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O Aviador


13 de dezembro de 2008

O AVIADOR

Nome original: The aviator

            Produção: Estados Unidos, Alemanha

            Ano: 2004

            Idiomas: Inglês

            Diretor: Martin Scorcese

            Roteiro: John Logan

            Elenco: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett, Kate Backinsale, John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Ian Holm, Danny Huston, Gwen Stefani, Jude Law, Adam Scott

Gênero: biografia, drama

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

O que aviação tem a ver com cinema? Na cabeça de Howard Hughes, tinha muita coisa a ver. O encontro de suas duas paixões se deu com a filmagem de “Hell’s Angels”, no começo dos anos 1930. Um projeto tão caro e extravagante para a época quanto foi “Titanic” em nossos dias. “O Aviador”, de Martin Scorsese, começa mostrando a realização deste projeto, com uma intensidade de tirar o fôlego. Imagens, música, frases num turbilhão atordoante. O sangue italiano de Scorsese vem à tona plenamente, como já viera em “Gangues de Nova York”, onde também se exercita um delírio digno de Fellini.

Alguns sinais dessa tendência já estavam presentes desde “Cassino”. Mas Scorsese já é desde “Táxi driver” um diretor consagrado e o que acontece aqui não é uma mudança radical de estilo, apenas um exercício de consolidação de uma tendência. O diretor nova-iorquino é sinônimo de qualidade e provocação. Trata-se de um daqueles diretores com quem os astros fazem fila para atuar, mesmo em papéis pequenos, seja um grande ator como Willem Defoe ou um artista ascendente como Jude Law. Isso porque ele é capaz de fazer render o melhor de seu elenco, como nos casos de Alec Baldwin (o rival de Hughes), John C. Reilly (o contador das empresas de Hughes), e Ian Holm (o “assessor científico” das aventuras de Hughes), mesmo quando escalados nas posições mais improváveis.

Neste aspecto, talvez o maior problema esteja justamente no protagonista. Não que Leonardo DiCaprio não seja um ator competente. Mas sua foi carreira irremediavelmente queimada pela transformação em ídolo mundial das adolescentes na época de “Titanic”. Aquele fenômeno o congelou para sempre na figura de astro jovem, da qual dificilmente conseguirá se livrar. Se isso não bastasse, sua fisionomia de garoto que nunca envelhece não colabora para que ele seja levado a sério. Sua tentativa de encarnar um homem adulto não funciona aqui, pois ele sempre parece um garoto-fazendo-papel-de-adulto. Mas como se trata do diretor em questão, a deficiência de uma das peças não prejudica o conjunto do time.

Em “O Aviador”, Scorsese ganha o jogo já nos primeiros 15 minutos. Como se diz no jargão do futebol, depois disso é só administrar o resultado. Testemunhamos o apogeu da chamada era de ouro de Hollywood, época na qual foram produzidos alguns de seus filmes mais marcantes, como “E o vento levou”, “Cidadão Kane” e “Casablanca”; e em que se fixou o mito secular do cinema estadunidense. Data dessa época a própria invenção do Oscar e do característico glamour das deusas do “star sistem”. Scorsese nos traz toda essa exuberância criativa embalada em muito jazz das “big bands” e dos “crooners” de cabaré. Simplesmente irresistível.

Hughes foi um dos protagonistas desta era, além de o ser também em relação ao desenvolvimento da aviação e de outras atividades empresariais. Mas havia algo de errado com essa miragem do sonho estadunidense, e não era apenas a psicologia peculiar de Hughes. A história do “Aviador” não deixa de ser um conto de ascensão e queda, em que transparecem nitidamente os contornos de um sistema e os limites que uma certa personalidade podia alcançar dentro dele.

Aquilo que aparecia de maneira fluente e coesa nas filmagens de “Hell’s Angels”, a singular atividade de construir aviões/produzir filmes/namorar estrelas de Hollywood, se desfaz juntamente com a integridade física e psicológica de Hughes, ao longo das três horas de filme. A decadência se prolongaria até a morte do milionário, transformado em eremita, mas o filme só o acompanha até 1947, quando ele ainda pode cantar vitória em uma de suas muitas batalhas.

            O visionário que levou a aviação da era dos acanhados biplanos para a dos grandes cargueiros transcontinentais precisou enfrentar a megacorporação Pan Am, hoje falida, mas na época ainda todo poderosa e capaz de assalariar senadores para deter a ascensão da TWA de Hughes. Na época dessa batalha contra o senador da Pan Am, Hughes já estava fisicamente devastado pela queda de um de seus aviões no vôo teste que ele mesmo pilotava (em cena digna de Spielberg); e psicologicamente debilitado pelo transtorno obsessivo compulsivo. Mas ele ainda podia contar com Ava Gardner (Kate Beckinsale) para lhe fazer a barba e recompô-lo para as audiências do senador, o que é um luxo para poucos.

            Antes disso, ele já havia namorado, até quase se casar, com Katherine Hepburn (Kate Blanchet, em atuação impressionante, apesar da dicção escancaradamente caricata), mulher inteligentíssima, atriz mais premiada pela Academia (4 Oscar), vinda de uma aristocrática família de intelectuais e artistas da região da Nova Inglaterra com pendores esquerdistas; enfim, uma “avis rara” mesmo em Hollywood. Howard Hughes era um homem de gosto peculiar, que não fumava, não bebia, adorava leite e com certeza sabia como agradar as mulheres.

            Falávamos acima do confronto que amarra o trecho cinebiografado da vida de Hughes, a “CPI” do Senado que investigava os contratos das empresas de Hughes na época da II Guerra. A investigação era uma farsa montada sob patrocínio da Pan Am para impedir a TWA de operar vôos internacionais. Mesmo psicologicamente desfavorecido, Hughes não era homem de se intimidar com a armação do senador Brewster (que mais tarde seria coadjuvante de McCarty na caça às bruxas). O aviador vira a mesa e parte para o ataque, voltando o interrogatório contra o interrogador.

            Este trecho em particular é uma aula sobre o funcionamento do capitalismo estadunidense em suas altas esferas, onde o poder privado das megacorporações se conecta com o do Estado. Se em “Gangues de Nova York” vimos como o país foi forjado, com base na violência, na intimidação e no embuste; em “O Aviador” vemos a máquina alçando vôo livre, de posse de suas potencialidades recém-descobertas. A máquina em questão é o complexo industrial-militar, a descoberta que permitiu ao capitalismo estadunidense e mundial deslocar suas contradições mais agudas, impedir a ativação de seus limites estruturais absolutos e sobreviver ao longo do século XX.

            Esse momento exemplar do cinema nos propicia uma pedagógica digressão pela esfera da economia política. A expansão do círculo de consumo, com a inclusão de setores da classe trabalhadora dos países metropolitanos, no período favorável do extraordinário ciclo de acumulação do imediato pós-guerra foi certamente um expediente importantíssimo para a sobrevivência do sistema capitalista, mas de alcance temporalmente limitado, haja visto seu esgotamento com a crise da década de 1970 e o posterior advento do neoliberalismo. Já o complexo industrial-militar mostrou-se infinitamente mais flexível e versátil, tanto durante a Guerra Fria como na recente escalada belicista da era Bush.

            O segredo que permite ao complexo industrial-militar deslocar as contradições do capitalismo é a capacidade de unificar funcionalmente as esferas da circulação e do consumo. Esse ramo da indústria cria produtos que não atendem a nenhuma necessidade humana (pelo contrário), mas tem sua demanda assegurada pelas encomendas do Estado e que no momento mesmo em que são vendidos, asseguram a conclusão do ciclo de realização do capital, quer sejam utilizados ou não. E na verdade, não se deseja que sejam utilizados, pois se o fossem isso aniquilaria a vida na Terra algumas dezenas de vezes. Mas isso não importa (para o capital), pois as imensas quantidades de material e mão de obra, inclusive altamente qualificada e científica, que são mobilizadas na sua produção funcionam como um dinamizador indispensável para o sistema.

            Para a lógica do capital, circulação e consumo se equivalem. Não importa se os produtos não são efetivamente usados, importa apenas que sejam vendidos. Do ponto de vista da circulação, o ideal é que os produtos nem sequer sejam usados, mas que mesmo assim novas unidades sejam compradas. A lei tendencial da taxa de utilização decrescente dos produtos encontra seu feliz (para o capital) corolário no produto cuja utilização zero equivale à utilização máxima (pense-se na estocagem de milhares de ogivas nucleares em silos de onde nunca sairão) e à satisfação das doentias necessidades do sociometabolismo capitalista.

O complexo industrial-militar vem cumprir esses requisitos sociometabólicos degenerados com sua elasticidade virtualmente infinita para consumir recursos e produzir o nada. As guerras em que alguns de seus produtos vêm a ser usados, além de subsidiariamente propiciarem a anexação de novos territórios para o capital (vide a luta de Bush para levar “a liberdade” ao resto do mundo) constituem fundamentalmente o pretexto para que não se possa reconhecer a absurdidade de um ramo de produção inteiramente voltado para a destruição.

            Voltemos então ao exemplo cinematográfico dessa absurdidade em sua forma ainda nascente. Que importa se os aviões de Howard Hughes não tenham sequer decolado? A sua contribuição para o esforço de guerra consistiu em simplesmente terem sido construídos, pois foram as encomendas de guerra como essa que salvaram a economia estadunidense da bancarrota na qual a crise de 1929 e a Depressão subseqüente a haviam atirado. O que são os U$ 56 milhões embolsados pela Hughes Aircraft comparados aos bilhões gastos pelo Estado em encomendas que também não foram usadas? Quem faz essa pergunta é o próprio Hughes, interpelando o senador da Pan Am.

            Evidentemente, Martin Scorsese não está filmando para fazer a denúncia do capitalismo. Mas independente de suas intenções, ele o faz. A denúncia que ele tem em mente, e que encontra eco nas expectativas da platéia estadunidense, é a das relações espúrias entre as megacorporações e os políticos; não a do sistema como um todo. Se essas relações pudessem ser conduzidas com lisura, estaria teoricamente tudo certo com o sistema. Mas já que isso não é possível por uma série de razões, o que podemos fazer é nos divertir com a ousadia de um milionário que pôs tudo às claras.

            Martin Scorcese é um artista habilidoso que contrabandeia essa aguda perspectiva crítica para dentro de um produto de entretenimento. O seu talento narrativo ímpar funciona como álibi que o autoriza a expor as entranhas corrompidas de seu país contando com o guarda-chuvas benevolente da tolerância à arte de vanguarda. O “establishment” cultural tolera sua fixação em mafiosos e bandidos mesmo quando, como no presente caso, alguns desses bandidos, como Juan Trippe (o dono da Pan Am), o senador Brewster e o próprio Hughes, estão no coração do “establishment” político-empresarial.

Se não fosse tão talentoso, Scorsese dificilmente seria aceito numa indústria milionária que é a segunda maior fonte de exportações dos Estados Unidos. A indústria cultural perde apenas para, adivinhem… a indústria bélica. Filmes e bombas, a receita certa para a hegemonia geopolítica.

Daniel M. Delfino

25/02/2005