTERNACIONAIS

As sete maiores economias do mundo, com o PIB medido pelo critério de paridade de poder de compra, são pela ordem Estados Unidos, China, Japão, Índia, Alemanha, Rússia e Brasil. Isso significa que os chamados BRICs deixaram para trás em termos de peso econômico velhas grandes potências como Inglaterra e França. Entretanto, na estrutura de poder geopolítico, os Estados Unidos e a Europa ainda controlam os principais organismos internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU, Banco Mundial, FMI e OMC, mantendo a capacidade de ditar políticas que privilegiam os seus interesses. O G20 foi montado como forma de compensar parcialmente os BRICs, aumentando sua participação na tomada de decisões, mas principalmente sua responsabilidade ao arcar com medidas que ajudem o capitalismo a sair da crise. Entretanto, enquanto pedem sacrifícios dos trabalhadores e dos povos do mundo inteiro, as burguesias imperialistas tratam de usar o Estado para preservar seus interesses particulares.

A contradição entre a existência de um único sistema capitalista mundial e diversos Estados capitalistas rivais se manifestou no fenômeno da chamada “guerra cambial”. O dólar caiu 13% em relação ao yen em 2010 e 18% em relação ao euro entre junho e dezembro. A queda do dólar se refletiu na valorização do ouro, que subiu 28% em 2010, indo para US$ 1.420 a onça. A desvalorização do dólar também se manifesta como alta do preço das commodities, como petróleo, cobre, milho e outros alimentos. O FED anunciou no final de 2010 a impressão de mais US$ 600 bilhões, com o objetivo de desvalorizar ainda mais a moeda estadunidense.

A decisão dos Estados Unidos foi duramente criticada pela China e Alemanha, os dois maiores exportadores do mundo, os quais, por sua vez, foram acusados por Obama de acumular superávits comerciais de maneira “desleal”, ou seja, mantendo suas moedas artificialmente desvalorizadas em relação ao preço de mercado. Os últimos meses de 2010 presenciaram uma verdadeira guerra de desvalorizações cambiais, com diversos países anunciando medidas para diminuir o valor de suas moedas e melhorar as exportações, entre os quais vários exportadores importantes, com destaque para o gigante Japão, mas também os demais “tigres asiáticos”, como Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia e Singapura. Outros como o Brasil anunciaram medidas para conter a entrada de dólares especulativos, impedir a valorização da moeda local e o perigo de inflação.

A visita do presidente chinês Hu Jintao aos Estados Unidos em janeiro de 2011 não serviu para diminuir as tensões entre os dois países. Setores da mídia e do Congresso estadunidenses aproveitaram a visita para criticar a China abertamente por supostamente manipular sua moeda e desrespeitar os direitos humanos (o cúmulo da hipocrisia, já que os Estados Unidos fazem exatamente o mesmo em incontáveis operações criminosas e terroristas pelo mundo, como acaba de revelar abundantemente o site Wikileaks). Políticos e jornalistas, expressando os interesses da burguesia estadunidense, pressionam a administração Obama para que classifique a China como “manipulador de câmbio”, o que autorizaria o governo a impor sanções tributárias aos produtos chineses.

Os Estados Unidos têm pressionado o restante do imperialismo para conter o crescimento chinês, por dentro e por fora dos organismos da ONU. Essa pressão se dá sob a forma de sanções e punições para países e empresas que se atrevem a negociar com países inimigos dos Estados Unidos, tais como o Irã, listados como “patrocinadores do terrorismo”. O Irã é o maior fornecedor de petróleo da China, que por sua vez é o país cujo consumo de petróleo mais cresce no mundo. Os Estados Unidos querem bloquear essa parceria, sob o pretexto de que o Irã busca desenvolver armas nucleares. O Irã possui um programa de uso de urânio para fins medicinais e de usinas nucleares para geração de energia. O nível de enriquecimento de urânio (processo técnico que permite o aproveitamento da radioatividade para produzir energia) requerido para essas atividades é de 3% e 20%, respectivamente, limite atingido até agora pela tecnologia iraniana. O nível de enriquecimento requerido para uso militar é de 90%. O Irã está longe de atingir a capacidade técnica para tanto e submete suas instalações à inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica.

Enquanto isso, Israel, protegido dos Estados Unidos, já detém a tecnologia para produzir armas atômicas, recusa-se a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (portanto, comportando-se como o verdadeiro Estado criminoso) e sabotou o projeto nuclear iraniano, assassinando os cientistas Ali-Mohammadi e Majid Shahriari, chefes do programa, e disparando vírus de computador contra as usinas daquele país.

            A NOVA ALTA DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS

Em 2008 o mundo produziu uma safra recorde de 2,23 bilhões de toneladas de grãos. Mesmo assim, os preços dos alimentos atingiram uma alta também recorde, resultando em protestos populares contra a carestia em mais de 30 países. Isso somente se explica pelo uso que os especuladores fizeram das commodities como alimentos, petróleo e minérios para se recuperar das perdas no mercado de hipotecas estadunidense, que já estava fazendo água desde fins de 2007. Especuladores aproveitam a abundância de liquidez nos mercados financeiros para comprar grandes quantidades de commodities, chantageando o mercado e lucrando com o aumento dos preços. Além disso, um terço da produção de grãos se destina a ração animal, que se transforma em carne para os países ricos, e um fração crescente está sendo transformada em agrocombustíveis.

A maior parte dos países pobres na África, no sudeste asiático e na América Latina teve sua agricultura familiar destruída pelo agronegócio e se tornou importador de grãos. Os governos estão altamente endividados e não tem condições de subsidiar as importações, deixando os preços flutuar ao sabor do mercado. Em muitos países pobres o custo dos alimentos chega a comprometer 50% da renda familiar ou mais. Enquanto milhões passam fome e são obrigados a lutar nas ruas contra seus governos por comida, outros lucram com a miséria e o sofrimento. A Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio, viu seu lucro aumentar 300% entre 2009 e 2010, quando passou de US$ 489 milhões para 1,49 bilhão. O mesmo quadro de especulação financeira, aumento da produção e dos preços se repete agora.

A FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, alertou para o preço recorde dos alimentos no início de 2011, o qual superou as marcas de 2008. Naquele ano, os preços subiram a ponto de dobrar num intervalo de 18 meses. Depois da queda dos preços em 2009, os índices voltaram a subir novamente em 2010. Nos últimos doze meses, o preço do milho subiu 52%, o trigo subiu 49%, a soja 28%, o café 53% e o algodão 119%. Outras commodities também estão subindo, como o cobre (30%) e o petróleo (26,5%). O preço do petróleo, por sua vez influencia no preço final dos alimentos, uma vez que aumenta o custo dos transportes, dos fertilizantes e também, indiretamente, o dos agrocombustíveis. A FAO tem uma lista de 29 países em situação de emergência alimentar, ou seja, fome.

            A CRISE SE ESPALHA E PROVOCA REBELIÕES NO NORTE DA ÁFRICA

A recessão e o desemprego na Europa fez com que vários países endurecessem as regras contra a imigração vinda do norte da África e de outros continentes. Nessas situações, os trabalhadores mais precários, em geral imigrantes, são os primeiros a serem demitidos e também enfrentam a hostilidade generalizada, o preconceito e a perseguição de bandos fascistas e neonazistas. A xenofobia se converte em política de Estado em países como a França e a Itália. Milhares de jovens que buscavam empregos permanentes ou temporários na Europa foram impedidos de entrar ou obrigados a voltar para seus países de origem. Assim como os nordestinos em São Paulo, muitos imigrantes africanos e de outros continentes estabelecidos na Europa mantém os laços com suas famílias nos países de origem, enviam dinheiro regularmente, retornam periodicamente, etc. Quando a porta do “sucesso” individual se fecha na Europa, a ação coletiva nos países natais é a única escolha que resta aos jovens.

A ação coletiva se manifestou finalmente como rebelião social na virada do ano. O mundo foi surpreendido no início de 2011 pelo que foi batizado de “Revolução de Jasmim” na Tunísia. Mas as tensões já vinham se acumulando no norte da África e Oriente Médio há meses. O Egito na verdade precedeu a Tunísia, pois os protestos ocupam a praça Tahrir, na capital Cairo, desde meados de 2010. A queda do presidente tunisiano deu ânimo aos povos de toda essa vasta região, e fez com que se lançassem às ruas. Protestos semelhantes se espalharam pelo Marrocos, Argélia, Jordânia, Iêmen e Bahrein. As lutas sociais também se reavivaram fortemente em países já tensos da região, como Irã, Iraque e Líbano. A mesma combinação explosiva de alto desemprego, inflação galopante, autoritarismo político, corrupção, servilismo aos Estados Unidos e populações predominantemente jovens se repete em todos esses países para explicar o levantamento popular.

A revolta dos povos árabes deixou o imperialismo em estado de alerta, pois a economia capitalista mundial é cronicamente dependente do fornecimento de petróleo do Oriente Médio, o qual é garantido por governos pró-ocidentais, extremamente corruptos, autoritários e violentíssimos na repressão aos seus povos. Muitos desses ditadores governam há décadas e se sustentam no poder graças ao medo que seus aparatos de terror estatal inspiravam na população. Esse cenário agora começa a mudar. Muitos desses países passaram por tumultos e greves por ocasião da alta dos preços dos alimentos em 2008, antes da crise mundial. Agora, com uma nova alta dos preços, a continuidade do desemprego e da repressão, novos levantamentos começam a acontecer. Mas dessa vez, em 2011, os povos árabes miram mais alto e exigem a saída dos odiados governantes, o que representa um salto em relação aos tumultos de 2008.

O primeiro foco de revolta a chamar atenção foi o Maghreb, região do norte da África composta por Mauritânia, Marrocos, Sahara Ocidental, Tunísia, Argélia, e Líbia. Esses países são ocupados por povos de variadas composições étnicas, mas são unificados pela língua árabe e pela religião muçulmana. Todos partilham também um passado de ocupação imperialista, especialmente por parte de franceses e ingleses. Desde meados do século XX, esses países, como o restante do mundo colonial, se tornaram formalmente independentes, mas mantiveram-se submetidos à política imperialista, aos interesses das transnacionais das antigas metrópoles e ao imperativo de reprimir suas populações.

Em alguns deles, como o Egito, chegou-se a ensaiar um movimento nacionalista, sob a liderança de Gamal Abdel Nasser, militar que nacionalizou o canal de Suez, enfrentando o imperialismo anglo-francês, dentro do contexto do movimento dos chamados “países não-alinhados” (supostamente equidistantes em relação aos Estados Unidos e URSS). Entretanto, o nacionalismo árabe gradualmente se dobrou ao imperialismo. O sucessor de Nasser no Egito, Anwar Sadat, foi o primeiro governante árabe a assinar um tratado reconhecendo Israel. Sadat foi assassinado em 1981 e sucedido por Hosni Mubarak, que se manteve no poder até 2011. No final das contas, as ditaduras nacionalistas serviram apenas para reprimir a oposição de esquerda, virtualmente exterminada, e abrir caminho para os fundamentalistas islâmicos, a principal forma de oposição conhecida no mundo árabe. Entretanto, esse cenário está mudando, pois uma nova forma de oposição popular, operária e da juventude, onde a influência do fundamentalismo islâmico é minoritária, está emergindo das lutas recentes.

            A “REVOLUÇÃO DE JASMIM” NA TUNÍSIA

No início de janeiro de 2011 uma onda massiva de protestos populares levou à queda do presidente tunisiano Ben Ali, que governava o país desde 1987, sucedendo a Habib Bourguiba, que por sua vez governara desde a independência em 1957. O país era governado praticamente como um feudo por Ben Ali, seus parentes e um pequeno grupo de famílias, que controlam direta ou indiretamente bancos, emissoras de rádio, jornais, o aeroporto, transportadoras, linhas aéreas, cadeias de hotéis, imóveis e propriedades rurais. Associados a transnacionais européias, em especial francesas, os clãs mafiosos que governavam a Tunísia enviavam para o exterior uma fortuna anual de US$ 18 bilhões.

O regime proibia candidatos de oposição de fazer campanha e não permitia liberdade de imprensa. O país é altamente dependente do turismo, que caiu bruscamente desde que a crise mundial afetou a Europa. Os preços dos alimentos também tem subido, numa reedição da alta de 2008. Mas dessa vez os protestos tem sido muito maiores, especialmente por parte dos jovens. Metade da população tem menos de 25 anos e as taxas de desemprego nessa faixa etária são muito maiores do que os 14% oficiais.

Muitos jovens tem formação superior e continuam desempregados, o que os obriga a sobreviver na economia informal. Quando a polícia confiscou as mercadorias de um desses camelôs, Mohamed Bouazizi, o jovem ateou fogo ao próprio corpo. Outro rapaz se suicidou tocando cabos de alta tensão, e o sacrifício desses mártires incendiou a ira popular. Num dos vazamentos do Wikileaks, um diplomata estadunidense classificou a Tunísia como uma cleptocracia e uma ditadura, o que também contribuiu para atiçar a revolta. Os protestos tem sido divulgados e convocados via redes sociais como Facebook e Twitter, driblando a censura da televisão e jornais. O governo tentou culpar extremistas islâmicos e terroristas pelos protestos, mas sem a menor credibilidade. O levantamento popular foi massivo e espontâneo, sem qualquer orquestração nos bastidores. Os choques com a polícia não intimidaram os manifestantes, apesar de centenas de mortos, feridos e presos, e os protestos se espalharam por todas as cidades do país.

Depois de apoiar Ben Ali por décadas, o imperialismo europeu e estadunidense percebeu a insustentabilidade da situação e cinicamente passou a criticar o governo pela violência da repressão policial. A intensidade dos protestos foi tão grande que o presidente se viu forçado a renunciar e deixar o país com sua família (e suas riquezas) para evitar um confronto mais agudo. Um novo governo foi instalado às pressas com remanescentes do grupo de Ben Ali para tentar administrar o descontentamento popular. Foram marcadas eleições para daqui a seis meses, mas o toque de recolher e as leis de exceção não foram suspensos, de forma que o governo continuou a perseguir os opositores e tentar impedir sua organização.

Não obstante a continuidade da repressão, formou-se a “Frente 14 de Janeiro”, composta de organizações de diversas tradições, desde nacionalistas-árabes, antigos grupos stalinistas e organizações operárias, a qual apresentou um programa de reivindicações democráticas, anti-imperialistas e reformistas, mas ainda sem um claro caráter anti-capitalista e socialista. Mesmo sem um programa e organizações decididamente socialistas, o povo tunisiano segue mobilizado e depois da queda de “Ali Babá”, exige a saída dos “40 ladrões”, ou seja, o restante de sua equipe ainda no poder.

 

            A QUEDA DE MUBARAK NO EGITO

O Egito é um dos países mais importantes da África, pelo seu peso populacional (cerca de 84 milhões de habitantes), econômico (crescimento de 5,4% em 2010) e estratégico (controle do canal de Suez, entre África e Ásia, por onde o petróleo do Oriente Médio adentra a Europa). 44% da população vive abaixo da linha de pobreza de US$ 2 por dia. O salário mínimo foi estabelecido em um valor equivalente a cerca de US$ 50 dólares em 1984 e desde então não foi mais aumentado. Esse valor equivale a cerca de 13% da renda média per capita, uma das proporções mais baixas do mundo. Além de ganhar pouco, o trabalhador egípcio trabalha muito: a média de horas de trabalho por ano é de 2.373 na capital Cairo, contra uma média de 1.900 em outras 73 cidades pesquisadas pelo banco UBS. Esse cenário torna o país bastante atraente para o investimento estrangeiro. A China investiu US$ 500 milhões em 2009 e se tornou o maior parceiro comercial do país em 2010.  Dezenas de transnacionais como IBM, General Motors, McDonald’s, BMW, Vodafone, Shell atuam no país. O Egito era o país africano mais próximo de se tornar uma plataforma de exportação ao estilo dos “tigres asiáticos”, graças à criação de zonas francas para as “maquiladoras”, empresas estrangeiras que montam produtos no país explorando a mão de obra barata.

O Egito vive sob lei de exceção desde 1981, quando o presidente Anwar Sadat foi assassinado por grupos radicais por ter fechado um acordo de paz com Israel. Desde então a ditadura proíbe organizações partidárias, sindicais e ONGs de fazer oposição ao governo. O estado de sítio autoriza a polícia a deter cidadãos sem mandado judicial, o que torna as prisões arbitrárias, desaparecimentos e tortura de opositores fatos corriqueiros. A Irmandade Muçulmana, fonte do fundamentalismo islâmico, está sediada no Egito, e o estado de sítio se mantém sob pretexto de reprimí-la. A violação sistemática dos direitos humanos mais elementares foi a condição para a permanência do atual governo. O ditador Hosni Mubarak, de 82 anos, preparava seu filho Gamal para ser seu sucessor.

A falta de democracia, a pobreza, o desemprego, a alta dos preços dos alimentos já vinham causando um crescimento das lutas desde 2008, quando o país foi um daqueles que protagonizou protestos contra a carestia, no que foi chamado de “revolta do pão”. Desde 2004 há um crescimento constante das greves, tanto no setor público quanto no privado, com destaque para as greves dos têxteis em 2007 e 2008. Por conta da inexistência de um movimento operário nacionalmente organizado, as greves são isoladas por empresa ou cidade, sem se converter em lutas nacionais. Mesmo assim, as manifestações na praça Tahrir, na capital Cairo, são praticamente diárias desde meados de 2010.

Em fins de janeiro de 2011, com o exemplo da “Revolução de Jasmin” tunisiana, o movimento egípcio tomou corpo. O número de manifestantes na praça Tahrir passou de alguns milhares a algo em torno de um milhão de pessoas e passou a exigir abertamente a saída de Mubarak. Chamou muita atenção o uso das chamadas redes sociais da internet (facebook e twitter) e dos celulares para convocar e coordenar as manifestações. 40% da população tem menos de 30 anos. Essa imensa massa de jovens exasperados pela falta de perspectiva lançou-se às ruas sem a incitação de correntes Muçulmanas ou burocratas sindicais e partidários, o que representa uma mudança ideológica importante. Ao contrário do que foi alardeado pela mídia governista, as mobilizações não foram lideradas pela Irmandade Muçulmana. Assim como na Tunísia, os protestos foram em grande parte espontâneas e laicos.

A princípio, o ditador tentou resistir, decretando toque de recolher e ordenando a prisão dos manifestantes. A população não se intimidou e manteve a ocupação da praça Tahrir. Confrontos com as forças de repressão deixaram dezenas de mortos na capital e nas grandes cidades, como Alexandria, Suez e Port Said. O governo tentou conter a mobilização popular bloqueando o acesso à internet e aos celulares, num atentado escancarado à liberdade de expressão, mas sem sucesso, o que prova que não é a tecnologia que faz avançar a rebelião e sim a disposição de luta.

O movimento não refluiu e Mubarak apelou para o exército. Entretanto, uma ampla camada de oficiais médios se recusou a atirar contra o povo e afogar a revolta popular num banho de sangue, única forma de conter o movimento. Isso poderia resultar em guerra civil, pois temeu-se que parte das tropas se bandeasse para o lado da oposição. A partir desse momento, a sorte do governante estava selada. Mubarak e seus partidários ainda apelaram para bandos fascistas, que atacaram a população concentrada na praça Tahrir, mas foram derrotados em combates de rua, em 2 de fevereiro. O exército então se posicionou em setores estratégicos da capital para impedir novos confrontos. Além da grande mobilização popular, o movimento ganhou força quando entrou em cena a classe operária. Portuários de Suez, petroleiros, têxteis, servidores públicos e professores entraram em greve. A economia egípcia foi virtualmente paralisada por uma greve geral. Depois de 18 dias de fortíssima mobilização, a queda definitiva de Mubarak aconteceu em 11 de fevereiro.

O ditador foi substituído por uma junta militar. Ao mesmo tempo em que retirou Mubarak do poder (embora lhe permitindo sair tranquilamente do país para usufruir no exterior das décadas de pilhagem), o exército cercou o palácio presidencial e a TV estatal, sitiados pelo povo, impedindo a ocupação. As forças armadas acabam por se provar como pilar fundamental da continuidade do regime. O exército egípcio recebeu uma média de mais de US$ 1 bilhão por ano dos Estados Unidos no últimos trinta anos, a segunda maior ajuda militar estadunidense depois da de Israel. Além de garantir o abastecimento de petróleo via canal de Suez, o Egito também cumpre o papel de dar suporte a Israel no mundo árabe, inclusive auxiliando no massacre dos palestinos ao fechar a fronteira da faixa de Gaza.

O imperialismo tenta gestar em seus laboratórios um novo governo para o Egito, que seja capaz de impedir que a mobilização popular avance para reivindicações econômicas, como nacionalizações, controle dos preços e aumento de salários, que questionem a continuidade dos negócios da burguesia. O prêmio Nobel de química naturalizado estadunidense Ahmed Zewail e o ex-dirigente da Agência Internacional de Energia Atômica (fachada da CIA para espionar países hostis aos Estados Unidos) Mohamed El Baradei despontam como mais prováveis candidatos, ao lado da própria Irmandade Muçulmana, há tempos “domesticada” pela ditadura e tornada isenta de radicalismos.

QUE PASSA NO EGITO?

O que vimos no Egito foi uma grave crise de dominação onde o governo (na pessoa de Mubarak) perdeu toda credibilidade e legitimidade, não tendo mais força para continuar impondo o seu projeto. O ódio era dirigido ao ditador Mubarak, portanto, contra uma parte do poder. No entanto, um poder burguês se apóia em um conjunto de instituições, como o parlamento, o exército, o judiciário e uma série de instrumentos ideológicos que procuram legitimar o regime. O peso de cada instituição na política determina o caráter do regime. Se é uma ditadura, o poder se apóia nas forças policiais e militares; sé é um poder democrático burguês, as principais instituição são o parlamento e o judiciário. Atacando todas as instituições, ataca-se o Estado burguês que é a trincheira mais importante da burguesia. A destruição do Estado burguês é condição para a revolução socialista.

No caso da mobilização no Egito, o ódio dos manifestantes ainda não se estendeu ao conjunto do regime, ou seja, as instituições que o sustentam (principalmente o exército) ainda não estão sendo atacadas pelos trabalhadores egípcios, até porque, diante da crise, a própria cúpula das forças armadas resolveu não intervir diretamente. O caráter de classe da mobilização também está bastante diluído. Um bom exemplo disso é o tratamento dispensado pelo povo ao executivo do Google que, por ser oposição e ser preso por Mubarak, foi saudado como um ídolo do movimento. Não estamos dizendo que o regime está intacto, pois a ameaça de uma mobilização desse porte balança qualquer regime e cria instabilidades que não podem durar muito tempo. É uma contradição importante que se colocou na realidade.

É importante ter uma definição precisa do processo que está em curso e destacar o papel do elemento ideológico nas revoluções, dando-lhe uma importância que a maioria da esquerda não leva em conta. Para uma revolução socialista, a primeira tarefa é derrotar política, social e ideologicamente a classe –ou bloco– dominante. Para isso, é necessária a formação, e principalmente o desenvolvimento de formas de poder paralelo dos trabalhadores, que avancem contra o poder da burguesia em seu conjunto, e não só o governo.

Uma rebelião se transforma em revolução somente quando passa a se propor resolver a disputa política e social em favor dos trabalhadores, procurando derrotar o Estado enquanto um  conjunto de instituições. A presença do elemento subjetivo nas revoluções abre a possibilidade de que os trabalhadores tomem em suas mãos o seu destino, diminuindo o peso das direções traidoras que começam o movimento já pensando em como desviá-lo da sua radicalidade.

A história do século XX demonstrou que podem ocorrer revoluções, como a chinesa ou a cubana, sem que estejam totalmente desenvolvidas as condições subjetivas, mas são revoluções que cumprem algumas tarefas –como a libertação nacional – mas não avançam no que é essencial, a substituição do poder burguês pelo poder dos trabalhadores. Ou seja, para que tenhamos uma revolução socialista, é preciso que os trabalhadores exerçam o poder diretamente, e não através de formas substituicionistas, como os partidos-exército. A ausência do elemento consciente da classe operária tornou os processos chinês e cubano mais dramáticos, porque esses Estados já nasceram completamente desviados das formas de poder democrático do proletariado.

 

A SITUAÇÃO AINDA ESTÁ INDEFINIDA

A rebelião egípcia é sem dúvida a mobilização mais massiva e mais importante que a nova geração de trabalhadores militantes já presenciaram, colocando-se como uma das principais rebeliões do século XXI. A própria mídia burguesa indica que há um importante processo de auto-organização dos manifestantes. O acampamento na praça Tahrir, a resistência aos ataques das forças fascistas pró-Mubarak, as formas de auto-organização para garantir alimentação e infra-estrutura necessária para o movimento, são uma demonstração da força e decisão dos manifestantes. É um processo que surpreendentemente segue com uma força cada vez mais crescente. Outro elemento fundamental e que pode decidir os rumos do movimento é a entrada em cena do movimento operário, com as greves se alastrando por diversos ramos da economia egípcia, como os trabalhadores petroleiros, têxteis, do porto de Suez e grande parte do funcionalismo público.

O fato dos trabalhadores terem entrado no conflito significa que está dada a possibilidade de que haja uma saída classista, ou seja, pode ser o pontapé para uma organização dos trabalhadores independente da burguesia. Assim, os próximos acontecimentos serão decisivos para a sorte da rebelião dos trabalhadores egípcios.

 

            A NECESSIDADE DA ALTERNATIVA SOCIALISTA

O processo egípcio permanece em aberto. A luta popular foi suficiente para derrubar o governo, mas não derrubou o regime. Seu pilar fundamental, as forças armadas, permanece de pé. Também não se pode dizer que houve mudança no sistema social, pois o capitalismo ainda se mantém praticamente inalterado. De qualquer forma, houve uma mudança muito importante na atitude da população e da classe trabalhadora, pois depois de décadas e ao custo de grande enfrentamento (com centenas de mortes), os egípcios colocaram-se em luta e obtiveram uma significativa vitória parcial ao derrubar o ditador. Não será simples fazer voltar para casa uma população que adquiriu confiança nas próprias forças e sentimento de vitória. Nos dias imediatamente seguintes à queda de Mubarak, a população permaneceu mobilizada e foram apresentadas exigências aos novos dirigentes. Elementos de organização, comitês e assembléias surgem das mobilizações e podem se manter como instrumentos de luta. Esses elementos podem avançar para exigir mudanças mais radicais no regime social, as únicas capazes de melhorar a vida da população.

À medida em que o processo se generaliza para outros países, o imperialismo e a mídia burguesa tentam controlá-lo e distorcer seu sentido. As rebeliões árabes são apresentadas como uma nova versão das “revoluções de veludo” que derrubaram os Estados burocráticos do Leste Europeu entre 1989-91, pelo fato de que os povos árabes lutam em nome da democracia. Os acontecimentos de 1989-91 foram apresentados como prova da vitória do capitalismo e do “fim da história”. Mas ao contrário disso, as rebeliões de 2011 são rebeliões contra o fracasso do capitalismo, incapaz de oferecer uma verdadeira democracia e sequer de alimentar as populações. A verdadeira contradição da realidade mundial não é entre “democracia” e “ditadura”, mas entre trabalho e capital. Tanto as ditaduras árabes quanto as democracias burguesas são igualmente ditaduras do capital contra os trabalhadores. Só a derrubada do capitalismo e a construção do socialismo podem trazer uma verdadeira democracia.

As greves e manifestações na Europa em 2010 eram lutas dos trabalhadores para defender suas conquistas históricas e sua qualidade de vida. As lutas dos povos árabes no início de 2011 são lutas contra a miséria e pela aquisição de uma melhor qualidade de vida. Duas faces de uma mesma moeda, a crise estrutural e societal do capital. O elo que falta para unir as duas lutas é a consciência da necessidade de superar o capitalismo, indo além da derrubada de governantes e reformulando todo o metabolismo social, sob controle dos trabalhadores. A ausência dessa consciência é o que chamamos de crise da alternativa socialista, o fator que terá que ser superado para que a rebelião árabe avance para uma verdadeira revolução socialista. A superação dessa crise e o avanço em direção a uma revolução dependerão não só da intervenção de organizações revolucionárias, mas fundamentalmente da construção de organismos de luta do conjunto da classe, por meio dos quais os trabalhadores sejam responsáveis pela própria emancipação.

▲ voltar ao índice

 

 

O COMUNISMO E A INTERNET

            O caso Wikileaks

Em fins de 2010 o site Wikileaks publicou um lote de 250 mil documentos provenientes de despachos das embaixadas estadunidenses no mundo inteiro. A publicação desses documentos revelou que a rede de embaixadas é na verdade uma vasta rede de espionagem, encarregada de coletar dados estratégicos, militares e de inteligência dos países em que estão estabelecidas, além de dados pessoais de governantes e ocupantes de cargos de alto escalão, incluindo extratos bancários, senhas, amostras de DNA, etc. Além de revelar essa função, os despachos contém análises dos agentes estadunidenses sobre a situação de cada país, do ponto de vista dos interesses da super potência. O vazamento dessas análises provocou um verdadeiro terremoto diplomático. Aliados ou adversários, grandes potências ou semi-colônias, são tratados nos documentos com brutal desprezo pela sua soberania e dignidade.

Os documentos expõem o caráter criminoso e desumano do imperialismo estadunidense, a agressividade de seus militares, a voracidade de suas corporações, a perfídia de seus agentes, a total falta de escrúpulos ao atacar, coagir e corromper. Os textos revelam uma prepotência verdadeiramente monstruosa ao falar de planos de guerra contra a China e a Rússia, intenções de bombardear o Irã, bombardeio de civis no Iêmen, estocagem de armas proibidas na Inglaterra, planos para retirar governantes do poder e instalar outros mais “amigáveis”, conivência com o golpe em Honduras, aprisionamento ilegal de dissidentes e opositores, tortura e desrespeito sistemático aos direitos humanos, violação de tratados internacionais, crimes de agentes da CIA, operações ocultas de governos aliados mantidas em segredo para suas populações, subornos pagos a governantes em troca de acordos favoráveis às corporações estadunidenses, obstrução de investigações criminais e judiciais contra todos esses crimes, etc. Os escândalos se sucedem numa torrente interminável, expondo a sordidez ilimitada do imperialismo estadunidense em suas pretensões de domínio mundial.

O volume de vazamentos é tão grande que o governo estadunidense nem sequer esboça uma tentativa de negar a autenticidade dos documentos. Ao invés de tentar limpar sua imagem, o que se provou de qualquer forma inviável, o governo estadunidense optou por tentar destruir a imagem de Julian Assange, o ativista australiano responsável pelo Wikileaks. Acusações de assédio sexual e estupro foram disparadas contra Assange na Suécia, o que o levou a ser detido na Inglaterra, onde aguarda julgamento sem poder sair do país. A extradição para a Suécia poderia fornecer a base para uma extradição aos Estados Unidos, onde seria acusado de “terrorismo”, conforme declarações de autoridades estadunidenses, o que poderia resultar até em pena de morte. As acusações não resistem a um escrutínio minimamente sério (há declarações anteriores das acusadoras atestando que as relações foram consensuais), o que revela que se trata de pura perseguição política.

Os documentos publicados pelo Wikileaks foram obtidos em parte por operações de hackers e em parte por vazamentos fornecidos de dentro pelo pessoal do próprio aparato diplomático e de inteligência estadunidense e das forças armadas. Um dos autores de vazamentos, o soldado Bradley Manning, foi identificado como responsável pelo vazamento de dados chocantes da guerra no Iraque, e está sofrendo perseguição criminal.

            O problema da liberdade de expressão

O ódio do governo estadunidense se combina com o ódio da mídia burguesa, tornada obsoleta pelo Wikileaks, já que este se provou muito mais capaz de expor sem disfarces a verdadeira face da realidade mundial. O ataque contra o Wikileaks é um ataque contra os direitos democráticos mais básicos e contra a liberdade de expressão. Julian Assange não é um militante socialista, é apenas um ativista da mídia com ideais “democráticos”. Mesmo assim, a democracia mais elementar se provou incompatível com a continuidade do capitalismo, pois esse sistema não pode conviver com a exposição da verdade.

Por décadas tem vigorado um acordo tácito entre os grandes jornais e redes de TV nos Estados Unidos (que funciona da mesma forma no resto do mundo) pelo qual os segredos estatais mais embaraçosos não podem ser revelados. A auto-censura é uma exigência dos grandes grupos empresariais aos quais as empresas de mídia estão subordinadas, já que muitos desses grupos dependem de acordos com o governo. Agora, quando o Wikileaks cumpre o papel que caberia à mídia, os meios de comunicação se unem na campanha maciça para apresentar Julian Assange como “terrorista” e estuprador, por mais que as acusações contra ele tenham se provado escandalosamente forjadas.

O potencial da internet para a livre comunicação é uma ameaça para as grandes empresas de mídia, daí o seu desespero para derrubar o Wikileaks e criminalizar seu fundador. A campanha contra o Wikileaks foi ao ponto de retirar o site do ar por meio de ataques de negação de serviço e bloqueio dos servidores pela Amazon. O Wikileaks foi forçado a se instalar em um servidor na Suíça. De qualquer forma, o material revelado pelo site já foi copiado e multiplicado pelo mundo.

            O controle sobre a internet

O Wikileaks cumpriu o papel que o jornalismo deveria cumprir, ou seja, trazer informação. Acontece que o jornalismo feito sob controle das empresas de mídia, jornais, revistas, rádios, televisões e portais de internet, obedece aos interesses dos seus donos e patrocinadores, não do público. A informação transmitida por esses meios chega ao público truncada, fragmentada, filtrada, censurada em suas partes mais críticas, distorcida, reinterpretada para que se conclua dos fatos o contrário do que eles representam, conforme o viés ideológico desejado pelos poderes que controlam a comunicação (a rebelião no Egito, por exemplo, aparece como uma “festa da democracia”).

Assim como os demais meios, a internet também esta sujeita a este controle. O órgão que regulamenta a rede World Wide Web, o famoso “www” que precede todos os endereços de internet,  é uma entidade pública sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, ICANN). Isto significa que o governo imperialista pode eventualmente “puxar a tomada” e tirar a internet do ar (na verdade, quase toda a internet, pois existem redes “subterrâneas” por fora do www e do protocolo “http”, usadas apenas por usuários altamente preparados).

Mesmo com as limitações do controle estatal e corporativo, a internet ainda propicia um espaço para a busca de formas de comunicação e compartilhamento de idéias. No período recente tem ganhado importância o fenômeno das chamadas “redes sociais”, tais como os sites de relacionamento orkut (popularíssimo no Brasil), facebook e o twitter. Trata-se de uma forma de comunicação ágil e bastante prática, capaz de ligar os indivíduos em torno de gostos e preferências comuns.

Extrapolando as possibilidades dadas aos usuários comuns como as redes acima, existe um setor dos usuários da informática e da internet que não se contenta com os limites impostos pelo controle estatal/corporativo e desenvolve práticas que visam burlar esse controle. Trata-se do chamado cyberativismo, que envolve desde a criação de veículos para a disseminação de informações e idéias, a prática sistemática de distribuir essas informações e também opiniões (em canais como o próprio Wikileaks, mas também o Youtube, Blogger, Twitter, etc.), até modalidades mais radicais, como ações diretas de invasão de sistemas corporativos e estatais para adquirir informações, ou a sabotagem desses sistemas por vírus e ataques de negação de serviço (milhares de acessos simultâneos que sobrecarregam um determinado sistema e o obrigam a se auto-desligar preventivamente).

 

            A propriedade privada como obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas

      No final do século XVIII e início do XIX, com a Revolução Industrial, o capital promoveu verdadeiros milagres em termos de crescimento das forças produtivas, de um modo que, em pouquíssimo tempo, a humanidade se viu capaz de “diminuir” o mundo e ampliar magnificamente o conhecimento. Não se trata aqui de se fazer apologia ao capital, pelo contrário. Na mesma medida que se desenvolviam as forças produtivas, os trabalhadores empobreciam. As descobertas da ciência e tecnologia, ao invés de se direcionarem para as necessidades humanas, eram direcionadas para acelerar o ciclo da mercadoria e da concentração e centralização de riqueza.

            Não obstante essa contradição, as grandes descobertas científicas faziam com que os antigos questionamentos passassem a ter resposta racional, derrubando a prevalência dos velhos dogmas da religião (depois de milênios de domínio retrógrado do cristianismo institucionalizado) como forma de explicar o mundo. A impressão que se tinha é de que a humanidade estava às vésperas de ser ver emancipada graças aos avanços científicos e tecnológicos. A busca constante pelo aumento da produtividade pelos capitais particulares era o grande motor propulsor que jogava a humanidade para tais descobertas e para o a crescimento das forças produtivas.

Ocorre que, depois de passado dois séculos e meio, a humanidade vê-se a retornar ao período medieval, não só no que diz respeito ao conhecimento, mas também à produtividade. Se  antes a propriedade privada foi o combustível para as grandes descobertas, agora passa ser o maior empecilho para que as mesmas forças produtivas continuem a evoluir. A produtividade é tão alta que qualquer evolução técnica manda para os ares a propriedade privada. Podemos ver isso claramente no que diz respeito à tecnologia da informação e no setor audiovisual. Com um mínimo de conhecimento no manuseio de alguns programas de computador simples, qualquer pessoa pode “baixar” arquivos digitais da internet e montar uma discografia completa de seu artista preferido; montar uma videoteca com um sem-número de filmes dos mais variados gêneros, bem como uma coleção de “softwares” para as mais variadas necessidades.

Caso a pessoa não tenha conhecimentos suficientes do uso de programas para ter tais materiais em casa de forma gratuita, é possível encontrá-los facilmente a preços reduzidos no comércio informal das ruas das grandes cidades. É uma verdadeira expropriação dos grandes capitalistas da informática e da indústria cultural, que fazem de tudo para manter o controle e a propriedade privada sobre os programas, filmes, músicas e textos. No desespero, os capitalistas fazem uma verdadeira campanha para que as pessoas adquiram somente “produtos originais”, por meio de um ataque ideológico à produção e ao comércio paralelo de tais mercadorias, denominado como “pirataria”. O ataque ideológico se completa com a ação policial e judicial, enquadrando as pessoas que fazem uso deste ramo como criminosas.

Ocorre que a valorização da “originalidade” dos produtos de que tanto se faz menção é uma tentativa vã das das grandes corporações da mídia e da informática (detentoras da propriedade privada) de manterem o monopólio da produção e venda dos produtos. Não há, do ponto de vista da funcionalidade técnica, qualquer diferença entre um produto “original’ e o produto oriundo da pirataria, a não ser o fato de que a mercadoria “original” custa muito mais caro. Pateticamente, tenta-se moralizar a questão, como se não se tratasse de uma necessidade do dia a dia. Quem compra o produto original é “bom”, quem compra um “pirata” é “mau”. No entanto, do ponto de vista prático, quem adquire um produto por 100 ao invés de pagar 10 faz o mesmo que jogar 90 na lata do lixo.

Os capitalistas tentam desenvolver formas de manter o seu monopólio, mas todas elas são insuficientes para impedir a crescente expropriação da propriedade intelectual resultante da democratização do acesso ao resultado do trabalho humano. A democratização é um resultado do desenvolvimento da capacidade de processamento e de armazenamento de dados dos computadores e de seu mais diversos componentes, e também do desenvolvimento da capacidade do pessoal especializado em informática, que rotineiramente derruba as travas colocados pelo capital para impedir o seu livre acesso. Uma prova contundente disso está nos softwares “craqueados”, em que o usuário consegue instruções para remover “manualmente” as travas que os capitalistas colocam para impedí-los de usar os programas sem pagar. Qualquer pessoa que saiba executar estas instruções pode ter todos os programas necessários para as suas rotinas diárias praticamente de graça. E não adianta a burguesia inovar para manter a sua propriedade privada, pois, em mais tempo ou menos tempo, encontra-se um jeito para derrubá-las.

 

            Possibilidades da internet

Um dos exemplos de como o capitalismo está mais do que obsoleto como modo de produção é o chamado “e-commerce”, os sites de compras coletivas. O fenômeno começou nos Estados Unidos com o Grup.on e chegou ao Brasil com o Peixe Urbano e similares. Trata-se de um mecanismo em que um grupo de consumidores interessado em um determinado produto ou serviço (desde um eletrodoméstico a um pacote de viagens ou curso de idiomas) faz um pedido coletivo, adianta o pagamento e recebe diretamente do fornecedor original, a preços muito mais vantajosos, devido à escala do pedido. Essa operação dispensa a intermediação do capital comercial (firmas como Wal-Mart, Carrefour e outras se tornaram tecnicamente dispensáveis). Numa economia racional, possível apenas numa sociedade socialista, esse mecanismo poderia orientar a produção social determinando com enorme praticidade a quantidade dos produtos e serviços necessários para determinada população. Sob o capitalismo em que vivemos, trata-se de mais uma artimanha de um setor do capital (o Grup.on e assemelhados são empresas capitalistas como outras quaisquer) na concorrência contra outro setor, o comércio varejista tradicional, tornado socialmente inútil.

Um outro movimento que retrata exemplarmente a luta pelo desenvolvimento das forças produtivas contra o limite das relações capitalistas de propriedade privada é o do “software livre”. Os softwares  (programas de computador, como o Windows, Internet Explorer, Word, Excel, etc.) de tipo tradicional são desenvolvidos e patenteados por empresas que detém a propriedade do seu “código-fonte”, a “linguagem interna” por meio da qual o programa “conversa” consigo mesmo para desempenhar suas tarefas. Os softwares livres (o mais famoso dos quais é o Linux) são desenvolvidos por programadores que compartilham o código-fonte de sua autoria com outros programadores, de modo a permitir que os programas sejam aperfeiçoados por um processo coletivo de colaboração. Há empresas que comercializam versões do software livre para o usuário final, que em geral não domina a programação. Mesmo assim, o compartilhamento dos códigos-fontes contraria a lógica da concorrência capitalista, já que demonstra que a colaboração é mais produtiva que a concorrência.

            A revolução é real e não virtual

Apesar de todas as possibilidades contidas na internet enquanto meio de comunicação, é preciso ressaltar que um veículo de comunicação por si mesmo não é capaz de substituir a luta de classes ao estilo tradicional, como acaba de demonstrar o Egito. As rebeliões populares na Tunísia e no Egito foram divulgadas, convocadas e até certo ponto coordenadas pelas redes sociais da internet, mas no momento decisivo o ditador egípcio “desligou” a internet (e também os celulares) cortando o acesso de todos os usuários do pais. Assim, a rebelião teve que prosseguir usando o método tradicional, ou seja, o bom e velho boca a boca, e conseguiu derrubar o ditador. O moral da história é que os veículos de comunicação têm uma certa utilidade na luta revolucionária, mas para realizar uma revolução real (e libertar a própria internet e outros recursos), nada substitui a consciência e a organização dos trabalhadores nas ruas.

▲ voltar ao índice

 

PARA ALÉM DAS ENCHENTES:

A LÓGICA CAPITALISTA E A DEGRADAÇÃO DAS CIDADES

No início de 2011 as fortes chuvas de verão provocaram deslizamentos que deixaram quase 800 mortos na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Tragédias desse tipo têm sido recorrentes: em 2010 as chuvas também deixaram mortes e desabrigados em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, e no bairro de Jardim Pantanal, zona leste da capital. Também houve enchentes no norte de Alagoas e sul de Pernambuco em meados de 2010, com os mesmos efeitos catastróficos. Os governos e a imprensa burguesa colocam a culpa no excesso de chuvas, fazem acusações a algumas autoridades e mobilizam a sensibilidade popular na solidariedade às vítimas. Entretanto, as causas de fundo do problema das enchentes permanecem intocadas. As enchentes e outros problemas das grandes cidades não são produtos de causas puramente naturais, mas sociais. O sistema capitalista impõe um determinado tipo de ocupação das cidades, que privilegia os interesses da burguesia e joga os trabalhadores para as regiões mais pobres e precárias. Para solucionar os problemas urbanos, precisamos questionar o projeto capitalista em implantação no país, que está sendo tocado pelos governos Lula e Dilma (e pela oposição burguesa do PSDB/DEM), e lutar por um outro projeto que contemple as necessidades dos trabalhadores.

 

            O PAC, a especulação imobiliária, e a falsa solução para o problema da moradia

O Brasil tem sido apresentado como um modelo mundial de sucesso no enfrentamento da crise econômica, por ter tido um crescimento de 7,7% em 2010 (agência EFE, 13/12/2010). Entretanto, boa parte desse crescimento foi artificial, insustentável, baseado num aumento do endividamento, tanto do governo, que soltou quantias enormes de dinheiro para as grandes empresas, quanto dos consumidores. Entre 1995 e 2009 a dívida pública saltou de R$ 60 bilhões para R$ 2 trilhões, mesmo que o país tenha pago R$ 1 trilhão em juros e amortização. Só em 2010 foram doados mais de R$ 350 bilhões para as empresas. Em relação aos consumidores, boa parte do endividamento tem a ver com a especulação imobiliária nas grandes cidades.

O crédito fácil precipitou uma orgia de construção de casas e prédios. Os bairros residenciais estão sendo ocupados por edifícios de apartamentos, que estão sendo vendidos por meio de empréstimos a perder de vista. Só a Caixa Econômica Federal elevou em 53,6% o volume de crédito imobiliário em 2010 (Estadão, 11/02/2011). Ao mesmo tempo, as construtoras se beneficiam de programas de financiamento estatal a juros baixíssimos. Assim, programas como o PAC e o “minha casa, minha vida” do governo federal estão amarrando os trabalhadores em dívidas, ao mesmo tempo em que os bancos,  construtoras e fornecedores de materiais ganham rios de dinheiro, e a qualidade de vida nas cidades se deteriora. Não é por acaso que as empreiteiras fizeram doações milionárias para a campanha de Dilma, a “mãe do PAC”, contando com a continuidade da politica implantada por Lula. As empreiteiras contribuíram com um quarto dos custos da campanha de Dilma, num total de R$ 33,7 milhões. Um grupo de 12 empreiteiras, responsável por R$ 28,4 milhões, foi agraciado em 2010 com contratos no valor de R$ 1,24 bilhão em obras do governo federal (Estadão, 31/12/2010).

O PAC e o “minha casa, minha vida” são apresentados como formas de beneficiar os trabalhadores com o acesso à moradia, mas na verdade estão cevando os bancos e construtoras. O déficit habitacional no Brasil está em 5,8 milhões de moradias, enquanto que o número de imóveis ociosos nas grandes cidades é de 6,07 milhões, segundo dados do censo do IBGE de 2010 (portal IG – Último Segundo, 11/12/2010). Isso significa que o déficit habitacional poderia ser solucionado desapropriando-se os imóveis ociosos para uso da população sem teto ou que vive em habitações precárias nas favelas e ocupações. Mas para isso, seria preciso desafiar um dos pilares da sociedade capitalista, a propriedade privada, e enfrentar alguns dos principais suportes políticos dos governos Lula/Dilma, os bancos e empreiteiras. O PT jamais vai romper com a burguesia para quem governa, assim como a oposição burguesa PSDB/DEM, por isso não pode fazer outra coisa além de oferecer falsas soluções para os problemas dos trabalhadores.

            A ocupação destrutiva do espaço urbano

As construções que estão surgindo no processo de especulação imobiliária e dos programas do governo também não levam em consideração questões básicas como a qualidade das construções e a lógica da ocupação do espaço urbano. Notícias sobre desabamentos em construções pelo Brasil afora pipocam diariamente na imprensa: “(…) construção irregular pode ser uma das causas (…) desabamento ocorrido na tarde de quarta-feira, 8, na Vila Matilde, Zona Leste”, Agência Brasil, 09/12/2010 – “Desabamento em construção fere operário na zona sul de SP”, Folha.com, 03/02/2011 – “Prédio em construção desaba em Belém”, Portal G1, 29/01/2011 – “Ameaçam desabar 600 prédios na região metropolitana de Recife”, Jornal da Record, 10/12/2009 – “Quatro morrem em desabamento de prédio no Rio”, Veja, 30/10/2010; etc.

As novas construções estão sendo feitas às pressas, para aproveitar o momento comercial favorável, mas com material de qualidade inferior e sem seguir os padrões de segurança necessários. Além do problema da segurança das construções, também não estão sendo levados em conta uma série de aspectos da organização do espaço urbano. O fornecimento de água, escoamento de esgoto, coleta de lixo, são projetados em cada bairro e cada cidade para determinado volume, que determina a quantidade de construções que a infra-estrutura urbana é capaz de suportar, dentro de um plano tecnicamente racional de zoneamento urbano. Essa capacidade da infra-estrutura urbana não está sendo considerada, de modo que em várias cidades as casas e prédios estão sendo “amontoados” e a sua ocupação sobrecarrega a vazão de água, esgoto e coleta de lixo suportáveis. A ausência de investimentos em infra-estrutura e a sanha desenfreada das construtoras (com a conivência dos órgãos de fiscalização municipais corruptos) se combinam para criar cenários de catástrofe urbana, como acúmulo de lixo, entupimento de bueiros e galerias, contaminação dos rios e córregos, etc., que se agravam dramaticamente nas épocas de chuvas mais intensas.

A infra-estrutura das cidades também não comporta o volume do tráfego de automóveis. O município de São Paulo tem 6.093.551 veículos em circulação (carros, ônibus, micro-ônibus, caminhões e caminhonetes, segundo o site do Detran-SP), para uma população de 11.057.629 habitantes (dados de 2010, site da Prefeitura). Essa quantidade de veículos lança 10.562.000  toneladas de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera (dados do  Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa, elaborado pela Prefeitura em 2005, o mais recente disponível). O efeito estufa consiste num aumento da temperatura média global, que resulta em desequilíbrios climáticos e aumento das chuvas, causa imediata das enchentes. Trata-se de um verdadeiro círculo vicioso, em que um problema se conecta com o outro. Todos esses fenômenos estão interligados, pois fazem parte da lógica do capitalismo. A especulação imobiliária expulsa os trabalhadores dos bairros centrais, jogando-os para locais mais distantes, a ausência de investimento em transporte coletivo faz com que as pessoas tenham que usar automóveis, o excesso de automóveis em escala planetária influencia no aquecimento global, que faz com que aumentem as chuvas, que também afetam os trabalhadores dos bairros mais precários, e assim sucessivamente, etc.

            O aquecimento global e as desordens climáticas

Dados mais recentes da World Meteorological Organization e do site Nature Geoscience mostram uma tendência contínua de aumento da temperatura média do planeta. Desde que as medições sistemáticas começaram em meados do século XIX, os anos mais quentes foram 1998, 2005 e 2010. O derretimento das calotas polares e das geleiras também avançou. Eventos climáticos extremos foram registrados em 2010, como a onda de calor na Rússia, que provocou incêndios e conseqüente quebra da safra de trigo, e as inundações no Paquistão, que deixaram 7 milhões de desabrigados. No início de 2011 houve aumento acima da média das chuvas na Austrália e no Brasil.

As últimas reuniões de cúpula internacionais sobre a mudança climática, em Copenhague e Cancún, serviram apenas para proteger os interesses imediatos das potências imperialistas e impedir a adoção de medidas realmente capazes de conter o aquecimento global. Tais medidas prejudicariam as mega-corporações da indústria automobilística, petrolífera e outras, que controlam a política dos países imperialistas, que fazem com que as discussões sobre mudança climática permaneçam no plano das declarações de intenções. Ao contrário de reverter os danos ao meio ambiente, os encontros sacramentaram os planos das mega-corporações imperialistas de seguir implantando práticas destrutivas, como os plantios transgênicos, os agro-combustíveis, o reflorestamento com espécies predatórias para abastecer as indústrias de papel, os mercados de câmbio de carbono, a aculturação e manipulação de populações aborígenes por ONGs, a invasão do território dos países periféricos, etc.

            A “desproletarização” dos bairros operários de São Paulo

Nos últimos 20 anos, a cidade de São Paulo avançou em direção à periferia. Assim, os antigos bairros são tragados pelo centro, que se expande cada vez mais, a ponto de que antigos redutos proletários, ou até mesmo as favelas, passam a ser objeto de especulação imobiliária. Favelas como Heliópolis, Real Parque, Canão do Brooklin, Paraisópolis, antes lugares esquecidos pelos governos e imobiliárias, passaram a se valorizar com a expansão da malha urbana. Os terrenos e edificações localizados em antigos bairros ocupados historicamente pelos trabalhadores passam a interessar ao capital, ao mesmo tempo em que estes mesmos trabalhadores passam a ser empecilho para a especulação imobiliária, fazendo com que os pobres e oprimidos sejam “convidados” a saírem de suas casas.

Isso pode ser feito pela via comercial, num sistema em que as incorporadoras compram diversas casas, todas vizinhas, para serem derrubadas e substituídas por condomínios de luxo. Na cidade de São Paulo, bairros como a Vila Leopoldina chamam bastante a atenção como exemplo desta tendência. Nos últimos 20 anos, um lugar que era vizinho a um lixão à beira da Marginal Pinheiros, passou a ser, por obra das construtoras e imobiliárias, a mais “nova Moema” da cidade. O lixão se tornou o famoso Parque Villa Lobos e as velhas casas de operários dão lugar aos condomínios de luxo em que o custo de cada unidade passa de 7 dígitos. Os antigos proprietários, depois de venderem suas residências para as construtoras, não conseguem se manter no bairro por conta da supervalorização dos terrenos, e da subseqüente elevação geral do cuso de vida. As poucas casas que ficaram de pé são destinados ao comércio, que se adapta para atender a nova e “nobre” vizinhança.

Quando a compra não é suficiente para desocupar as áreas valorizadas, o Estado se encarrega de fazer o trabalho sujo para os barões imobiliários, simplesmente derrubando os imóveis, como foi o caso da região do Real Parque e da Favela do Canão, encrustados ao lado da Avenida Luiz Carlos Berrini, conhecida por ser a “nova Avenida Paulista” por causa dos grandes prédios comerciais.

Este novo “boom” imobiliário promove a super-ocupação do solo. Satura-se o centro e impermeabiliza-se a periferia, de modo que a água da chuva não tem mais para onde correr, sobrecarregando a vazão dos rios e córregos, transbordando para as ruas e para dentro das casas, causando mortes e prejuízos para os trabalhadores. Vítimas da especulação imobiliária, os trabalhadores são obrigados a ir cada vez mais longe na direção da periferia, onde só lhes resta ocupar as áreas de risco. Os moradores das áreas de risco sofrem prejuízos patrimoniais e familiares com as enchentes e deslizamentos, como pudemos constatar no interior do Rio em 2011, onde foram ceifadas centenas de vidas, todas de trabalhadores. No ano passado, o Jardim Pantanal, na Zona Leste de São Paulo ficou meses debaixo d’água. A população que se recusou a sair teve suas casas derrubadas pela prefeitura. Em troca de habitações que custaram uma vida inteira de esforço para adquirir, a prefeitura os “ajudou” com um vale-aluguel de 300 reais.

O mais comum nessa situação é que se coloquem os trabalhadores como criminosos, afinal a “culpa” é deles por “invadirem” áreas de risco de deslizamentos e enchentes. As vítimas são apresentadas como culpados pela própria desgraça. A mídia burguesa faz uma “criminalização seletiva” da ocupação do solo, pois quando se trata de grandes empreendimentos imobiliários que ocupam essas mesmas áreas, o tratamento não é o mesmo. Para se ter uma idéia disso, as margens dos dois grandes rios que cortam a cidade (Tietê e Pinheiros) estão todas tomadas por construções e empreendimentos “chiques”, como os centros comerciais do Eldorado, Morumbi, Villa Lobos, Center Norte, Jóquei Clube, Daslu, etc, etc, etc. Essas ocupações são tão ilegais quanto às dos pobres, mas nunca foram incomodadas pelo Estado ou forçadas a se retirarem das margens dos rios. Na verdade, o próprio Estado muitas vezes é o meliante, por conta da impermeabilização de todo o solo da cidade com asfalto e cimento, em nome da prioridade para o transporte automobilístico.

            O projeto da burguesia para as cidades

Ao lado do processo “espontâneo” de deterioração das condições de vida das cidades, que tem a ver com o próprio desenvolvimento automático da lógica destrutiva do capital, existe  no  Brasil um projeto deliberado e consciente da burguesia, aplicado pelo Estado, que consiste em remodelar as cidades para a Copa do Mundo e as Olimpíadas Não se trata apenas de eventos esportivos, mas de um projeto politico para as cidades, que contém uma série de objetivos embutidos.

Primeiro, apresentar o Brasil perante o mundo como exemplo de sucesso do capitalismo. Segundo, incrementar o mercado de turismo, reservando as belezas naturais do país para usufruto exclusivo dos visitantes endinheirados do mundo inteiro. Terceiro, sob pretexto dos eventos esportivos, realizar uma gigantesca operação de remodelação urbana, removendo populações inteiras das favelas e bairros periféricos, bem como os pobres, moradores de rua, comércio ambulante dos centros, etc., “limpando” as cidades e transformando-as em locais aprazíveis e “seguros” para a burguesia. Quarto, sob pretexto de “reprimir o crime”, manter a população dos bairros pobres e periféricos sob a mira permanente do terror de Estado, na forma de ocupações militares, ocupações policiais, ações das tropas de elite, etc. Essas ações causam um efeito espetacular a princípio, mas isso é ilusório, pois ao final do processo estabelece-se o controle das milicias de policiais corruptos sobre os bairros. As UPPs no Rio já são parte desse projeto mais geral.

Em São Paulo, as enchentes no Jardim Pantanal no início de 2010 foram provocadas pelo fechamento deliberado da barragem da Penha, com o objetivo de proteger as obras da Avenida Marginal do Tietê, sacrificando as vidas e os bens dos moradores do bairro (“Comportas fechadas na barragem da Penha para proteger a marginal ajudaram a alagar a zona leste de SP”, Portal UOL, 17/12/2009). O objetivo de longo prazo é remover toda a população da região e viabilizar o Parque Várzeas do Tietê: “O parque terá 75 km de extensão e 107 km² de área. Será o maior parque linear do mundo. Nele, serão construídos 33 núcleos de equipamentos de esporte e lazer, atendendo a população dos municípios da bacia do Alto Tietê: São Paulo, Guarulhos, Itaquaquecetuba, Poá, Suzano, Mogi das Cruzes, Biritiba Mirim e Salesópolis.” (“São Paulo terá maior parque linear do mundo”, Portal do governo do Estado, 20/07/09)

Em beneficio de uma minoria, do conforto da burguesia em seus bairros luxuosos e dos lucros da indústria automobilística, da construção civil, dos bancos e de outros parasitas, constrói-se um modelo de cidade que torna a vida infernal para a maior parte dos seus habitantes, a classe trabalhadora, obrigada a conviver com os aluguéis altíssimos, a insuficiência do transporte coletivo, a superlotação de ônibus, trens e metrôs, o trânsito insuportável, a poluição do ar, sonora e visual, a falta de áreas verdes, e para completar, as enchentes.

            Como medidas imediatas para os problemas urbanos, defendemos:

– Priorizar realmente o transporte coletivo de qualidade. Investimento em mais trens e ônibus para diminuir o número de automóveis nas ruas e aumentar a área verde da cidade. Tarifa social de R$ 1,00 nos trens e ônibus. Que o empresariado e o estado assumam o restante do custo, com a criação de um Fundo de Transporte cortando gastos dos políticos, cargos privilegiados, e aumentando os impostos da empresas, que não disponibilizem ônibus fretados;

– Há milhares de imóveis vazios nas grandes cidades enquanto trabalhadores vivem em áreas de risco e distantes do trabalho. Portanto é preciso expropriar os imóveis ociosos nos centros e colocá-los à disposição dos trabalhadores a preços acessíveis;

– Por um plano de obras eficaz que viabilize a construção de moradias populares a preços compatíveis e não absurdos como hoje;

– Fim de financiamento público para condomínios de luxo e a utilização dessa verba para financiamento das moradias populares;

– Indenização do Estado a todas as vítimas de enchentes e deslizamentos;

– Casa para quem perdeu a casa nas enchentes e deslizamentos;

– Isenção de todos os tributos para as vítimas de alagamentos e desmoronamentos por seis meses;

– Por um plano de obras públicas que priorize o saneamento e a despoluição de rios e lagos; Proibição das empresas jogarem seus esgotos nos rios;

– Contra a repressão e a criminalização dos movimentos das vítimas de enchentes.

▲ voltar ao índice