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“Estrada para perdição”: Ponte entre ocidente e oriente


13 de dezembro de 2008

“ESTRADA PARA PERDIÇÃO”: PONTE ENTRE OCIDENTE E ORIENTE

(Comentário sobre o filme “Estrada para perdição”)

Nome original: Road to perdition

            Produção: Estados Unidos

            Ano: 2002

            Idiomas: Inglês

            Diretor: Sam Mendes

            Roteiro: Max Allan Collins, Richard Piers Rayner

            Elenco: Tom Hanks, Paul Newman, Jennifer Jason Leigh, Daniel Craig, Liam Aiken, Rob Maxey, Tyler Hoechlin, Ciarán Hinds

Gênero: aventura, crime, drama

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/ 

“Estrada para Perdição” pertence à categoria dos filmes feitos para o Oscar. Na segmentada indústria cultural estadunidense, existe a época e o momento apropriados para lançar cada tipo de filme. Na época das férias de verão, saem os filmes de aventura com efeitos especiais, produzidos para levar multidões de adolescentes ao cinema e estourar recordes de bilheteria. No fim do ano, saem os filmes de prestígio, feitos para serem indicados ao Oscar do ano seguinte.

            O novo filme do astro Tom Hanks (“bicampeão” do Oscar) e do diretor Sam Mendes está portanto nessa  segunda categoria. Tudo nele revela um apurado trabalho de produção, desde as cenas cuidadosamente fotografadas, até a música de alta qualidade, que às vezes chega a parecer um pouco carregada de sentimentalismo. Tudo feito para impressionar e emocionar, o que realmente acontece, graças à competência e honestidade dos envolvidos no projeto. O diretor, em seu segundo trabalho depois o excelente “Beleza Americana”, vencedor do Oscar de 1999, explora bem a sutileza do roteiro para criar climas evanescentes e sugestivos. Trata-se de um filme de época, ambientado nos anos 1930, numa América fria, cinzenta, triste e abalada pela Depressão.

“Estrada para perdição” é um filme de gângsters, mas a história é contada mais pelos olhares, pelos momentos de silêncio, pela música meditativa, do que pelos tiroteios e perseguições automobilísticas. Há meia dúzia de cenas que já nasceram clássicas, como a do tiroteio final, debaixo de chuva. E mesmo assim, com toda essa elaboração artística, “Estrada para Perdição” não deixa de ser um bom filme de gângster, com a dose adequada de violência, rivalidade, trapaça, cinismo e malandragem do submundo do crime.

            O mérito do roteiro parece ser a capacidade de fazer germinar nesse cenário as relações de família, tanto aquela que há entre o personagem de Hanks e seu filho, como a do próprio Hanks com seu chefão e protetor (vivido por Paul Newman, excelente, como o restante do elenco). Mas há algo mais do que isso. Por baixo dessa sofisticação artística, há um segredo, que é a origem aparentemente pouco nobre do argumento. “Estrada para Perdição” é a adaptação para cinema de uma história em quadrinhos. Por mais que Hollywood já tenha produzido bons filmes a partir dessa fonte (“Batman”, “X-Men”), as adaptações de quadrinhos para o cinema sempre foram consideradas mais como participantes do filão dos “blockbusters” do que dos filmes de prestígio.

            “Estrada para Perdição” será, se de fato indicado, um caso raro de concorrente do Oscar cuja história é baseada numa HQ. Acontece que a HQ que deu origem ao filme, chamada igualmente “Estrada para Perdição”, infelizmente ainda não foi publicada no Brasil. É impossível avaliá-lo, portanto. Mas é possível avaliar a história que lhe deu origem. O gibi estadunidense que deu origem ao filme foi por sua vez baseado num gibi japonês, um “mangá”. Trata-se do clássico “Lobo Solitário”, que já teve alguns episódios publicados no Brasil, de forma acidentada e descontínua.

A qualidade dessa história explica a qualidade do filme. No Japão as histórias em quadrinho são consideradas produtos de prestígio, assim como o são nos EUA os filmes que concorrem ao Oscar. Os “mangás” também são segmentados. Há aqueles dedicados aos adolescentes, às donas de casa, aos empresários, etc. “Lobo Solitário” é um “mangá” de prestígio, uma obra artística de grande consistência literária. Trata-se então do caso de uma HQ com pedigree que deu origem a um filme de igual nobreza. Um acaso feliz que permitiu aos artistas da sétima arte desenvolver na tela grande os conceitos de um tradicional “mangá” japonês.

            “Lobo Solitário” é um épico samurai, que desvenda a alma do povo japonês e faz reviver em toda sua riqueza e tragédia o período Tokugawa, o período histórico e cultural formador do Japão, anterior ao atual, que é o período da industrialização, da tecnologia e da assimilação dos valores do Ocidente. O período Tokugawa começa com a tomada do poder por Ieyasu Tokugawa, que ascendeu ao cargo de Shogun no ano 1600, pondo fim ao século de guerras civis entre as grandes famílias nobres.

            Com o fim das guerras civis tem início uma época de grande estabilidade e estratificação social. Todas as camadas sociais passam a ter seus papéis e suas vidas traçadas por rígidas leis promulgadas pelos Shoguns Tokugawa. Aos camponeses cabia trabalhar e sustentar a sociedade. Era-lhes proibido ter armas. Aos clérigos e monges cabia rezar. E aos guerreiros, nobres (daimiôs) e soldados (samurais), cabia lutar. A eles cabia estudar e desenvolver as artes da guerra, que hoje conhecemos como artes marciais. A pertença a uma determinada classe era determinada pelo nascimento e não era possível mudar de uma classe para outra. Em cada atividade da sociedade, surgiu um espírito de disciplina e dedicação ao dever que elevou todas as profissões a um nível de elaboração artístico e ritual. A vida dos membros de cada classe social era um ritual complexo e elaborado de etiqueta e estética. Os ocidentais conhecem as gueixas e a cerimônia do chá, mas não conhecem a filosofia por trás dessas performances, que existia em todos os demais momentos da vida social. Tudo era regido por uma mescla de ascetismo e austeridade budista com estética xintoísta, animista.

            Na era Tokugawa foi consolidado o “bushidô”, o código de ética dos guerreiros. Pelo espírito do bushidô, o objetivo da vida do samurais é morrer na defesa da honra de seu clã e seu mestre. Há um senso de auto-sacrifício brutal que desemboca no culto ao suicídio como forma suprema de coragem, honra e obediência. Ora, com o fim das guerras civis, na era Tokugawa, a ética dos guerreiros fica sem sentido no momento mesmo em que se consolida. Não há mais guerra para lutar, não há mais bandeiras para serem honradas com o sacrifício da própria vida no campo de batalha. Como os EUA de “Estrada para Perdição”, em que não há emprego para capangas e leões de chácara.

É nessa contradição que se desenrola o drama narrado em “Lobo Solitário”. O samurai Ito Ogami, de sua alta posição de executor oficial do Shogun, encarregado de executar nobres rebeldes e suspeitos de hostilidade ao governo Tokugawa, é derrubado por uma intriga de um clã rival, retirando-se para o interior do país. Ele se torna um “ronin”, um samurai sem mestre, um bandido, um mercenário, que coloca seu apurado domínio das artes da espada a serviço das intrigas e disputas surdas que não tem outro meio de se resolver nessa sociedade estratificada senão por meio de marginais. Seu objetivo é provocar escândalo e atrair a atenção das autoridades sobre o seu caso, para desencadear uma investigação e desmascarar o clã que o caluniou. Como Michael Sullivan, que atravessa os EUA roubando dinheiro da máfia para que o chefão Al Capone seja obrigado a enquadrar o antigo chefe de Sullivan.

            No caso de “Estrada para Perdição”, o responsável pelo banimento do “mafioso-sem-mestre” é o próprio filho do chefe do clã. O qual por sua vez, também tratava Sullivan como um segundo filho. A diferença entre o filme e o mangá se explica por um questão de economia narrativa, pela impossibilidade de transpor para o contexto dos anos 30 estadunidenses todos os detalhes da complexa hierarquia da nobreza Tokugawa. Há também outras diferenças. Ito Ogami vaga pelo Japão com seu filho, uma criança de três anos, enquanto Sullivan tem um filho já capaz de ajudá-lo em seus assaltos.

Mas talvez os criadores do filme nem tenham tentado reproduzir o mangá, guiando-se pela história tal como está contida no gibi estadunidense. O que torna a adaptação ainda mais extraordinária, pois apesar de toda a ambientação rigorosamente fincada no contexto dos anos 30, o cuidado com a atmosfera de um grupo da máfia irlandesa, católica, etc.; a estética samurai fica evidente em diversos momentos. O espírito do filme é o mesmo fatalismo japonês do manga “Lobo Solitário”.

Um destino brutal aguarda todos aqueles que se colocam à margem da rígida lei do shogunato. O desvio só pode ser punido com a morte. Uma morte, um erro, uma injustiça, só podem ser lavados com sangue. A morte de um só pode redundar na morte de vários outros, até que o círculo esteja completo. Um assassino jamais deixa seu trabalho incompleto. Famílias inteiras devem perecer, se preciso, para que o equilíbrio possa ser restabelecido. É preciso ter a coragem e a honra de trilhar até o fim o caminho escolhido, mesmo que isso signifique pagar com a própria vida. Essa é a “trilha do assassino”, como Ogami chamava sua vingança.

            É esse o espírito do mangá e do filme. Depois da tempestade, surge a possibilidade de um novo começo. O narrador do filme, o filho de Sullivan explica então como escapou incólume e inocente a esse turbilhão de violência. Quanto ao filho de Ogami, ficamos sem saber como terminou sua saga, esperando que algum dia sua história possa ser publicada entre nós de forma completa e digna do prestígio que merece.

Daniel M. Delfino

19/11/2002