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“Irreversível”: a perda de sentido da sexualidade burguesa


13 de dezembro de 2008

“IRREVERSÍVEL”: A PERDA DE SENTIDO DA SEXUALIDADE BURGUESA

(Comentário sobre o filme “Irreversível”)

Nome original: Irréversible

            Produção: França

            Ano: 2002

            Idiomas: Francês, Espanhol, Italiano, Inglês

            Diretor: Gaspar Noé

            Roteiro: Gaspar Noé

            Elenco: Monica Belluci, Vincent Cassel

Gênero: crime, drama, thriller

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

            O filme francês “Irreversível” tem como grande atração a cena de estupro protagonizada pela atriz Mônica Bellucci. Esse é o seu grande chamariz de público e a causa da grande polêmica que o cerca. O que só vim a saber depois de tê-lo assistido. O escriba que aqui se vos dirige, ao assistir a este filme, quebrou pela primeira vez sua regra de ouro, ou seja, o mandamento de somente assistir filmes sobre cujo conteúdo e realizadores já tem alguma informação prévia. Ao assistir “Irreversível”, não tinha noção do tipo de filme que me esperava. Por isso, minha primeira reação foi de extremo desagrado.

            Provavelmente, era essa a reação que os realizadores esperavam. “Irreversível” é um filme de agressão. Antes de chegar à famosa cena de estupro, o espectador é bombardeado por imagens e sons propositadamente perturbadores. A história é narrada de trás para frente, no estilo de “Amnésia”. O filme começa no seu clímax de agressão e mal estar, que é o final da história. Aos poucos, a narração vai regredindo para o princípio da história, explicando quem são aqueles personagens e como foram parar naquela situação.

            Ao contrário de “Amnésia”, não se trata de um “thriller” de investigação, cujo objetivo seja tentar adivinhar o final (ou seja, o começo). O recurso da narração em retrocesso temporal serve como uma espécie de arremate irônico para a crueldade do conteúdo, como veremos. Como se trata de um filme cujo foco não é a trama, não há problema em contar o final (o começo). A história termina (e o filme começa) com a prisão de dois amigos, Marcus e Pierre, pela morte de um homem a quem mataram em busca de vingança contra o cafetão que perpetrou o estupro de Alex (Mônica Bellucci), atual namorada de Marcus e ex- de Pierre.

            A vingança tem lugar numa boate gay que leva o sugestivo nome de “Rectum”. O lugar é um labirinto escuro interminável, tetricamente iluminado por luzes vermelhas, povoado por gemidos agonizantes. Nesse lugar, o namorado ultrajado Marcus empreende uma descida ao inferno para perpetrar sua vingança, enquanto um desesperado Pierre tenta demovê-lo dessa idéia. No final, ambos não conseguem completa a vingança, mas acabam matando a golpes de extintor de incêndio um dos freqüentadores do antro gay-sado-masô-hardcore. Nas cenas em que esses eventos são mostrados o diretor abusa de recursos como a câmera tremida e rodopiante, um som agonizante ao fundo, cortes bruscos, linguagem pesada. O máximo de ultraje e incômodo.

            Tais cenas se desenvolvem num grau realismo, violência sensorial e atmosfera carregada inimagináveis no cinema comercial estadunidense. Filmes estadunidenses são prisioneiros da armadilha do seu sistema industrial de produção. Precisam ser assistidos por multidões mundo afora para cobrir custos de produção. Precisam portanto ser palatáveis para audiências massificadas, dos 8 aos 80 anos. Nessas condições de produção, não há como conseguir o nível de realismo como o deste “Irreversível”. Até aqui, dissemos o óbvio. O cinema estadunidense é sinônimo de artificialidade, fantasia, ilusão, escapismo, fuga da realidade.

            É sinônimo também de monopólio do imaginário. Para quebrar esse monopólio, as cinematografias alternativas, como a francesa, acabam tendo que investir no extremo oposto, o mergulho na realidade. E a realidade é aqui sinônimo de barbárie, violência, falta de sentido, horror. Ao contrário do mecanismo industrial estadunidense, aqui várias interpretações são possíveis. O apelo para a violência do estupro e da vingança pode ser somente um expediente forçado. Um truque sujo para provocar polêmica e atrair atenção. Mas pode servir também como demonstração de tendências histórico-sociais, e nisso estaria o valor e a importância do filme.

            Independentemente do fato de seus realizadores terem sido ou não oportunistas aventureiros interessados em causar polêmica, o conteúdo do filme é sintomático. Antes porém de discutir os nexos sócio-culturais ali desvendados, é preciso ressaltar o impacto da sua novidade nos aspectos formais e estéticos da arte cinematográfica. O que ganha e o que perde o cinema com um filme como “Irreversível”? Provavelmente, ganha em realismo, pois mostra a barbárie do submundo da prostituição, do homossexualismo sado-masoquista hardcore e do crime sexual de forma nua e crua. Expõe a doença da sociedade burguesa pós-moderna, tornada incapaz de conceber o sexo como fonte de prazer e fundamento de uma sociabilidade humanizada.

            Mas esse ganho de realismo se dá com a perda da própria essência do cinema, que é a sua capacidade de criar fantasias. O cinema clássico estadunidense, dos anos 30, 40, e 50, estruturado em torno do “star sistem”, criou a figura da mulher fatal e moldou o imaginário sexual da era de prosperidade capitalista do século XX. A cena de “strip-tease” de Rita Hayworth em “Gilda” representa o ponto alto dessa construção. Precisamente porque a cena não se completa. Pelo menos não na tela. Gilda tira apenas as luvas. E deixa a todos os homens a tarefa de imaginar o restante da cena. O cinema se fixava assim como fonte da fantasia, pela via do mistério. O território fantástico em que transcorria o restante da cena de “strip-tease” deveria ser deixado, pelo bem do próprio cinema, reservado à imaginação criadora do espectador.

O sucesso e a mística de Rita Hayworth advém dessa sábia concessão à fantasia, enquanto que a polêmica e o mal estar em “Irreversível” advém precisamente da destruição da fantasia. A mulher com quem qualquer espectador poderia sonhar é desfrutada violentamente como um mero pedaço de carne. Em “Irreversível”, o cinema se torna o túmulo da fantasia pela exposição documental da cena de estupro. Uma atriz ascendente, Mônica Bellucci, uma mulher belíssima, sensual, carismática, que em outros tempos seria candidata óbvia ao posto de super-estrela, expõe-se a uma cena que destrói qualquer possibilidade de mitificação de sua figura. Que graça terá em qualquer filme a presença de Mônica Bellucci se todos já puderam vê-la numa cena de sexo anal?

O mesmo vale também para o público feminino. Sem ser um filme essencialmente pornográfico, “Irreversível” expõe também, abundantemente, a genitália masculina. Um desfile de pênis e mais pênis balançando pela tela. E mais do que a exposição visual, o filme escancara para o público feminino a baixeza e a violência do imaginário sexual masculino. Porque o que tanto o estuprador quanto o namorado de Alex querem é fazer sexo anal com ela. Ele pede isso, quando ela esperava dele palavras românticas. Simples assim. Essa frieza faz parte da irônica crueldade do filme à qual aludimos e sobre a qual ainda falaremos. O mistério do macho fica assim também destruído, para desconforto destes e também das fêmeas.

Em qualquer fantasia sexual o ineditismo é um dos componentes principais. Ninguém é capaz de excitar-se com uma imagem que já foi vista pela enésima vez. Nem com uma mulher que já foi desfrutada no limite. Estamos aqui trabalhando com o raciocínio de que o fascínio do cinema se devia em grande parte ao seu componente embutido de fantasia sexual, o qual depende de certas condições precisas e de certas regras de exposição para funcionar. Mostrar sem mostrar, essa é a essência do jogo. Agora, na ânsia pelo impacto, pela novidade, pela radicalidade, pelo extremo, as regras do jogo são subvertidas. O encanto foi quebrado, a mágica deixou de funcionar, o exagero passou do ponto. O cinema morre mais um pouco em “Irreversível”.

Já não é mais possível sonhar com outra realidade criada pela fantasia e já não é mais possível conhecer a realidade senão aquela transformada em fantasia. “Irreversível” vai fundo nas fantasias inconfessáveis da audiência e oferece o espetáculo da barbárie da violência sexual. As fronteiras entre o real e o imaginário se desvanecem perigosamente. Depois de cenas desse tipo, onde mais o cinema pode ir? Onde mais cavar a fim de obter sensação? Aproxima-se a confusão entre o cinema de impacto de pretensões realistas e documentais e o submundo criminoso dos filmes “snuff”. Filmes que mostram cenas reais de pessoas sendo mortas, violentadas, agredidas, etc., filmes que circulam no submundo criminoso da internet.

Onde tanta discussão se origina, o entretenimento está morto. Os realizadores de “Irreversível” estão jogando sujo. Trapaceando no jogo. No campeonato do baixo nível e violência como concebem o cinema, alcançaram a pontuação mais alta até agora. A reação, por outro lado, também tem sido ambígua. Há um inegável efeito pornográfico excitante na cena de estupro, que provoca certa atração. Mas não se pode admitir um estupro como atração estética. Embora qualquer um que veja a cena fique excitado. É isso na verdade que nenhum crítico pode admitir, porque admitiria com isso a própria sexualidade doente. Em nome da moral e os bons costumes, o filme tem que ser condenado pela crítica.

Mas a condenação, a meu ver, não pode parar apenas no filme. Tem que alcançar a realidade que ele decanta e mostrar porque a sexualidade se tornou tão doente e incômoda. Independentemente de o filme ser ou não um golpe baixo de publicidade apelativa, ele é um sintoma de uma doença grave.

Antes porém de discutir o significado do estupro, é preciso investigar, em primeiro lugar, porque essa é a cena que chama mais atenção. É interessante, antes de mais nada, que a cena de estupro cause mais incômodo que o assassinato. Porque discutir a cena de estupro e não a cena inicial, um assassinato brutal a golpes de extintor de incêndio? A resposta é que o morto era um simples gay sado-masô degenerado.

É quase admissível que um burguês desça ao submundo para assassinar um homossexual, mas não é aceitável que um criminoso suba para estuprar uma mulher burguesa. Os dois crimes são julgados com medidas diferentes. Porque discutir somente o estupro e não também o assassinato? As duas cenas são igualmente horríveis. Mas a consciência burguesa diz para si mesma, implicitamente, que alguém merecia morrer por desagravo ao estupro. No turbilhão de sensações perturbadoras despertadas pelo filme, a barbárie da nossa condição social fica exposta e a idéia de justiça naufraga miseravelmente.

Para que fique claro, não se trata de defender o estuprador ou minimizar o grau de agressão configurado no estupro. Mas de colocar no devido lugar também o assassinato.  Matar pode, mas estuprar não. O cinema admite cenas de morte, mas não de estupro. A morte já foi banalizada pelo cinema estadunidense. Especialmente a morte de criminosos, quase sempre negros, latinos, árabes, vietnamitas, etc., membros de minorias excluídas ou representantes de ideologias subversivas, tratados sumariamente como terroristas. O defensor da ideologia estadunidense está autorizado a matar, mas não está autorizado a demonstrar desejo sexual. O soldado mandado ao Vietnã pode matar uns amarelos, mas não pode falar palavrões.

A destruição de vidas indesejáveis é admissível, mas expor abertamente a sexualidade não é. Porque, como veremos a seguir, a sexualidade burguesa carrega uma doença congênita que precisa a todo custo esconder. A veemência da condenação ao estupro esconde a atração que a cena provoca e que não pode ser confessada.

Para explicar “Irreversível”, é preciso recorrer ao Marques de Sade, o filósofo do sexo anal, autor de “180 dias de Sodomia”, assunto que conhecia na teoria e na prática, ativa e passiva. Sade reconheceu o caráter destruidor e anti-social do sexo anal e por isso mesmo o defendia. O seu insulto ia além daquele perpetrado pelos demais “philosophes” do Iluminismo e por isso mesmo ele foi perseguido e encarcerado até a morte. O philosophe iluminista defendia, contra a aristocracia e o clero, a prática do sexo como parte do envolvimento amoroso. Ou seja, desvinculado da sua faculdade reprodutiva. E o sexo, para o clero e a nobreza, representantes da ordem social patriarcal, só pode ter como finalidade a reprodução.

A proposta dos philosophes era libertária e revolucionária. Porque contemplava no seu bojo, entre outras coisas, a futura emancipação sexual das mulheres na sociedade burguesa. O sexo pode e deve ser praticado com vistas ao prazer, o que envolve necessariamente as duas partes do casal. Esse tipo de proposta é universalista, democrática e humanista. O sexo anal, defendido por Sade, por outro lado, não tem a função reprodutiva e nem mesmo de proporcionar prazer a ambas as partes. É um gesto de ódio e não de amor, dizia o próprio Sade. Sua função é meramente de agredir e destruir. Tanto assim que em “Irreversível” o estuprador, depois de consumado o ato, não satisfeito, espanca sua vítima a ponto de desfigurá-la. Ele não deseja a mulher burguesa, mas a odeia.

Por pressentir isso, os iluministas não defendiam Sade. As práticas do Marquês eram inadmissíveis mesmo para os libertinos iluministas. O tipo de agressão que ele representava destruía a própria essência universalista do ideal iluminista. O sexo anal pode dar prazer para uma das partes somente. É uma modalidade radicalmente individualista e exclusivista. E o individualismo é o pecado de origem da própria ideologia burguesa, cuja ocultação é essencial para o sucesso histórico da mistificação ideológica.

O sexo tem que ser o princípio e o fim do envolvimento amoroso e tem que ser uma fonte de prazer para ambas as partes. Essa é a promessa dos libertinos. A burguesia ascendente precisa falar a todas as camadas sociais e sexuais, por isso sua mensagem tem que ser universalista e democrática. E tem que banir as práticas individualistas e anti-sociais do sadismo. O que Sade revela e o que os philosophes não podem conceber é que a ideologia burguesa é na verdade individualista e a promessa de associar prazer e amor é um mito inalcançável na sociedade burguesa. Ele leva ao paroxismo a perda de sentido da sexualidade na sociedade burguesa e se coloca no extremo oposto do romantismo, ideologia sentimental da burguesia ascendente.

A verdade dessa incômoda descoberta de Sade somente seria demonstrada no século seguinte, quando a burguesia deixava de lado suas ilusões progressistas. Já na fase decadente a burguesia concebe o masoquismo, ou seja a obtenção do prazer pela submissão à dor infringida pelo outro. O individualismo destrutivo de Sade encontra seu complemento necessário na obra de Sacher Masoch, culminando no sado-masoquismo. Nessa modalidade de prática sexual o prazer individualista e a submissão auto-destrutiva se alimentam mutuamente e unificam os termos lógicos da destruição da sexualidade como fundamento de uma sociabilidade universalista. Dor e prazer, submissão e dominação, exploração e usufruto, uso e abuso, pares dialéticos cuja oposição e complementaridade determinam os laços sociais no regime capitalista.

O corpo humano é concebido como objeto e como mercadoria, cabendo-lhe como tal passar pelo processo de produção e consumo. Cabe-lhe receber a formatação adequada em linhas de montagem, como as academias de ginástica, a embalagem adequada das roupas de grife e oferecer-se como mercadoria na caça pelo sexo. Nessa linha de montagem do prazer dessignificado, as identidades sexuais tradicionais legadas pelo patriarcado deixam de fazer sentido. Macho e fêmea, ativo e passivo, frontal e anal, reprodutivo ou recreativo, as modalidades de usufruto do corpo só fazem sentido quando levadas ao extremo. O sado-masoquismo expõe o lado obscuro da sexualidade burguesa, assim como a relação mercadológica inverte o valor de uso em valor de troca.

“Irreversível” expõe os extremos a que se vai em busca do prazer. O Everest está ao alcance de quem puder pagar. Burgueses endinheirados pagam fortunas e armam expedições onde a morte é uma companhia constante na tentativa de chegar ao topo da montanha mais alta do mundo. Não basta mais uma satisfação “normal”. É preciso ir além, virar o corpo do avesso, ser radical. Esporte radical, sexo radical. Radical como o “fist fucking” que alguém pede insistentemente a Marcus na sua descida ao Rectum.

A sociedade capitalista oferece ainda a promessa do prazer para todos, mas apenas alguns o conseguem por meio de relações consensuais e normais. Relações que dêem sentido ao ato, como Alex via sentido na possibilidade da maternidade. Os que não conseguem tentam alcançá-lo por outra via. Marcus precisa de drogas para sentir prazer. Ao vê-lo drogado numa festa, Alex se sente insultada e resolve ir embora sozinha, decisão que se mostraria fatal. No caminho, ela encontrará uma prostituta sendo agredida pelo cafetão, tornando-se também sua vítima.

A clivagem social é explícita. O abismo entre os burgueses e os marginais é nítido. O filme oferece assim o confronto entre os incluídos e os sexualmente excluídos. A tensão entre a promessa universalista e democrática e a verdade individualista e anti-social da ideologia burguesa explode sob a forma de violência e ódio. De forma irresponsável, conscientemente ou não, os realizadores do filme retratam os excluídos como essencialmente criminosos e violentos. De um lado, temos os burgueses, belos e saudáveis, e do outro, os marginais. O estupro como vingança de classe? Eis mais uma transgressão de extremo mau gosto dos autores do filme. Em lugar da sexualidade romântica, niilismo sexual.

De qualquer maneira, não há em “Irreversível” um meio termo possível entre a burguesia e as classes abaixo dela, transformadas em lúmpem. Os marginais, excluídos da festa, tornam-se criminosos. Optam pelo estupro, pelo homossexualismo promíscuo, pelo transexualismo, como Concha, a prostituta sujeita ao mesmo cafetão que estuprou Alex.  Optam por modalidades radicais como o “fist fucking” (enfiar o braço no ânus do parceiro).

A violência intrínseca ao processo social capitalista exige produtividade também no ato sexual. Pierre se aflige por não entender porque não conseguia dar prazer a Alex. A relação entre eles havia se tornado anti-natural por conta da sua ânsia produtivista em alcançar a todo custo o orgasmo de sua parceira. Quando o segredo do orgasmo está na simplicidade de não se preocupar com ele, explica Alex. O segredo está na simplicidade do carinho. Em não pensar e deixar o corpo se expressar.

De forma aberta, os três burgueses liberais franceses discutem esse tipo de assunto num vagão de trem, para que todos os demais passageiros possam ouvir. Como antes, pela manhã, Alex e Marcus falavam de sexo como uma relação em que a mulher tem o poder de escolher. A mensagem do filme pode ser lida como uma advertência cínica. De tanto pensar em sexo, sonhar com sexo, falar em sexo, a mulher recebeu o sexo que procurava. Uma mensagem ultrajante, uma ironia de extremo mau gosto.

Essa é a maior crueldade do filme, a ironia à qual tenho aludido, o maior motivo de incômodo. Ele trata de maneira extremamente irônica e violenta o sonho de uma sexualidade burguesa ainda romântica. Esse é o insulto que a crítica burguesa não pode suportar. Como ofensa final a esta crítica-avestruz de quem não quer enxergar o problema e enfia a cabeça num buraco, para não ver a barbárie burguesa; há uma testemunha do estupro, que aparece na boca do túnel, vê a cena, mas não faz nada, dá meia volta e desaparece.

A cada um cabe escolher se irá se esconder, simplesmente dizer que o filme é imoral, ou se irá tentar entendê-lo, denunciar o que viu. Como romântico que sou, prefiro a denúncia.

A ironia se completa no final, com Alex lendo um livro, deitada placidamente no gramado de um parque, sonhadora. E nós somos convidados a esquecer tudo que vimos antes, porque o filme voltou ao começo, quando a tragédia ainda não tinha acontecido. Somos convidados a fingir que nada aconteceu. E a voltar para nossas vidas e nosso sexo, como se ainda se pudesse fazê-lo de forma natural. Como se os danos causados não fossem irreversíveis.

Daniel M. Delfino

01/05/2004